Leandro Karnal
‘Não importa como você a defina, a crença na alma separada do corpo é universal’
No
princípio, o homem disse “que haja Deus” e foi a tarde e a manhã do
primeiro dia da jornada teológica da humanidade. E Deus foi feito à
imagem e semelhança do homem e o homem viu que tudo era bom. Esse
poderia ser o resumo do livro Deus – Uma História Humana (Zahar), de Reza Aslan.
O autor já era conhecido pelo livro Zelota – A Vida e a Época de Jesus de Nazaré
(ed. Zahar). Ele repete o bom uso da linguagem clara. As muitas notas
de erudição foram deslocadas para o final e ter acesso a elas é uma
opção para o leitor. O grande público ama amplos recortes, como os
feitos por Karen Armstrong (Uma História de Deus) ou por Paul Johnson (História dos Judeus e História do Cristianismo). As narrativas amplas e multisseculares foram perdendo espaço na academia e cresceram no gosto popular.
O tema central da obra é a construção humana de Deus. O livro não é uma
denúncia da inexistência do sagrado. Porém, o público mais amplo pode
ficar impressionado ao saber coisas bem tradicionais para pesquisadores,
como a costura incompleta entre dois deuses distintos (Javé e El) para
criar o Deus do Antigo Testamento que acabaria fundindo todos os deuses
anteriores em uma única entidade. Como passamos da monolatria (havia
vários deuses, mas só um deveria ser adorado) para o monoteísmo: só
existe um Deus de verdade? Como eu resolvo a unidade absoluta de Deus no
Islamismo (tawhid) e totalmente distinto da criação com o
antropomorfismo de tantas afirmações do mesmo texto sagrado? Como a
Trindade fica no quadro da unidade divina?
O
que mais faz sucesso nos textos é sempre o que, de forma geral,
chamamos de fenomenologia. Apesar de muitos sentidos, entendo aqui como a
linha de continuidade que os fenômenos produzem (oração, milagre, etc.)
ao longo de milênios. Um pesquisador religioso adepto da teoria da
fenomenologia, como Mircea Eliade, acredita que as pinturas e enterros
pré-históricos são uma parte de um processo que pode ser ligado a uma
missa do século 21 ou um culto contemporâneo. Surge o homem religioso
(homo religiosus) que se expressa do Paleolítico até hoje.
A
explicação de longo prazo constitui uma narrativa tranquilizadora e
mostra um jogo de causa e efeito que agrada a quase todo mundo. Se a
religião pode ser lida como o horror ao vazio do mundo e do universo, a
linearidade da fenomenologia agrada muito.
Ao terminar com uma
defesa do panteísmo na forma como o concebe, Reza Aslan volta ao tópico
fenomenológico. Vejamos na voz do autor: “(...) a alma. Chame-a do que
você quiser: seja psique, dos gregos; ou nefesh, como os hebreus
preferiam; ou chi’i, como na China; ou brâman na Índia. Chame-a de
Natureza de Buda ou purusha. Considere-a comaterial com a mente ou
coexistente com o universo. Imagine-a reunindo-se com Deus após a morte,
ou transmigrando de corpo em corpo. Experimente-a como sede da sua
essência pessoal ou como força impessoal subjacente a toda criação. Não
importa como você a defina, a crença na alma separada do corpo é
universal. É nossa primeira crença, muito mais antiga que nossa crença
em Deus. É a crença que gerou nossa crença em Deus” (p. 157). Aqui temos
dois universais fenomenológicos: alma e Deus. Acontece que o Budismo,
citado por ele, não concebe alma nem a necessidade de um Deus como causa
primeira. A psique grega não tem nenhuma relação próxima com o brâman
hindu. Ao considerar que difere apenas o nome, todavia o conceito e a
“essência” são comuns a todos os lugares e épocas, ele cria uma
narrativa que facilita a plena unidade humana e a capacidade de analisar
tudo em linhas ou evolutivas ou de similaridade ao menos. O problema é
que impor o conceito de “alma” a todos os conceitos que possam ter
alguma semelhança de imaterialidade é uma fantasia fenomenológica,
ignora especificidades opostas e cria universais que tranquilizam e
seduzem, porém, negam a história. Sou eu, analista, que olhando para
trás crio a linha condutora universal e que facilita minha vida de
pesquisador. É o público leitor em geral que ama algo que possa ser
traduzido em um argumento total e “humano” na sua essência. No fundo,
tendo passado mais de 200 páginas tentando mostrar como o homem criou
seu imaginário de Deus, resta acrescentar que o humano pode criar algo
mais interessante como princípio imortal: a própria ideia do humano
unificado e de sedução pela nossa espécie única e integrada nas suas
crenças básicas.
Nada do que eu disse insinua, nem de longe, que
o livro seja ruim ou não tenha nascido de um imenso trabalho de
pesquisa e de uma capacidade de arregimentar dados corretos e bem
colocados. Queria apenas trazer à tona parte do pressuposto teórico do
autor que fez o esforço de produzir a obra Deus como uma
maneira de explicar seu percurso interno até o panteísmo. No fundo, tal
se torna a prova definitiva de que Reza Aslan tem razão sobre o homem
ter feito o sagrado a sua imagem. Feita a observação, a leitura é
excelente para todos que se interessam pelo tema da história de Deus. É
preciso ter esperança.
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* É um historiador brasileiro, professor da Universidade Estadual de Campinas, especializado em História da América. Colunista do Estadão
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,no-principio-eu-era,70002614767
Imagem da Internet
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