Foi lançado em Portugal o livro do psicólogo canadiano que se
tornou um ícone do anti-politicamente correto. Após ler o capítulo que
pré-publicamos, nunca mais olhará para uma lagosta da mesma forma.
A editora Lua de Papel/Leya lançou em Portugal, a 25 de setembro, a tradução do livro “12 regras para a vida: um antídoto para o caos“,
da autoria de Jordan Peterson, outrora um obscuro psicólogo canadiano
mas que, nos últimos anos, se tornou o ícone viral da luta contra o
politicamente correto.
A entrevista que deu a Cathy Newman, jornalista do britânico Channel 4,
tornou-se um clássico viral do YouTube e a sua popularidade subiu a
cada vez que o entrevistado deixou a entrevistadora sem palavras —
enquanto se debatiam temas como o pretenso fosso salarial entre homens e
mulheres e, também, sobre a possibilidade de criar leis que obriguem
alguém a dirigir-se a um transexual pelo pronome da sua escolha.
Hoje, as suas palestras enchem arenas não só nos EUA como, também, em
Londres. É idolatrado por muitos jovens (homens, sobretudo), e até o rapper Kanye West é um fiel seguidor dos escritos de Peterson.
Após
uma resposta na rede social Quora sobre as principais regras que alguém
deve seguir para ter uma vida feliz e equilibrada, que também se tornou
viral, Jordan Peterson decidiu expandir a análise e publicar o livro
que acabou por se tornar um bestseller em todo o mundo.
Quando
ler o capítulo (editado) que o Observador pré-publica, nunca mais
olhará para uma lagosta da mesma forma. E ficará com uma ideia sobre a
importância de andar com boa postura e costas direitas. Esse cuidado
(além de um sono regular e um bom pequeno-almoço) pode fazer toda a
diferença na forma como os outros o veem — e, também, na forma como se
vê a si próprio.
Levante a cabeça e endireite as costas
Se é como a maioria das pessoas, não costuma pensar em lagostas com
frequência – a menos que esteja a comer uma. Contudo, estes crustáceos
interessantes e deliciosos merecem ser observados. O seu sistema nervoso
é simples, com neurónios grandes e facilmente observáveis – as células
mágicas do cérebro. Foi desta forma que os cientistas puderam
estabelecer com bastante exatidão o mapa dos circuitos neurológicos das
lagostas. Isso ajudou-nos a perceber a estrutura e as funções do cérebro
e do comportamento de animais mais complexos, incluindo os seres
humanos. As lagostas têm mais que ver connosco do que aquilo que
podíamos pensar.
As lagostas vivem no fundo do oceano. Precisam de
uma casa, de terreno onde caçar as suas presas e procurar pedaços
comestíveis do que vai caindo do contínuo caos e carnificina acima
delas. Querem um lugar seguro, onde a caça e a recoleção sejam
abundantes. Querem uma casa. Isto pode representar um problema, uma vez
que há muitas lagostas. Então, e se duas ocuparem o mesmo território no
fundo do oceano ao mesmo tempo, e ambas quiserem viver ali? E se houver
centenas de lagostas, todas a tentar estabelecer o seu território e
alimentar a sua família no mesmo espaço sobrelotado de areia e lixo?
Outras
criaturas têm este problema. Quando os pássaros migram para Norte, na
primavera, por exemplo, iniciam disputas territoriais ferozes. O seu
canto, tão bonito e pacífico aos ouvidos humanos, é como um grito ou uma
sirene que indica dominação. Um pássaro que é brilhante musicalmente
também é um pequeno guerreiro que proclama a sua soberania. Vejamos a
carriça, por exemplo, um pequeno pássaro feroz, comedor de insetos,
comum no Norte de África. Uma carriça acabada de chegar quer um sítio
abrigado para construir um ninho, a salvo da chuva e do vento, perto de
comida, e que seja atraente para possíveis companheiros de procriação.
Também quer convencer os competidores a ficarem longe daquele espaço.
Ora,
as carriças e as lagostas são animais bem diferentes. As lagostas não
voam nem cantam, nem se penduram nas árvores. As carriças têm penas em
vez de carapaça. As carriças não conseguem respirar debaixo de água e
dificilmente são servidas num restaurante com manteiga a acompanhar. No
entanto, os dois animais têm semelhanças importantes. Ambos são
obcecados por posição social e status, tal como muitas outras criaturas.
O norueguês Thorlief Schjelderup-Ebbe, zoólogo e psicólogo, observou
(em 1921) que até as galinhas estabelecem uma hierarquia “de bicadas”.
Quando os pássaros migram para Norte, na primavera, por
exemplo, iniciam disputas territoriais ferozes. O seu canto, tão bonito e
pacífico aos ouvidos humanos, é como um grito ou uma sirene que indica
dominação. Um pássaro que é brilhante musicalmente também é um pequeno
guerreiro que proclama a sua soberania.
A definição de “quem é quem”, no mundo das galinhas, tem implicações
importantes para a sobrevivência individual de cada ave, particularmente
em tempos de escassez de alimento. As galinhas que têm sempre
prioridade no acesso à comida que é distribuída todas as manhãs são as
galinhas famosas. Depois, seguem-se as galinhas de segunda, terceira e
quarta linha – e por aí afora, passando pelas galinhas enlameadas,
despenadas e debicadas que ocupam o estrato mais baixo e intocável da
hierarquia galinácea.
As galinhas vivem em comunidade como os
humanos dos subúrbios. O mesmo não acontece com os pássaros como as
carriças, ainda que façam parte de uma hierarquia de dominância, só que espalhada por um território maior. Os pássaros mais
espertos, fortes e saudáveis ocupam o melhor território e defendem-no.
Por causa disso, é mais provável que atraiam parceiros de alta
qualidade, aumentando assim a probabilidade de criar filhos que
sobrevivam e prosperem. Estarem protegidos do vento, da chuva e de
predadores, bem como o acesso a comida melhor, faz com que tenham uma
existência com menos pressão. O território importa, e há pouco diferença
entre direitos territoriais e estatuto social. É muitas vezes uma
questão de vida ou morte.
Se uma doença aviária e contagiosa se
espalha pela vizinhança de uma comunidade de pássaros bem
estratificados, são as aves menos dominantes, as que ocupam os lugares
inferiores da hierarquia, que têm maior probabilidade de ficar doentes e
morrer. O mesmo acontece nos aglomerados humanos, quando vírus da gripe
das aves e outras doenças se propagam pelo planeta. Os mais pobres
morrem sempre primeiro e em maior número. Estão também mais vulneráveis a
doenças não infetocontagiosas, como o cancro, a diabetes e as doenças
coronárias. Como se costuma dizer, quando a aristocracia apanha uma
constipação, a classe trabalhadora morre de pneumonia.
Porque o
território é importante, e porque os melhores lugares são sempre
insuficientes para o tamanho das populações, a procura de territórios
entre animais produz conflitos. Os conflitos, por sua vez, produzem
outro problema: como ganhar ou perder sem que as partes em desacordo
incorram em grandes perdas. Este ponto é deveras importante. Imagine que
dois pássaros iniciam uma quezília relativamente a uma boa área para
fazer um ninho. A interação pode facilmente degenerar num combate
físico. Sob tais circunstâncias, um pássaro, normalmente o maior,
acabará por ganhar – mas mesmo o vencedor pode sair ferido da luta. Isso
significa que um terceiro pássaro, mero espectador sagaz, pode avançar
de forma oportunista e derrotar o agora debilitado vencedor da primeira
batalha. Ou seja, não é um bom negócio para os dois primeiros pássaros.
Os mais pobres morrem sempre primeiro e em maior número.
Estão também mais vulneráveis a doenças não infetocontagiosas, como o
cancro, a diabetes e as doenças coronárias. Como se costuma dizer,
quando a aristocracia apanha uma constipação, a classe trabalhadora
morre de pneumonia.
Conflito e território
Ao longo de milénios, os animais que têm de coabitar no mesmo
território foram aprendendo muitos truques para estabelecer o seu
domínio e ao mesmo tempo evitar todos os danos possíveis. Um lobo
derrotado, por exemplo, deita-se no chão de barriga para cima, expondo a
garganta ao vencedor, que não se dá ao trabalho de a dilacerar. O agora
lobo dominante pode precisar de um companheiro para a caça, nem que
seja um lobo tão patético como aquele inimigo que acabou de derrotar. Os
lagartos pogonas são altamente sociáveis e acenam pacificamente com as
patas dianteiras aos outros lagartos da espécie, a fim de assinalar o
seu desejo de manter a harmonia social. Os golfinhos emitem umas
vibrações sonoras especiais enquanto caçam e em alturas de grande
excitação, para minimizar o risco de conflito entre os membros
dominantes e os membros subordinados do grupo. Esse tipo de
comportamento é endémico na comunidade dos seres vivos.
As
lagostas, sempre a correr de um lado para o outro no fundo do mar, não
são uma exceção. Se apanhar uma dúzia delas e as transportar para um
novo local pode ver os rituais e técnicas que estabelecem a hierarquia.
Cada lagosta começará por explorar o novo território, para conhecer os
seus detalhes e encontrar um refúgio protegido. As lagostas aprendem
imensas coisas sobre os lugares onde vivem e lembram-se do que
aprenderam. Se assustarmos uma junto da sua toca, ela irá recolher-se e
esconder-se lá dentro. Se a assustarmos longe da toca irá imediatamente
meter-se no esconderijo mais próximo que previamente identificou, e que,
em caso de perigo, consegue recordar onde está.
Uma lagosta
precisa de um sítio seguro para descansar, livre de predadores e das
forças da natureza. Mais: à medida que as lagostas crescem, mudam de
carapaça, o que as deixa macias e vulneráveis durante um tempo. Uma
toca, debaixo de uma rocha, dá uma boa casa para a lagosta,
especialmente se estiver localizada onde conchas e outros detritos
possam ser arrastados de forma a tapar a entrada quando a lagosta
estiver bem protegida no seu interior. Mas num novo território, pode
haver apenas um número reduzido de abrigos ideais e de esconderijos. São
escassos e valiosos. Outras lagostas procuram-nos continuamente.
Isto
significa que as lagostas se estão sempre a cruzar umas com as outras
quando andam a explorar. Estudos revelam que até uma lagosta que cresceu
em isolamento sabe o que fazer quando algo desse género acontece. A
lagosta revela comportamentos complexos de defesa e agressividade que
estão programados no seu sistema nervoso. Começa a dançar, como um
pugilista, abrindo e erguendo as suas tenazes, recuando, avançando, indo
de um lado para o outro, como se espelhasse os movimentos do seu
oponente, agitando as suas tenazes para trás e para diante. Ao mesmo
tempo, emite um jato especial, por baixo dos olhos, para lançar
correntes de líquido contra o adversário. Esse líquido contém uma
mistura de químicos que informa a outra lagosta do tamanho, sexo, saúde e
humor lagosta que emite o jato.
Por vezes, uma lagosta percebe logo, tendo em conta o tamanho da
tenaz da outra, que é bem mais pequena do que a sua oponente, e recuará
sem lutar. A informação química trocada através do jato de líquido pode
ter o mesmo efeito, convencendo assim uma lagosta menos saudável, ou
agressiva, a retirar-se. Trata-se de uma resolução de disputa de Nível
1. No entanto,se duas lagostas têm tamanhos e capacidades aparentemente
semelhantes, ou se a troca do líquido não foi suficientemente
informativa, avançam para uma resolução da disputa de Nível 2.
Chicoteando
as antenas loucamente, e com as tenazes em riste, uma delas irá
avançar, e a outra recuar. Em seguida, a que estava à defesa avança, e a
agressora inicial irá recuar. Depois de alguns assaltos em que este
comportamento se repete, a lagosta mais nervosa pode sentir que
continuar não é o melhor para ela. Então, irá recolher a cauda, andar
para trás e desaparecer, para tentar a sua sorte noutro lugar. No
entanto, se nenhuma ceder, as lagostas saltam para o Nível 3 da
resolução de disputas, que implica um combate genuíno.
Desta vez,
as lagostas enraivecidas enfrentam-se violentamente, com as tenazes
abertas, de forma a agarrar o adversário. Cada uma tenta virar a outra
de costas. Uma lagosta que fique de patas para o ar conclui que o seu
oponente é capaz de infligir danos sérios. Por isso, por norma, desiste e
desaparece (embora guarde um forte ressentimento e maldiga a
vencedora). Se nenhuma conseguir virar a outra – ou se não desistirem
mesmo depois de capotadas – as lagostas avançam para o Nível 4. Isso
envolve riscos extremos e não é algo em que embarquem sem ponderação:
uma ou mesmo as duas lagostas sairão do embate com danos, talvez fatais.
Os
crustáceos avançam um para o outro com uma velocidade crescente. As
tenazes estão abertas, para que possam apanhar uma perna, uma antena, um
olho, qualquer coisa que esteja exposta e vulnerável. Agarrada alguma parte do corpo, a lagosta em
situação de superioridade irá recuar abruptamente, com a tenaz bem
fechada, tentando arrancar um pedaço da outra. As disputas que escalam
até este ponto criam, por norma, e de forma clara, um vencedor e um
derrotado. E o derrotado raramente sobrevive, em particular se persistir
no território ocupado pelo vencedor, agora um inimigo mortal.
No
rescaldo de uma batalha perdida, mesmo que tenha sido agressiva, uma
lagosta não quer lutar mais, mesmo se contra um adversário anteriormente
derrotado. Um concorrente vencido perde a confiança, por vezes durante
dias. A derrota pode ter consequências ainda mais graves. Se uma lagosta
dominante é mal derrotada, o seu cérebro basicamente dissolve-se. Em
seguida, ela desenvolve um novo cérebro subordinado – mais apropriado à
sua nova e modesta posição.
O cérebro original não é sofisticado
para produzir a transformação de rei em súbdito sem uma completa
dissolução e regeneração. Qualquer pessoa que tenha sofrido uma dolorosa
transformação após uma séria derrota, no amor ou no trabalho, pode
sentir alguma proximidade com o crustáceo que já foi bem-sucedido.
A neuroquímica da derrota e da vitória
A química do cérebro de uma lagosta derrotada é diferente da de uma
lagosta vencedora. Isso reflete-se na sua postura. Se uma lagosta é
confiante ou medrosa, isso depende do rácio de dois químicos que
controlam a comunicação entre os neurónios da lagosta: a serotonina e a
octopamina. Ganhar ou perder uma luta aumenta o rácio do primeiro em
relação ao segundo.
Uma lagosta com elevados níveis de serotonina e
baixos níveis de octopamina, é um marisco convencido, que se pavoneia e
que está menos inclinado a recuar caso seja desafiado. Isto porque a
serotonina ajuda a regular a postura do crustáceo. Uma lagosta estende
os seus apêndices para que pareça grande e alta, como o Clint Eastwood
num western spaghetti. Quando uma lagosta que acabou de perder uma
batalha é exposta à serotonina, estica-se toda, e avança até sobre
adversários que a derrotaram, agora capaz de lutar mais tempo e com mais
ferocidade. As drogas receitadas a seres humanos deprimidos e que
produzem serotonina têm esses mesmos efeitos químicos e comportamentais.
Numa
das demonstrações mais impressionantes da evolução contínua da vida na
Terra, o Prozac até anima lagostas. Muita serotonina, pouca octopamina –
é isso que caracteriza o vencedor. A configuração neuroquímica oposta,
com um rácio mais alto de octopamina relativamente à serotonina, produz
na lagosta uma postura derrotada, inibida, encolhida, sem força,
provavelmente dispersa e disposta a desaparecer ao primeiro sinal de
problemas. A serotonina e a octopamina também regulam o reflexo dos
movimentos rápidos da cauda, que serve para propulsionar rapidamente a
lagosta para trás, caso esta precise de fugir. Numa lagosta derrotada, é
preciso menos provocação para que seja acionado esse reflexo. O mesmo
se pode verificar nos reflexos de um soldado ou de uma criança
maltratada, que padeçam de perturbação de stress pós-traumático.
Numa das demonstrações mais impressionantes da evolução
contínua da vida na Terra, o Prozac até anima lagostas. Muita
serotonina, pouca octopamina – é isso que caracteriza o vencedor
O princípio da distribuição desigual
Quando uma lagosta derrotada ganha coragem e se atreve a lutar
novamente, é mais provável que venha a perder, estatisticamente, do que
seria de esperar – tendo em conta lutas anteriores. Já a lagosta que
venceu, por outro lado, terá mais probabilidade de ganhar a batalha
seguinte. É uma espécie de mundo em que a lagosta vencedora ganha tudo,
tal como acontece nas sociedades humanas, onde um por cento da população
– os mais ricos – tem mais dinheiro do que 50 por cento da população
mundial mais pobre – e onde as 85 pessoas mais ricas do mundo têm mais
dinheiro do que os 3,5 mil milhões mais pobres.
O mesmo princípio
brutal da distribuição desigual aplica-se ao domínio financeiro – aliás,
aplica-se onde quer que haja produção criativa. A maioria dos estudos
científicos é publicada por um pequeno grupo de cientistas. Uma pequena
porção de músicos produz a maioria da música comercial gravada e
vendida. Apenas um punhado de autores vende grande parte dos livros
comercializados. Nos Estados Unidos, são publicados anualmente 1,5
milhões de títulos! No entanto, apenas 500 desses títulos vendem mais de
cem mil cópias.12 De forma semelhante, apenas quatro compositores
clássicos (Bach, Beethoven, Mozart e Tchaikovsky) escreveram grande
parte da música tocada hoje pelas orquestras modernas.
De volta ao
marisco beligerante: não é preciso muito tempo para que as lagostas,
depois de se testarem umas às outras, aprendam quem podem desafiar e
quem devem evitar – e uma vez aprendido, a hierarquia resultante é extremamente estável. Tudo o
que uma lagosta vencedora precisa de fazer, uma vez vencidas as
batalhas, é mover as suas antenas de uma forma ameaçadora, e um
adversário anterior irá desaparecer rapidamente numa nuvem de areia. Uma
lagosta mais fraca deixará de tentar, aceitará o seu estatuto inferior,
e assim conseguirá manter as pernas ligadas ao corpo. A lagosta de
topo, pelo contrário – ocupando o melhor refúgio, descansando bem,
comendo boas refeições –, mostra o seu domínio no território, afastando
as lagostas submissas das suas tocas durante a noite, só para lhes
mostrar quem manda.
Raparigas
As lagostas fêmeas (que também lutam ferozmente por território
durante os períodos maternais da sua existência) identificam de imediato
o macho alfa, e ficam irresistivelmente atraídas por ele. É uma
estratégia brilhante, na verdade. E é uma estratégia usada pelas fêmeas
de muitas outras espécies, incluindo entre os humanos. Em vez de se
esforçarem na difícil tarefa de calcular qual o melhor macho, as fêmeas
solucionam o problema recorrendo à hierarquia da dominância entre os
machos. As fêmeas deixam que eles lutem entre si, e depois escolhem os
seus pretendentes a partir do topo. O que acontece no mercado financeiro
é muito semelhante – o valor de uma empresa é determinado pela
competição com as outras.
Quando as fêmeas estão prestes a soltar
as suas carapaças e ficam menos agressivas, começam a interessar-se na
procriação. Passam mais tempo junto da toca do macho dominante, emitindo
cheiros afrodisíacos na sua direção, tentando seduzi-lo. Foi o caráter
mais agressivo do macho que lhe trouxe sucesso, por isso, é provável que
reaja de forma dominante e agressiva. Mais: é grande, saudável e
poderoso. Não é uma tarefa fácil desviar a sua atenção da luta para a
procriação. (Se devidamente seduzido, no entanto, ele mudará esse
comportamento junto da fêmea. Isto é o equivalente, para as lagostas, de
As cinquenta sombras de Grey, um dos livros mais vendidos de todos os
tempos, com o eterno enredo arquétipo da Bela e o Monstro. Este tipo de
comportamento é continuamente representado nas fantasias literárias,
sexualmente explícitas, e populares entre as mulheres – o que, entre os
homens, tem o seu equivalente nas fotografias de mulheres nuas.)
No
entanto, deve ser assinalado que o mero poder físico é uma base
instável para se estabelecer um domínio duradouro, como o primatólogo
holandês Frans de Waal se esforçou por demonstrar. Entre os grupos de chimpanzés que estudou, os machos com
mais sucesso a longo prazo tinham de reforçar o seu poder físico com
atributos mais sofisticados. Até o chimpanzé mais brutal pode ser
afastado, por exemplo, por dois adversários ao mesmo tempo. Como
consequência, os machos que se mantêm no topo mais tempo são aqueles que
formam colaborações recíprocas com os compatriotas com menos estatuto, e
que prestam uma atenção cuidada às fêmeas e às suas crias. O
estratagema dos políticos de beijar bebés nas campanhas eleitorais tem
literalmente milhões de anos. Mas as lagostas são mais primitivas, por
isso, os elementos mais básicos do enredo da Bela e o Monstro são
suficientes para elas.
Mas porque tem isto relevância? Por causa
de um espantoso número de razões, além daquelas que são obviamente
cómicas. Primeiro, sabemos que as lagostas, de uma forma ou outra, estão
no planeta há pelo menos 350 milhões de anos. É muito tempo. Há 65
milhões de anos ainda havia dinossauros. É um passado inimaginavelmente
distante para nós. No entanto, para as lagostas, os dinossauros eram os
novos-ricos, que apareceram e desapareceram na corrente do tempo.
Isto
significa que as hierarquias da dominância têm sido permanentes e
essenciais nos ambientes onde evoluíram formas complexas de vida. Há 330
milhões de anos, os cérebros e os sistemas nervosos eram muito simples.
Porém, já tinham a estrutura e dispunham da neuroquímica necessária
para processar informações sobre estatuto e sociedade. A importância
deste facto não deve ser menosprezada.
A natureza da Natureza
A parte do nosso cérebro que verifica a nossa posição na hierarquia
da dominância é, dessa forma, excecionalmente antiga e fundamental. É a
matriz do sistema de controlo, modulando as nossas perceções, valores,
emoções, pensamentos e ações. Afeta poderosamente cada aspeto do nosso
Ser, de forma consciente e inconsciente. E é por isso que quando somos derrotados reagimos como as lagostas que perderam uma luta. A
nossa postura murcha. Baixamos os olhos para o chão. Sentimo-nos
ameaçados, magoados, ansiosos e fracos.
Se as coisas não melhoram,
ficamos deprimidos. Sob essas condições, não podemos lutar como a vida
exige, e tornamo-nos alvos fáceis dos acossadores de carapaça dura. Mas
não são apenas as semelhanças comportamentais e experienciais que se
revelam surpreendentes. Grande parte da neuroquímica também é a mesma
das lagostas.
Consideremos a serotonina, o químico que regula a
postura e a fuga no caso da lagosta. As lagostas no fundo da hierarquia
produzem menos serotonina. Isso também é verdade para os seres humanos
no fundo da hierarquia (e os níveis baixos de serotonina reduzem-se com
cada derrota). Um nível baixo de serotonina significa redução na
confiança. Significa mais vulnerabilidade ao stress e uma preparação
mais dispendiosa em caso de emergência – porque tudo pode acontecer, a
qualquer momento, no fundo da hierarquia da dominância (e raramente
coisas boas).
Um nível baixo de serotonina significa menos
felicidade, mais dor, ansiedade, doença, e uma vida mais curta, tanto
entre os humanos como entre os crustáceos. Nos lugares cimeiros da
hierarquia da dominância, por norma, os indivíduos têm níveis mais
elevados de serotonina, e são menos propensos à doença, depressão e
morte, mesmo quando fatores como o rendimento – ou, para as lagostas, a
comida – são constantes. A importância disto deve ser realçada.
Uma lagosta com elevados níveis de serotonina e baixos
níveis de octopamina, é um marisco convencido, que se pavoneia e que
está menos inclinado a recuar caso seja desafiado. Isto porque a
serotonina ajuda a regular a postura do crustáceo. Uma lagosta estende
os seus apêndices para que pareça grande e alta, como o Clint Eastwood
num western spaghetti.
Topo e fundo
Na base do nosso cérebro, sob os nossos pensamentos e sentimentos,
existe uma calculadora fundamental e impossível de descrever que
monitoriza a nossa posição exata na sociedade – numa escala de um a dez,
digamos. Se somos o número um, o estatuto mais elevado, somos um
sucesso avassalador. Se somos homens, temos acesso preferencial aos
melhores sítios para viver e a comida de mais alta qualidade. As pessoas
competem entre si para nos fazerem favores. Temos oportunidades
ilimitadas para estabelecer contacto romântico e sexual.
Somos uma
lagosta de sucesso, e as fêmeas mais desejadas fazem fila, procuram a
nossa atenção. Se somos uma fêmea, temos acesso a muitos pretendentes de
alta qualidade: altos, fortes e simétricos; criativos, de confiança,
honestos e generosos. E, tal como o nosso companheiro macho, iremos
competir ferozmente, até impiedosamente, para manter ou melhorar a nossa
posição entre as fêmeas igualmente competitivas na hierarquia da
procriação. Embora seja menos provável que usemos força física com esse
objetivo, há muitos truques e estratégias ao nosso dispor, incluindo
denegrir as nossas concorrentes, e podemos mesmos ser peritos a fazê-lo.
Se,
pelo contrário, estamos no fundo da hierarquia, sejamos macho ou fêmea,
não temos onde viver (ou pelo menos um sítio bom). A comida é terrível
ou até passamos fome. Temos uma débil condição física e mental. Não despertamos interesse romântico
em praticamente ninguém, a menos que esteja tão desesperado como nós. É
mais provável que fiquemos doentes, que envelheçamos depressa, morrendo
jovens, com poucas pessoas, se não mesmo nenhumas, que chorem a nossa
morte.
Até o dinheiro pode não ter qualquer serventia. Não
saberemos como o usar, porque é difícil utilizar o dinheiro
apropriadamente, em particular se não nos for familiar. O dinheiro irá
deixar-nos mais vulneráveis às tentações perigosas, como o álcool e as
drogas, que são muito mais recompensadoras se fomos privados de prazer
durante um longo período. O dinheiro também fará de nós alvos para
predadores e psicopatas, que prosperam através da exploração daqueles
que ocupam os lugares mais baixos da sociedade. O fundo da hierarquia da
dominância é um lugar terrível e perigoso.
A parte antiga do
cérebro, especializada em garantir o nosso domínio, observa a forma como
somos tratados por outras pessoas. Usando essas provas, calcula e
determina o nosso valor e atribui-nos um estatuto. Se somos considerados
pelos nossos pares como de pouca importância, a produção de serotonina é
reduzida. Isso faz de nós muito mais reativos, física e
psicologicamente, a qualquer circunstância ou evento que possa produzir
emoções, particularmente se são negativas. Precisamos de ser reativos.
Emergências são comuns no fundo da hierarquia, e é preciso estarmos
prontos para sobreviver.
Infelizmente, essa resposta física, de
constante estado de alerta, gasta muita energia preciosa e recursos
físicos. Essa resposta é aquilo que chamamos stress, e não é, de forma
alguma, apenas psicológica. É um reflexo das limitações genuínas em
circunstâncias lamentáveis. Quando funciona no fundo da hierarquia, o
cérebro antigo assume que até o mais pequeno e inesperado impedimento
pode criar uma incontrolável corrente de eventos negativos que terão de
ser enfrentados sem ajuda de ninguém, porque amigos que nos ajudem são
algo raro nas margens da sociedade.
Como tal, iremos continuar a
sacrificar aquilo que, de outra forma, podíamos armazenar fisicamente
para o futuro, mas que usamos no estado de alerta constante e na
possibilidade de uma ação iminente em estado de pânico. Quando não
sabemos o que fazer, temos de estar preparados para fazer tudo e mais
alguma coisa, caso seja necessário. Estamos ao volante do nosso carro, a
pisar simultaneamente o travão e o acelerador, prestes a que tudo
desmorone. Esse cérebro antigo até desliga o nosso sistema imunitário,
usando agora, durante as crises do presente, a energia e os recursos que
serão precisos para garantir a nossa saúde no futuro.
Quando não sabemos o que fazer, temos de estar
preparados para fazer tudo e mais alguma coisa, caso seja necessário.
Estamos ao volante do nosso carro, a pisar simultaneamente o travão e o
acelerador, prestes a que tudo desmorone. Esse cérebro antigo até
desliga o nosso sistema imunitário, usando agora, durante as crises do
presente, a energia e os recursos que serão precisos para garantir a
nossa saúde no futuro.
Ficamos mais impulsivos, de forma a reagir, por exemplo, a qualquer
oportunidade de sexo, mesmo de curto prazo, ou a qualquer possibilidade
de sentir prazer, independentemente da baixa qualidade, do
constrangimento ou da ilegalidade desse tipo de prazer. E há mais
probabilidade de vivermos, e morrermos, de forma descuidada, para
conseguirmos uma oportunidade de sentir prazer. As exigências físicas do
constante estado de alerta e emergência irão desgastar-nos de todas as
formas possíveis.
Por outro lado, se tivermos um estatuto elevado,
os mecanismos frios e reptilianos do cérebro antigo assumem que o nosso
nicho é protegido, produtivo e seguro, e que estamos bem sustentados
pelo apoio social, considerando que a hipótese de que algo nos
danificará é pequena. Uma mudança pode significar uma oportunidade, em
vez de um desastre. A serotonina flui abundantemente. Isto deixa-nos
confiantes e calmos, com uma postura ereta, e reduz bastante o estado de
alerta. Porque a nossa posição está assegurada, é provável que o futuro
seja positivo. Vale a pena pensar a longo prazo e planear um amanhã
melhor. Não precisamos de agarrar impulsivamente qualquer migalha que
encontremos no caminho, porque, de forma realista, podemos esperar que
as coisas boas se manterão acessíveis. Podemos adiar a gratificação, sem
que tenhamos de renunciar a ela para sempre. Podemos dar-nos ao luxo de
sermos cidadãos sensatos e de confiança.
Avaria
Todavia, por vezes, o mecanismo pode enganar-se. Hábitos erráticos de
sono e alimentação podem interferir com o seu funcionamento. A
incerteza pode desregulá-lo. O corpo, com as suas várias partes, precisa
de funcionar como uma orquestra bem ensaiada. Cada sistema tem de
desempenhar o seu papel de forma apropriada e exatamente ao mesmo tempo,
ou espera-nos o ruído e o caos. Por isso é que as rotinas são tão
necessárias.
As ações que repetimos diariamente precisam de ser
automatizadas. Têm de ser transformadas em hábitos estáveis e seguros,
de forma a perderem a sua complexidade e a ganhar os atributos daquilo
que é previsível e simples. Isto pode ser percebido de forma mais clara
no caso das crianças pequenas, que são encantadoras e cómicas e
divertidas, quando os seus horários de sono e refeições são estáveis;
mas que podem ser horríveis e choronas e impossíveis quando o contrário
acontece.
É por essas razões que pergunto sempre aos meus
pacientes clínicos sobre os seus hábitos de sono. Acordam de manhã,
aproximadamente à hora que a maioria das pessoas sai da cama, mantendo
esse horário todos os dias? Se a resposta é não, tratar disso é a
primeira coisa a fazer. Não importa tanto se vão para a cama à mesma
hora todas as noites, mas acordar consistentemente à mesma hora é uma
necessidade absoluta. A ansiedade e a depressão não podem ser realmente
tratadas se o paciente tiver comportamentos diários imprevisíveis. Os
sistemas que regulam as emoções negativas estão intimamente ligados ao
funcionamento apropriado dos ritmos dos ciclos circadianos.
A
questão seguinte que coloco aos meus pacientes tem que ver com o
pequeno-almoço. Aconselho-os a comer um pequeno-almoço rico em gordura e
proteínas pouco depois de acordarem (sem hidratos de carbono simples, sem açúcares, uma vez que estes são
digeridos rapidamente, e produzem um pico de glicemia tão rápido como a
consequente queda dos níveis de açúcar no sangue). Isto porque as
pessoas ansiosas e deprimidas já sofrem de stress, particularmente se as
suas vidas deixaram de estar sob controlo há algum tempo. Como tal, os
seus corpos estão preparados para segregar insulina sempre que
desempenham alguma atividade mais complexa ou exigente. Se o fazem
depois de uma noite sem comer, ou antes de uma refeição, o excesso de
insulina na corrente sanguínea irá limpar todo o açúcar no sangue.
Assim, passam a sofrer de hipoglicemia e tornam -se instáveis, tanto
psicológica como fisiologicamente. O dia inteiro. Os seus sistemas não
podem ser reiniciados até que voltem a dormir. Tive muitos pacientes
cuja ansiedade foi reduzia apenas porque começaram a tomar o
pequeno-almoço e a dormir de acordo com um horário previsível.
Há
muitos sistemas de interação entre o cérebro, o corpo e o mundo social
que podem ser apanhados nos ciclos de retorno positivo. As pessoas
deprimidas, por exemplo, podem começar a sentir-se inúteis, um fardo,
além de tolhidas pela tristeza e pela dor. Isto faz com que se afastem
do contacto com amigos e família. E esse afastamento faz com que se
sintam ainda mais sozinhas e isoladas, e, como tal, mais suscetíveis a
sentirem-se inúteis e um fardo. Depois, afastam -se mais um pouco. Dessa
forma, a depressão entra no processo de amplificação e espiral.
Pergunto sempre aos meus pacientes clínicos sobre os
seus hábitos de sono. Acordam de manhã, aproximadamente à hora que a
maioria das pessoas sai da cama, mantendo esse horário todos os dias? Se
a resposta é não, tratar disso é a primeira coisa a fazer. Não importa
tanto se vão para a cama à mesma hora todas as noites, mas acordar
consistentemente à mesma hora é uma necessidade absoluta.
Se alguém se magoa seriamente em algum momento da vida – um trauma –,
o mecanismo da dominância pode transformar-se de maneira a intensificar
a dor adicional, em vez de a reduzir. Isso acontece com frequência
entre pessoas que, embora já adultas, foram violentamente maltratadas
durante a infância ou adolescência. Tornam -se ansiosas e ficam
perturbadas, com ansiedade. Escudam -se, assumindo uma postura
defensiva, e evitam o contacto visual quando interpretado como um
desafio de dominância.
Isso significa que os danos causados pelos
abusos (o estatuto baixo na hierarquia e a redução da confiança) podem
continuar, mesmo após os abusos terem terminado. Nos casos mais simples,
as pessoas que antes estavam no fundo da hierarquia já amadureceram, e
alcançaram lugares novos na sua vida, tiveram sucesso. Mas não se dão
verdadeiramente conta disso. As suas adaptações fisiológicas a uma
realidade anterior são agora contraprodutivas, e essas pessoas são mais
tensas e incertas do que seria necessário. Em casos mais complexos, a
habitual subordinação produz uma pessoa mais ansiosa e insegura do que o
necessário, e a sua postura habitualmente submissa continua a atrair
atenção negativa dos abusadores que existem no mundo dos adultos. Nessas
situações, a consequência psicológica dos abusos anteriores aumenta a
probabilidade de abusos continuados no presente (ainda que não tivesse
de ser assim, por causa do amadurecimento, de uma mudança geográfica,
dos estudos, ou de uma melhoria de estatuto).
Levanta-te
Por vezes, as pessoas são agredidas porque não conseguem defender-se.
Isso pode acontecer a pessoas mais fracas fisicamente do que os seus
adversários. Esta é a razão mais comum nas agressões e no acosso entre
crianças. Nem mesmo o miúdo de seis anos mais forte tem hipótese contra
um rapaz de nove. Porém, muito desse poder diferencial desaparece na
idade adulta, com a relativa estabilização e equiparação do tamanho
físico (exceto no que diz respeito a homens e mulheres, sendo que
tipicamente os homens são maiores e mais fortes, especialmente na parte
superior do corpo), tal como as crescentes punições, por norma,
aplicadas na idade adulta àqueles que insistem na intimidação física.
Mas,
com a mesma frequência, as pessoas são acossadas por não reagirem. Isto
não é invulgar em pessoas quem têm um temperamento mais compassivo e
abnegado – e em particular se também têm níveis elevados de emoções
negativas, e que quando confrontados de forma sádica por alguém,
manifestam de forma audível o seu sofrimento (crianças que choram com
mais facilidade, por exemplo, são acossadas com mais frequência). O
mesmo sucede com quem decidiu, seja por que motivo for, que qualquer
forma de agressão, incluindo sentimentos de raiva, são moralmente
reprováveis.
Já vi pessoas, com uma sensibilidade particularmente
suscetível à tirania mesquinha e ao excesso de agressividade, impedirem
mesmo todas as emoções que possam resultar nalgum desses comportamentos.
Com frequência, são pessoas cujos pais eram excessivamente
controladores e irados. No entanto, as forças psicológicas nunca são
unidimensionais no seu valor, e o verdadeiramente chocante potencial da
raiva e da agressão, para produzir crueldade e caos, é equilibrado pela
capacidade dessas forças primordiais em lutar contra a opressão, dizer a
verdade, e criar um movimento determinado para diante em tempos de
conflito, incerteza e perigo.
Com a sua capacidade para a agressão
presa no colete de forças de uma moralidade demasiado limitada, aqueles
que são apenas compassivos e abnegados (e ingénuos e suscetíveis a
serem explorados) não conseguem convocar a raiva, verdadeiramente justa e
apropriada à legítima defesa, para se protegerem. Se podemos morder,
geralmente não precisamos de o fazer. Quando integrada com perícia, a
capacidade de resposta à agressão e à violência diminui em vez de
aumentar a probabilidade de que a agressão venha a ser necessária.
Se
no princípio do ciclo de agressão dissermos que não, e se formos
consequentes com o que dissermos (o que significa que afirmamos a nossa
recusa em termos bem claros, e não arredamos pé da nossa posição),
então, a margem para a opressão por parte do opressor ficará
apropriadamente circunscrita e limitada. Certamente, as forças da
tirania expandem-se para preencher o espaço disponível para a sua
existência. As pessoas que se recusam a produzir respostas territoriais,
apropriadas à defesa pessoal, encontram-se tão abertas à exploração
como aquelas que genuinamente não conseguem defender os seus direitos
por causa de incapacidades mais essenciais ou de um verdadeiro
desequilíbrio de poderes.
As pessoas ingénuas e inofensivas
costumam guiar as suas perceções e ações de acordo com alguns axiomas
simples: basicamente, as pessoas são boas; ninguém quer realmente magoar
os outros; a ameaça e, certamente, o uso de força, física ou de
qualquer outra espécie, é algo errado. Estes axiomas colapsam, ou
acontece alguma coisa pior, na presença de indivíduos que são
verdadeiramente malévolos. Acontece alguma coisa pior quer dizer que as
crenças ingénuas podem tornar-se num convite ao abuso, porque aqueles
que querem causar danos tornaram-se especialistas em atacar pessoas que
pensam exatamente assim. Sob tais condições, esses axiomas têm de ser
reformulados. Na minha prática clínica, com frequência chamo à atenção
os meus pacientes que acham que as pessoas boas nunca se zangam com a
realidade crua dos seus ressentimentos.
Ninguém
gosta de ser maltratado, mas as pessoas frequentemente aturam
comportamentos desse género durante demasiado tempo. Por isso, faço com
que olhem para os seus ressentimentos, primeiro enquanto raiva, e depois
como uma indicação de que algo precisa de ser dito, se não mesmo feito
(porque a honestidade o exige). Depois, faço com que vejam isso como
parte da força que mantém a tirania à distância – tanto a nível social
como individual. Muitas burocracias são fruto de autoritários mesquinhos
que criam regras e procedimentos desnecessários apenas para expressar
ou reforçar o seu poder. Pessoas assim produzem correntes de
ressentimento nas pessoas ao seu redor, que, se manifestadas, limitariam
a expressão do poder patológico do tirano. É desta maneira que a
vontade do indivíduo em defender-se também protege os outros da
corrupção da sociedade.
Quando pessoas mais ingénuas descobrem a
capacidade de sentir raiva, ficam chocadas, por vezes de forma profunda.
Um exemplo contundente disso mesmo pode ser encontrado na
suscetibilidade de soldados com perturbação de stress pós-traumático,
que ocorre com frequência por causa de algo que fizeram, em vez de algo
que lhes aconteceu. Reagem como os monstros que podem ser nas condições
extremas do campo de batalha, e a revelação dessa capacidade destrói o
seu mundo.
Não é de admirar. Talvez assumissem que todos os
perpetradores mais terríveis da História eram pessoas muito diferentes
deles. Talvez nunca tenham sido capazes de ver em si mesmos a capacidade
para oprimir e acossar (ou até a capacidade para serem assertivos e
bem-sucedidos). Tive pacientes que ficavam de tal maneira aterrorizados
que, literalmente, tinham convulsões histéricas ao ver o olhar malévolo
na cara dos seus ata cantes. Tipicamente, tais indivíduos são oriundos
de famílias superprotegidas, onde não se permite que exista nada de
terrível, e tudo é uma terra de fadas e maravilhas.
Quando ocorre o
despertar – quando as pessoas, em tempos ingénuas, reconhecem em si
mesmas as sementes do mal e da monstruosidade, e se veem como perigosas
(pelo menos potencialmente), os seus medos diminuem. Desenvolvem um
maior respeito por si mesmos. Nesse momento, talvez comecem a resistir à
opressão. Percebem que têm a capacidade para se defenderem porque
também são terríveis. Percebem que podem e devem defender-se, porque
começam a compreender quão genuinamente monstruosas se tornarão se assim
não for – alimentam os seus ressentimentos, transformando-os em desejos
destrutivos. Repetindo: há muito poucas diferenças entre a capacidade
para o caos e a destruição e a força de caráter. Esta é uma das lições
mais difíceis de aprender na vida.
Talvez sejamos perdedores. Ou
talvez não – mas, se somos, não temos de permanecer assim. Talvez
tenhamos apenas um mau hábito. Talvez sejamos um conjunto de maus
hábitos. No entanto, mesmo que a nossa pobre postura resulte de algo que
honestamente nos aconteceu – mesmo não sendo populares e tendo sido
acossados em casa e na escola –, isso agora já não é apropriado. As
circunstâncias mudam. Se andamos cabisbaixos, com a mesma postura que
caracteriza a lagosta derrotada, as pessoas irão atribuir-nos um
estatuto mais baixo, e aquilo que partilhamos com os crustáceos, na base
no nosso cérebro, irá conferir-nos um número baixo na hierarquia da
dominância. Então, o cérebro produzirá menos serotonina. Isso fará com
que fiquemos menos felizes, e mais ansiosos e tristes, e com tendência a
recuar quando devíamos defender-nos. Isso também reduzirá a
probabilidade de vivermos num bairro melhor, de ter acesso a recursos de
mais qualidade, e obter um parceiro saudável e desejável. Será mais
provável que abusemos de cocaína e álcool, porque vivemos para o
presente, num mundo com um futuro demasiado incerto. Irá aumentar a
suscetibilidade de sofrermos de uma doença de coração, de cancro ou
demência. Resumindo: nada de bom.
Levantarmo-nos e endireitarmos
as costas significa construir a arca que protege o mundo do dilúvio,
guiando o nosso povo pelo deserto, depois de termos escapado da tirania,
estando a caminho de um lar e de um país mais confortável, e anunciar a
palavra profética àqueles que ignoram as viúvas e as crianças.
Significa carregar a cruz que marca o X, ou lugar onde nós e o Ser se
intersetam de forma tão terrível. Significa lançar a ordem rígida, morta
e demasiado tirânica de volta para o caos onde foi gerada; significa
suportar a incerteza subsequente e estabelecer, como consequência, uma
ordem melhor, com mais significado e mais produtiva.
Se andamos cabisbaixos, com a mesma postura que
caracteriza a lagosta derrotada, as pessoas irão atribuir-nos um
estatuto mais baixo, e aquilo que partilhamos com os crustáceos, na base
no nosso cérebro, irá conferir-nos um número baixo na hierarquia da
dominância. Então, o cérebro produzirá menos serotonina. Isso fará com
que fiquemos menos felizes, e mais ansiosos e tristes, e com tendência a
recuar quando devíamos defender-nos.
Por isso, tenhamos atenção à postura. Paremos de andar dobrados e
murchos. Digamos aquilo que realmente pensamos. Que os nossos desejos
venham primeiro, como se tivéssemos direito a eles – pelo menos tanto
direito como os outros. Caminhemos direitos e olhemos em frente.
Arrisquemos ser perigosos. Vamos encorajar a serotonina a circular
abundantemente através dos circuitos cerebrais desesperados pelo seu
efeito tranquilizante.
As pessoas, incluindo nós, assumirão que
somos competentes e capazes (ou, pelo menos, não concluirão o contrário
de imediato). Fortalecidos pelas respostas positivas que recebemos,
passaremos a estar menos ansiosos. Então, iremos descobrir que é mais
fácil prestar atenção às subtis pistas sociais que as pessoas trocam
quando comunicam. As conversas fluirão melhor, com menos pausas
desconfortáveis. Isso fará com que seja mais provável conhecer pessoas,
interagir com elas, e impressioná-las. Fazer isso não irá apenas
aumentar a probabilidade de que coisas boas nos aconteçam – também fará
com que essas coisas boas nos façam sentir ainda melhor quando
acontecem.
Com uma postura correta e fortalecidos, podemos abraçar
o Ser e trabalhar para melhorá-lo ainda mais. Fortalecidos dessa forma,
podemos aguentar as dificuldades de pé, mesmo durante a doença da
pessoa amada, mesmo durante a morte dos pais, e permitir a outros que
encontrem força a nosso lado, quando, de outra forma, seriam tomados
pelo desespero. Fortalecidos dessa maneira, embarcaremos na viagem das
nossas vidas, deixaremos a luz brilhar, por assim dizer, na colina
paradisíaca, e perseguiremos o destino a que temos direito. O sentido da
nossa vida pode ser suficiente para manter à distância a influência
corruptora do desespero mortal. Então, talvez possamos aceitar o
terrível fardo do mundo e encontrar alegria.
Procuremos inspiração
na lagosta vitoriosa, com os seus 350 milhões de anos de sabedoria
prática. Levantemos a cabeça e endireitemos as costas.
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Fonte: https://observador.pt/especiais/as-12-regras-para-uma-vida-sem-caos-receitadas-pelo-fenomeno-jordan-peterson/
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