sábado, 17 de novembro de 2018

Jordan Peterson: As 12 regras para uma vida sem caos, receitadas pelo “fenómeno”

 
Foi lançado em Portugal o livro do psicólogo canadiano que se tornou um ícone do anti-politicamente correto. Após ler o capítulo que pré-publicamos, nunca mais olhará para uma lagosta da mesma forma.
A editora Lua de Papel/Leya lançou em Portugal, a 25 de setembro, a tradução do livro “12 regras para a vida: um antídoto para o caos“, da autoria de Jordan Peterson, outrora um obscuro psicólogo canadiano mas que, nos últimos anos, se tornou o ícone viral da luta contra o politicamente correto.

A entrevista que deu a Cathy Newman, jornalista do britânico Channel 4, tornou-se um clássico viral do YouTube e a sua popularidade subiu a cada vez que o entrevistado deixou a entrevistadora sem palavras — enquanto se debatiam temas como o pretenso fosso salarial entre homens e mulheres e, também, sobre a possibilidade de criar leis que obriguem alguém a dirigir-se a um transexual pelo pronome da sua escolha.

Hoje, as suas palestras enchem arenas não só nos EUA como, também, em Londres. É idolatrado por muitos jovens (homens, sobretudo), e até o rapper Kanye West é um fiel seguidor dos escritos de Peterson.

Após uma resposta na rede social Quora sobre as principais regras que alguém deve seguir para ter uma vida feliz e equilibrada, que também se tornou viral, Jordan Peterson decidiu expandir a análise e publicar o livro que acabou por se tornar um bestseller em todo o mundo.

Quando ler o capítulo (editado) que o Observador pré-publica, nunca mais olhará para uma lagosta da mesma forma. E ficará com uma ideia sobre a importância de andar com boa postura e costas direitas. Esse cuidado (além de um sono regular e um bom pequeno-almoço) pode fazer toda a diferença na forma como os outros o veem — e, também, na forma como se vê a si próprio.

Levante a cabeça e endireite as costas

Se é como a maioria das pessoas, não costuma pensar em lagostas com frequência – a menos que esteja a comer uma. Contudo, estes crustáceos interessantes e deliciosos merecem ser observados. O seu sistema nervoso é simples, com neurónios grandes e facilmente observáveis – as células mágicas do cérebro. Foi desta forma que os cientistas puderam estabelecer com bastante exatidão o mapa dos circuitos neurológicos das lagostas. Isso ajudou-nos a perceber a estrutura e as funções do cérebro e do comportamento de animais mais complexos, incluindo os seres humanos. As lagostas têm mais que ver connosco do que aquilo que podíamos pensar.

As lagostas vivem no fundo do oceano. Precisam de uma casa, de terreno onde caçar as suas presas e procurar pedaços comestíveis do que vai caindo do contínuo caos e carnificina acima delas. Querem um lugar seguro, onde a caça e a recoleção sejam abundantes. Querem uma casa. Isto pode representar um problema, uma vez que há muitas lagostas. Então, e se duas ocuparem o mesmo território no fundo do oceano ao mesmo tempo, e ambas quiserem viver ali? E se houver centenas de lagostas, todas a tentar estabelecer o seu território e alimentar a sua família no mesmo espaço sobrelotado de areia e lixo?

Outras criaturas têm este problema. Quando os pássaros migram para Norte, na primavera, por exemplo, iniciam disputas territoriais ferozes. O seu canto, tão bonito e pacífico aos ouvidos humanos, é como um grito ou uma sirene que indica dominação. Um pássaro que é brilhante musicalmente também é um pequeno guerreiro que proclama a sua soberania. Vejamos a carriça, por exemplo, um pequeno pássaro feroz, comedor de insetos, comum no Norte de África. Uma carriça acabada de chegar quer um sítio abrigado para construir um ninho, a salvo da chuva e do vento, perto de comida, e que seja atraente para possíveis companheiros de procriação. Também quer convencer os competidores a ficarem longe daquele espaço.

Ora, as carriças e as lagostas são animais bem diferentes. As lagostas não voam nem cantam, nem se penduram nas árvores. As carriças têm penas em vez de carapaça. As carriças não conseguem respirar debaixo de água e dificilmente são servidas num restaurante com manteiga a acompanhar. No entanto, os dois animais têm semelhanças importantes. Ambos são obcecados por posição social e status, tal como muitas outras criaturas. O norueguês Thorlief Schjelderup-Ebbe, zoólogo e psicólogo, observou (em 1921) que até as galinhas estabelecem uma hierarquia “de bicadas”.

Quando os pássaros migram para Norte, na primavera, por exemplo, iniciam disputas territoriais ferozes. O seu canto, tão bonito e pacífico aos ouvidos humanos, é como um grito ou uma sirene que indica dominação. Um pássaro que é brilhante musicalmente também é um pequeno guerreiro que proclama a sua soberania. 
 
A definição de “quem é quem”, no mundo das galinhas, tem implicações importantes para a sobrevivência individual de cada ave, particularmente em tempos de escassez de alimento. As galinhas que têm sempre prioridade no acesso à comida que é distribuída todas as manhãs são as galinhas famosas. Depois, seguem-se as galinhas de segunda, terceira e quarta linha – e por aí afora, passando pelas galinhas enlameadas, despenadas e debicadas que ocupam o estrato mais baixo e intocável da hierarquia galinácea.

As galinhas vivem em comunidade como os humanos dos subúrbios. O mesmo não acontece com os pássaros como as carriças, ainda que façam parte de uma hierarquia de dominância, só que espalhada por um território maior. Os pássaros mais espertos, fortes e saudáveis ocupam o melhor território e defendem-no. Por causa disso, é mais provável que atraiam parceiros de alta qualidade, aumentando assim a probabilidade de criar filhos que sobrevivam e prosperem. Estarem protegidos do vento, da chuva e de predadores, bem como o acesso a comida melhor, faz com que tenham uma existência com menos pressão. O território importa, e há pouco diferença entre direitos territoriais e estatuto social. É muitas vezes uma questão de vida ou morte.

Se uma doença aviária e contagiosa se espalha pela vizinhança de uma comunidade de pássaros bem estratificados, são as aves menos dominantes, as que ocupam os lugares inferiores da hierarquia, que têm maior probabilidade de ficar doentes e morrer. O mesmo acontece nos aglomerados humanos, quando vírus da gripe das aves e outras doenças se propagam pelo planeta. Os mais pobres morrem sempre primeiro e em maior número. Estão também mais vulneráveis a doenças não infetocontagiosas, como o cancro, a diabetes e as doenças coronárias. Como se costuma dizer, quando a aristocracia apanha uma constipação, a classe trabalhadora morre de pneumonia.

Porque o território é importante, e porque os melhores lugares são sempre insuficientes para o tamanho das populações, a procura de territórios entre animais produz conflitos. Os conflitos, por sua vez, produzem outro problema: como ganhar ou perder sem que as partes em desacordo incorram em grandes perdas. Este ponto é deveras importante. Imagine que dois pássaros iniciam uma quezília relativamente a uma boa área para fazer um ninho. A interação pode facilmente degenerar num combate físico. Sob tais circunstâncias, um pássaro, normalmente o maior, acabará por ganhar – mas mesmo o vencedor pode sair ferido da luta. Isso significa que um terceiro pássaro, mero espectador sagaz, pode avançar de forma oportunista e derrotar o agora debilitado vencedor da primeira batalha. Ou seja, não é um bom negócio para os dois primeiros pássaros.

Os mais pobres morrem sempre primeiro e em maior número. Estão também mais vulneráveis a doenças não infetocontagiosas, como o cancro, a diabetes e as doenças coronárias. Como se costuma dizer, quando a aristocracia apanha uma constipação, a classe trabalhadora morre de pneumonia.

Conflito e território

Ao longo de milénios, os animais que têm de coabitar no mesmo território foram aprendendo muitos truques para estabelecer o seu domínio e ao mesmo tempo evitar todos os danos possíveis. Um lobo derrotado, por exemplo, deita-se no chão de barriga para cima, expondo a garganta ao vencedor, que não se dá ao trabalho de a dilacerar. O agora lobo dominante pode precisar de um companheiro para a caça, nem que seja um lobo tão patético como aquele inimigo que acabou de derrotar. Os lagartos pogonas são altamente sociáveis e acenam pacificamente com as patas dianteiras aos outros lagartos da espécie, a fim de assinalar o seu desejo de manter a harmonia social. Os golfinhos emitem umas vibrações sonoras especiais enquanto caçam e em alturas de grande excitação, para minimizar o risco de conflito entre os membros dominantes e os membros subordinados do grupo. Esse tipo de comportamento é endémico na comunidade dos seres vivos.

As lagostas, sempre a correr de um lado para o outro no fundo do mar, não são uma exceção. Se apanhar uma dúzia delas e as transportar para um novo local pode ver os rituais e técnicas que estabelecem a hierarquia. Cada lagosta começará por explorar o novo território, para conhecer os seus detalhes e encontrar um refúgio protegido. As lagostas aprendem imensas coisas sobre os lugares onde vivem e lembram-se do que aprenderam. Se assustarmos uma junto da sua toca, ela irá recolher-se e esconder-se lá dentro. Se a assustarmos longe da toca irá imediatamente meter-se no esconderijo mais próximo que previamente identificou, e que, em caso de perigo, consegue recordar onde está.

Uma lagosta precisa de um sítio seguro para descansar, livre de predadores e das forças da natureza. Mais: à medida que as lagostas crescem, mudam de carapaça, o que as deixa macias e vulneráveis durante um tempo. Uma toca, debaixo de uma rocha, dá uma boa casa para a lagosta, especialmente se estiver localizada onde conchas e outros detritos possam ser arrastados de forma a tapar a entrada quando a lagosta estiver bem protegida no seu interior. Mas num novo território, pode haver apenas um número reduzido de abrigos ideais e de esconderijos. São escassos e valiosos. Outras lagostas procuram-nos continuamente.

Isto significa que as lagostas se estão sempre a cruzar umas com as outras quando andam a explorar. Estudos revelam que até uma lagosta que cresceu em isolamento sabe o que fazer quando algo desse género acontece. A lagosta revela comportamentos complexos de defesa e agressividade que estão programados no seu sistema nervoso. Começa a dançar, como um pugilista, abrindo e erguendo as suas tenazes, recuando, avançando, indo de um lado para o outro, como se espelhasse os movimentos do seu oponente, agitando as suas tenazes para trás e para diante. Ao mesmo tempo, emite um jato especial, por baixo dos olhos, para lançar correntes de líquido contra o adversário. Esse líquido contém uma mistura de químicos que informa a outra lagosta do tamanho, sexo, saúde e humor lagosta que emite o jato.

Há muito que o ser humano pode aprender sobre si próprio ao conhecer a biologia 
de uma lagosta, defende Jordan Peterson.

Por vezes, uma lagosta percebe logo, tendo em conta o tamanho da tenaz da outra, que é bem mais pequena do que a sua oponente, e recuará sem lutar. A informação química trocada através do jato de líquido pode ter o mesmo efeito, convencendo assim uma lagosta menos saudável, ou agressiva, a retirar-se. Trata-se de uma resolução de disputa de Nível 1. No entanto,se duas lagostas têm tamanhos e capacidades aparentemente semelhantes, ou se a troca do líquido não foi suficientemente informativa, avançam para uma resolução da disputa de Nível 2.

Chicoteando as antenas loucamente, e com as tenazes em riste, uma delas irá avançar, e a outra recuar. Em seguida, a que estava à defesa avança, e a agressora inicial irá recuar. Depois de alguns assaltos em que este comportamento se repete, a lagosta mais nervosa pode sentir que continuar não é o melhor para ela. Então, irá recolher a cauda, andar para trás e desaparecer, para tentar a sua sorte noutro lugar. No entanto, se nenhuma ceder, as lagostas saltam para o Nível 3 da resolução de disputas, que implica um combate genuíno.

Desta vez, as lagostas enraivecidas enfrentam-se violentamente, com as tenazes abertas, de forma a agarrar o adversário. Cada uma tenta virar a outra de costas. Uma lagosta que fique de patas para o ar conclui que o seu oponente é capaz de infligir danos sérios. Por isso, por norma, desiste e desaparece (embora guarde um forte ressentimento e maldiga a vencedora). Se nenhuma conseguir virar a outra – ou se não desistirem mesmo depois de capotadas – as lagostas avançam para o Nível 4. Isso envolve riscos extremos e não é algo em que embarquem sem ponderação: uma ou mesmo as duas lagostas sairão do embate com danos, talvez fatais.

Os crustáceos avançam um para o outro com uma velocidade crescente. As tenazes estão abertas, para que possam apanhar uma perna, uma antena, um olho, qualquer coisa que esteja exposta e vulnerável. Agarrada alguma parte do corpo, a lagosta em situação de superioridade irá recuar abruptamente, com a tenaz bem fechada, tentando arrancar um pedaço da outra. As disputas que escalam até este ponto criam, por norma, e de forma clara, um vencedor e um derrotado. E o derrotado raramente sobrevive, em particular se persistir no território ocupado pelo vencedor, agora um inimigo mortal.

No rescaldo de uma batalha perdida, mesmo que tenha sido agressiva, uma lagosta não quer lutar mais, mesmo se contra um adversário anteriormente derrotado. Um concorrente vencido perde a confiança, por vezes durante dias. A derrota pode ter consequências ainda mais graves. Se uma lagosta dominante é mal derrotada, o seu cérebro basicamente dissolve-se. Em seguida, ela desenvolve um novo cérebro subordinado – mais apropriado à sua nova e modesta posição.

O cérebro original não é sofisticado para produzir a transformação de rei em súbdito sem uma completa dissolução e regeneração. Qualquer pessoa que tenha sofrido uma dolorosa transformação após uma séria derrota, no amor ou no trabalho, pode sentir alguma proximidade com o crustáceo que já foi bem-sucedido.

A neuroquímica da derrota e da vitória

A química do cérebro de uma lagosta derrotada é diferente da de uma lagosta vencedora. Isso reflete-se na sua postura. Se uma lagosta é confiante ou medrosa, isso depende do rácio de dois químicos que controlam a comunicação entre os neurónios da lagosta: a serotonina e a octopamina. Ganhar ou perder uma luta aumenta o rácio do primeiro em relação ao segundo.

Uma lagosta com elevados níveis de serotonina e baixos níveis de octopamina, é um marisco convencido, que se pavoneia e que está menos inclinado a recuar caso seja desafiado. Isto porque a serotonina ajuda a regular a postura do crustáceo. Uma lagosta estende os seus apêndices para que pareça grande e alta, como o Clint Eastwood num western spaghetti. Quando uma lagosta que acabou de perder uma batalha é exposta à serotonina, estica-se toda, e avança até sobre adversários que a derrotaram, agora capaz de lutar mais tempo e com mais ferocidade. As drogas receitadas a seres humanos deprimidos e que produzem serotonina têm esses mesmos efeitos químicos e comportamentais.

Numa das demonstrações mais impressionantes da evolução contínua da vida na Terra, o Prozac até anima lagostas. Muita serotonina, pouca octopamina – é isso que caracteriza o vencedor. A configuração neuroquímica oposta, com um rácio mais alto de octopamina relativamente à serotonina, produz na lagosta uma postura derrotada, inibida, encolhida, sem força, provavelmente dispersa e disposta a desaparecer ao primeiro sinal de problemas. A serotonina e a octopamina também regulam o reflexo dos movimentos rápidos da cauda, que serve para propulsionar rapidamente a lagosta para trás, caso esta precise de fugir. Numa lagosta derrotada, é preciso menos provocação para que seja acionado esse reflexo. O mesmo se pode verificar nos reflexos de um soldado ou de uma criança maltratada, que padeçam de perturbação de stress pós-traumático.

Numa das demonstrações mais impressionantes da evolução contínua da vida na Terra, o Prozac até anima lagostas. Muita serotonina, pouca octopamina – é isso que caracteriza o vencedor

O princípio da distribuição desigual

Quando uma lagosta derrotada ganha coragem e se atreve a lutar novamente, é mais provável que venha a perder, estatisticamente, do que seria de esperar – tendo em conta lutas anteriores. Já a lagosta que venceu, por outro lado, terá mais probabilidade de ganhar a batalha seguinte. É uma espécie de mundo em que a lagosta vencedora ganha tudo, tal como acontece nas sociedades humanas, onde um por cento da população – os mais ricos – tem mais dinheiro do que 50 por cento da população mundial mais pobre – e onde as 85 pessoas mais ricas do mundo têm mais dinheiro do que os 3,5 mil milhões mais pobres.

O mesmo princípio brutal da distribuição desigual aplica-se ao domínio financeiro – aliás, aplica-se onde quer que haja produção criativa. A maioria dos estudos científicos é publicada por um pequeno grupo de cientistas. Uma pequena porção de músicos produz a maioria da música comercial gravada e vendida. Apenas um punhado de autores vende grande parte dos livros comercializados. Nos Estados Unidos, são publicados anualmente 1,5 milhões de títulos! No entanto, apenas 500 desses títulos vendem mais de cem mil cópias.12 De forma semelhante, apenas quatro compositores clássicos (Bach, Beethoven, Mozart e Tchaikovsky) escreveram grande parte da música tocada hoje pelas orquestras modernas.

De volta ao marisco beligerante: não é preciso muito tempo para que as lagostas, depois de se testarem umas às outras, aprendam quem podem desafiar e quem devem evitar – e uma vez aprendido, a hierarquia resultante é extremamente estável. Tudo o que uma lagosta vencedora precisa de fazer, uma vez vencidas as batalhas, é mover as suas antenas de uma forma ameaçadora, e um adversário anterior irá desaparecer rapidamente numa nuvem de areia. Uma lagosta mais fraca deixará de tentar, aceitará o seu estatuto inferior, e assim conseguirá manter as pernas ligadas ao corpo. A lagosta de topo, pelo contrário – ocupando o melhor refúgio, descansando bem, comendo boas refeições –, mostra o seu domínio no território, afastando as lagostas submissas das suas tocas durante a noite, só para lhes mostrar quem manda.

Raparigas

As lagostas fêmeas (que também lutam ferozmente por território durante os períodos maternais da sua existência) identificam de imediato o macho alfa, e ficam irresistivelmente atraídas por ele. É uma estratégia brilhante, na verdade. E é uma estratégia usada pelas fêmeas de muitas outras espécies, incluindo entre os humanos. Em vez de se esforçarem na difícil tarefa de calcular qual o melhor macho, as fêmeas solucionam o problema recorrendo à hierarquia da dominância entre os machos. As fêmeas deixam que eles lutem entre si, e depois escolhem os seus pretendentes a partir do topo. O que acontece no mercado financeiro é muito semelhante – o valor de uma empresa é determinado pela competição com as outras.

Quando as fêmeas estão prestes a soltar as suas carapaças e ficam menos agressivas, começam a interessar-se na procriação. Passam mais tempo junto da toca do macho dominante, emitindo cheiros afrodisíacos na sua direção, tentando seduzi-lo. Foi o caráter mais agressivo do macho que lhe trouxe sucesso, por isso, é provável que reaja de forma dominante e agressiva. Mais: é grande, saudável e poderoso. Não é uma tarefa fácil desviar a sua atenção da luta para a procriação. (Se devidamente seduzido, no entanto, ele mudará esse comportamento junto da fêmea. Isto é o equivalente, para as lagostas, de As cinquenta sombras de Grey, um dos livros mais vendidos de todos os tempos, com o eterno enredo arquétipo da Bela e o Monstro. Este tipo de comportamento é continuamente representado nas fantasias literárias, sexualmente explícitas, e populares entre as mulheres – o que, entre os homens, tem o seu equivalente nas fotografias de mulheres nuas.)

No entanto, deve ser assinalado que o mero poder físico é uma base instável para se estabelecer um domínio duradouro, como o primatólogo holandês Frans de Waal se esforçou por demonstrar. Entre os grupos de chimpanzés que estudou, os machos com mais sucesso a longo prazo tinham de reforçar o seu poder físico com atributos mais sofisticados. Até o chimpanzé mais brutal pode ser afastado, por exemplo, por dois adversários ao mesmo tempo. Como consequência, os machos que se mantêm no topo mais tempo são aqueles que formam colaborações recíprocas com os compatriotas com menos estatuto, e que prestam uma atenção cuidada às fêmeas e às suas crias. O estratagema dos políticos de beijar bebés nas campanhas eleitorais tem literalmente milhões de anos. Mas as lagostas são mais primitivas, por isso, os elementos mais básicos do enredo da Bela e o Monstro são suficientes para elas.

Mas porque tem isto relevância? Por causa de um espantoso número de razões, além daquelas que são obviamente cómicas. Primeiro, sabemos que as lagostas, de uma forma ou outra, estão no planeta há pelo menos 350 milhões de anos. É muito tempo. Há 65 milhões de anos ainda havia dinossauros. É um passado inimaginavelmente distante para nós. No entanto, para as lagostas, os dinossauros eram os novos-ricos, que apareceram e desapareceram na corrente do tempo.

Isto significa que as hierarquias da dominância têm sido permanentes e essenciais nos ambientes onde evoluíram formas complexas de vida. Há 330 milhões de anos, os cérebros e os sistemas nervosos eram muito simples. Porém, já tinham a estrutura e dispunham da neuroquímica necessária para processar informações sobre estatuto e sociedade. A importância deste facto não deve ser menosprezada.

A natureza da Natureza

A parte do nosso cérebro que verifica a nossa posição na hierarquia da dominância é, dessa forma, excecionalmente antiga e fundamental. É a matriz do sistema de controlo, modulando as nossas perceções, valores, emoções, pensamentos e ações. Afeta poderosamente cada aspeto do nosso Ser, de forma consciente e inconsciente. E é por isso que quando somos derrotados reagimos como as lagostas que perderam uma luta. A nossa postura murcha. Baixamos os olhos para o chão. Sentimo-nos ameaçados, magoados, ansiosos e fracos.

Se as coisas não melhoram, ficamos deprimidos. Sob essas condições, não podemos lutar como a vida exige, e tornamo-nos alvos fáceis dos acossadores de carapaça dura. Mas não são apenas as semelhanças comportamentais e experienciais que se revelam surpreendentes. Grande parte da neuroquímica também é a mesma das lagostas.

Consideremos a serotonina, o químico que regula a postura e a fuga no caso da lagosta. As lagostas no fundo da hierarquia produzem menos serotonina. Isso também é verdade para os seres humanos no fundo da hierarquia (e os níveis baixos de serotonina reduzem-se com cada derrota). Um nível baixo de serotonina significa redução na confiança. Significa mais vulnerabilidade ao stress e uma preparação mais dispendiosa em caso de emergência – porque tudo pode acontecer, a qualquer momento, no fundo da hierarquia da dominância (e raramente coisas boas).

Um nível baixo de serotonina significa menos felicidade, mais dor, ansiedade, doença, e uma vida mais curta, tanto entre os humanos como entre os crustáceos. Nos lugares cimeiros da hierarquia da dominância, por norma, os indivíduos têm níveis mais elevados de serotonina, e são menos propensos à doença, depressão e morte, mesmo quando fatores como o rendimento – ou, para as lagostas, a comida – são constantes. A importância disto deve ser realçada.

Uma lagosta com elevados níveis de serotonina e baixos níveis de octopamina, é um marisco convencido, que se pavoneia e que está menos inclinado a recuar caso seja desafiado. Isto porque a serotonina ajuda a regular a postura do crustáceo. Uma lagosta estende os seus apêndices para que pareça grande e alta, como o Clint Eastwood num western spaghetti.

Topo e fundo

Na base do nosso cérebro, sob os nossos pensamentos e sentimentos, existe uma calculadora fundamental e impossível de descrever que monitoriza a nossa posição exata na sociedade – numa escala de um a dez, digamos. Se somos o número um, o estatuto mais elevado, somos um sucesso avassalador. Se somos homens, temos acesso preferencial aos melhores sítios para viver e a comida de mais alta qualidade. As pessoas competem entre si para nos fazerem favores. Temos oportunidades ilimitadas para estabelecer contacto romântico e sexual.

Somos uma lagosta de sucesso, e as fêmeas mais desejadas fazem fila, procuram a nossa atenção. Se somos uma fêmea, temos acesso a muitos pretendentes de alta qualidade: altos, fortes e simétricos; criativos, de confiança, honestos e generosos. E, tal como o nosso companheiro macho, iremos competir ferozmente, até impiedosamente, para manter ou melhorar a nossa posição entre as fêmeas igualmente competitivas na hierarquia da procriação. Embora seja menos provável que usemos força física com esse objetivo, há muitos truques e estratégias ao nosso dispor, incluindo denegrir as nossas concorrentes, e podemos mesmos ser peritos a fazê-lo.

Se, pelo contrário, estamos no fundo da hierarquia, sejamos macho ou fêmea, não temos onde viver (ou pelo menos um sítio bom). A comida é terrível ou até passamos fome. Temos uma débil condição física e mental. Não despertamos interesse romântico em praticamente ninguém, a menos que esteja tão desesperado como nós. É mais provável que fiquemos doentes, que envelheçamos depressa, morrendo jovens, com poucas pessoas, se não mesmo nenhumas, que chorem a nossa morte.

Até o dinheiro pode não ter qualquer serventia. Não saberemos como o usar, porque é difícil utilizar o dinheiro apropriadamente, em particular se não nos for familiar. O dinheiro irá deixar-nos mais vulneráveis às tentações perigosas, como o álcool e as drogas, que são muito mais recompensadoras se fomos privados de prazer durante um longo período. O dinheiro também fará de nós alvos para predadores e psicopatas, que prosperam através da exploração daqueles que ocupam os lugares mais baixos da sociedade. O fundo da hierarquia da dominância é um lugar terrível e perigoso.

A parte antiga do cérebro, especializada em garantir o nosso domínio, observa a forma como somos tratados por outras pessoas. Usando essas provas, calcula e determina o nosso valor e atribui-nos um estatuto. Se somos considerados pelos nossos pares como de pouca importância, a produção de serotonina é reduzida. Isso faz de nós muito mais reativos, física e psicologicamente, a qualquer circunstância ou evento que possa produzir emoções, particularmente se são negativas. Precisamos de ser reativos. Emergências são comuns no fundo da hierarquia, e é preciso estarmos prontos para sobreviver.

Infelizmente, essa resposta física, de constante estado de alerta, gasta muita energia preciosa e recursos físicos. Essa resposta é aquilo que chamamos stress, e não é, de forma alguma, apenas psicológica. É um reflexo das limitações genuínas em circunstâncias lamentáveis. Quando funciona no fundo da hierarquia, o cérebro antigo assume que até o mais pequeno e inesperado impedimento pode criar uma incontrolável corrente de eventos negativos que terão de ser enfrentados sem ajuda de ninguém, porque amigos que nos ajudem são algo raro nas margens da sociedade.

Como tal, iremos continuar a sacrificar aquilo que, de outra forma, podíamos armazenar fisicamente para o futuro, mas que usamos no estado de alerta constante e na possibilidade de uma ação iminente em estado de pânico. Quando não sabemos o que fazer, temos de estar preparados para fazer tudo e mais alguma coisa, caso seja necessário. Estamos ao volante do nosso carro, a pisar simultaneamente o travão e o acelerador, prestes a que tudo desmorone. Esse cérebro antigo até desliga o nosso sistema imunitário, usando agora, durante as crises do presente, a energia e os recursos que serão precisos para garantir a nossa saúde no futuro.

Quando não sabemos o que fazer, temos de estar preparados para fazer tudo e mais alguma coisa, caso seja necessário. Estamos ao volante do nosso carro, a pisar simultaneamente o travão e o acelerador, prestes a que tudo desmorone. Esse cérebro antigo até desliga o nosso sistema imunitário, usando agora, durante as crises do presente, a energia e os recursos que serão precisos para garantir a nossa saúde no futuro. 
 
Ficamos mais impulsivos, de forma a reagir, por exemplo, a qualquer oportunidade de sexo, mesmo de curto prazo, ou a qualquer possibilidade de sentir prazer, independentemente da baixa qualidade, do constrangimento ou da ilegalidade desse tipo de prazer. E há mais probabilidade de vivermos, e morrermos, de forma descuidada, para conseguirmos uma oportunidade de sentir prazer. As exigências físicas do constante estado de alerta e emergência irão desgastar-nos de todas as formas possíveis.

Por outro lado, se tivermos um estatuto elevado, os mecanismos frios e reptilianos do cérebro antigo assumem que o nosso nicho é protegido, produtivo e seguro, e que estamos bem sustentados pelo apoio social, considerando que a hipótese de que algo nos danificará é pequena. Uma mudança pode significar uma oportunidade, em vez de um desastre. A serotonina flui abundantemente. Isto deixa-nos confiantes e calmos, com uma postura ereta, e reduz bastante o estado de alerta. Porque a nossa posição está assegurada, é provável que o futuro seja positivo. Vale a pena pensar a longo prazo e planear um amanhã melhor. Não precisamos de agarrar impulsivamente qualquer migalha que encontremos no caminho, porque, de forma realista, podemos esperar que as coisas boas se manterão acessíveis. Podemos adiar a gratificação, sem que tenhamos de renunciar a ela para sempre. Podemos dar-nos ao luxo de sermos cidadãos sensatos e de confiança.

Avaria

Todavia, por vezes, o mecanismo pode enganar-se. Hábitos erráticos de sono e alimentação podem interferir com o seu funcionamento. A incerteza pode desregulá-lo. O corpo, com as suas várias partes, precisa de funcionar como uma orquestra bem ensaiada. Cada sistema tem de desempenhar o seu papel de forma apropriada e exatamente ao mesmo tempo, ou espera-nos o ruído e o caos. Por isso é que as rotinas são tão necessárias.

As ações que repetimos diariamente precisam de ser automatizadas. Têm de ser transformadas em hábitos estáveis e seguros, de forma a perderem a sua complexidade e a ganhar os atributos daquilo que é previsível e simples. Isto pode ser percebido de forma mais clara no caso das crianças pequenas, que são encantadoras e cómicas e divertidas, quando os seus horários de sono e refeições são estáveis; mas que podem ser horríveis e choronas e impossíveis quando o contrário acontece.

É por essas razões que pergunto sempre aos meus pacientes clínicos sobre os seus hábitos de sono. Acordam de manhã, aproximadamente à hora que a maioria das pessoas sai da cama, mantendo esse horário todos os dias? Se a resposta é não, tratar disso é a primeira coisa a fazer. Não importa tanto se vão para a cama à mesma hora todas as noites, mas acordar consistentemente à mesma hora é uma necessidade absoluta. A ansiedade e a depressão não podem ser realmente tratadas se o paciente tiver comportamentos diários imprevisíveis. Os sistemas que regulam as emoções negativas estão intimamente ligados ao funcionamento apropriado dos ritmos dos ciclos circadianos.

A questão seguinte que coloco aos meus pacientes tem que ver com o pequeno-almoço. Aconselho-os a comer um pequeno-almoço rico em gordura e proteínas pouco depois de acordarem (sem hidratos de carbono simples, sem açúcares, uma vez que estes são digeridos rapidamente, e produzem um pico de glicemia tão rápido como a consequente queda dos níveis de açúcar no sangue). Isto porque as pessoas ansiosas e deprimidas já sofrem de stress, particularmente se as suas vidas deixaram de estar sob controlo há algum tempo. Como tal, os seus corpos estão preparados para segregar insulina sempre que desempenham alguma atividade mais complexa ou exigente. Se o fazem depois de uma noite sem comer, ou antes de uma refeição, o excesso de insulina na corrente sanguínea irá limpar todo o açúcar no sangue. Assim, passam a sofrer de hipoglicemia e tornam -se instáveis, tanto psicológica como fisiologicamente. O dia inteiro. Os seus sistemas não podem ser reiniciados até que voltem a dormir. Tive muitos pacientes cuja ansiedade foi reduzia apenas porque começaram a tomar o pequeno-almoço e a dormir de acordo com um horário previsível.

Há muitos sistemas de interação entre o cérebro, o corpo e o mundo social que podem ser apanhados nos ciclos de retorno positivo. As pessoas deprimidas, por exemplo, podem começar a sentir-se inúteis, um fardo, além de tolhidas pela tristeza e pela dor. Isto faz com que se afastem do contacto com amigos e família. E esse afastamento faz com que se sintam ainda mais sozinhas e isoladas, e, como tal, mais suscetíveis a sentirem-se inúteis e um fardo. Depois, afastam -se mais um pouco. Dessa forma, a depressão entra no processo de amplificação e espiral.

Pergunto sempre aos meus pacientes clínicos sobre os seus hábitos de sono. Acordam de manhã, aproximadamente à hora que a maioria das pessoas sai da cama, mantendo esse horário todos os dias? Se a resposta é não, tratar disso é a primeira coisa a fazer. Não importa tanto se vão para a cama à mesma hora todas as noites, mas acordar consistentemente à mesma hora é uma necessidade absoluta.
Se alguém se magoa seriamente em algum momento da vida – um trauma –, o mecanismo da dominância pode transformar-se de maneira a intensificar a dor adicional, em vez de a reduzir. Isso acontece com frequência entre pessoas que, embora já adultas, foram violentamente maltratadas durante a infância ou adolescência. Tornam -se ansiosas e ficam perturbadas, com ansiedade. Escudam -se, assumindo uma postura defensiva, e evitam o contacto visual quando interpretado como um desafio de dominância.

Isso significa que os danos causados pelos abusos (o estatuto baixo na hierarquia e a redução da confiança) podem continuar, mesmo após os abusos terem terminado. Nos casos mais simples, as pessoas que antes estavam no fundo da hierarquia já amadureceram, e alcançaram lugares novos na sua vida, tiveram sucesso. Mas não se dão verdadeiramente conta disso. As suas adaptações fisiológicas a uma realidade anterior são agora contraprodutivas, e essas pessoas são mais tensas e incertas do que seria necessário. Em casos mais complexos, a habitual subordinação produz uma pessoa mais ansiosa e insegura do que o necessário, e a sua postura habitualmente submissa continua a atrair atenção negativa dos abusadores que existem no mundo dos adultos. Nessas situações, a consequência psicológica dos abusos anteriores aumenta a probabilidade de abusos continuados no presente (ainda que não tivesse de ser assim, por causa do amadurecimento, de uma mudança geográfica, dos estudos, ou de uma melhoria de estatuto).

Levanta-te

Por vezes, as pessoas são agredidas porque não conseguem defender-se. Isso pode acontecer a pessoas mais fracas fisicamente do que os seus adversários. Esta é a razão mais comum nas agressões e no acosso entre crianças. Nem mesmo o miúdo de seis anos mais forte tem hipótese contra um rapaz de nove. Porém, muito desse poder diferencial desaparece na idade adulta, com a relativa estabilização e equiparação do tamanho físico (exceto no que diz respeito a homens e mulheres, sendo que tipicamente os homens são maiores e mais fortes, especialmente na parte superior do corpo), tal como as crescentes punições, por norma, aplicadas na idade adulta àqueles que insistem na intimidação física.

Mas, com a mesma frequência, as pessoas são acossadas por não reagirem. Isto não é invulgar em pessoas quem têm um temperamento mais compassivo e abnegado – e em particular se também têm níveis elevados de emoções negativas, e que quando confrontados de forma sádica por alguém, manifestam de forma audível o seu sofrimento (crianças que choram com mais facilidade, por exemplo, são acossadas com mais frequência). O mesmo sucede com quem decidiu, seja por que motivo for, que qualquer forma de agressão, incluindo sentimentos de raiva, são moralmente reprováveis.

Já vi pessoas, com uma sensibilidade particularmente suscetível à tirania mesquinha e ao excesso de agressividade, impedirem mesmo todas as emoções que possam resultar nalgum desses comportamentos. Com frequência, são pessoas cujos pais eram excessivamente controladores e irados. No entanto, as forças psicológicas nunca são unidimensionais no seu valor, e o verdadeiramente chocante potencial da raiva e da agressão, para produzir crueldade e caos, é equilibrado pela capacidade dessas forças primordiais em lutar contra a opressão, dizer a verdade, e criar um movimento determinado para diante em tempos de conflito, incerteza e perigo.

Com a sua capacidade para a agressão presa no colete de forças de uma moralidade demasiado limitada, aqueles que são apenas compassivos e abnegados (e ingénuos e suscetíveis a serem explorados) não conseguem convocar a raiva, verdadeiramente justa e apropriada à legítima defesa, para se protegerem. Se podemos morder, geralmente não precisamos de o fazer. Quando integrada com perícia, a capacidade de resposta à agressão e à violência diminui em vez de aumentar a probabilidade de que a agressão venha a ser necessária.

Se no princípio do ciclo de agressão dissermos que não, e se formos consequentes com o que dissermos (o que significa que afirmamos a nossa recusa em termos bem claros, e não arredamos pé da nossa posição), então, a margem para a opressão por parte do opressor ficará apropriadamente circunscrita e limitada. Certamente, as forças da tirania expandem-se para preencher o espaço disponível para a sua existência. As pessoas que se recusam a produzir respostas territoriais, apropriadas à defesa pessoal, encontram-se tão abertas à exploração como aquelas que genuinamente não conseguem defender os seus direitos por causa de incapacidades mais essenciais ou de um verdadeiro desequilíbrio de poderes.

As pessoas ingénuas e inofensivas costumam guiar as suas perceções e ações de acordo com alguns axiomas simples: basicamente, as pessoas são boas; ninguém quer realmente magoar os outros; a ameaça e, certamente, o uso de força, física ou de qualquer outra espécie, é algo errado. Estes axiomas colapsam, ou acontece alguma coisa pior, na presença de indivíduos que são verdadeiramente malévolos. Acontece alguma coisa pior quer dizer que as crenças ingénuas podem tornar-se num convite ao abuso, porque aqueles que querem causar danos tornaram-se especialistas em atacar pessoas que pensam exatamente assim. Sob tais condições, esses axiomas têm de ser reformulados. Na minha prática clínica, com frequência chamo à atenção os meus pacientes que acham que as pessoas boas nunca se zangam com a realidade crua dos seus ressentimentos.


Ninguém gosta de ser maltratado, mas as pessoas frequentemente aturam comportamentos desse género durante demasiado tempo. Por isso, faço com que olhem para os seus ressentimentos, primeiro enquanto raiva, e depois como uma indicação de que algo precisa de ser dito, se não mesmo feito (porque a honestidade o exige). Depois, faço com que vejam isso como parte da força que mantém a tirania à distância – tanto a nível social como individual. Muitas burocracias são fruto de autoritários mesquinhos que criam regras e procedimentos desnecessários apenas para expressar ou reforçar o seu poder. Pessoas assim produzem correntes de ressentimento nas pessoas ao seu redor, que, se manifestadas, limitariam a expressão do poder patológico do tirano. É desta maneira que a vontade do indivíduo em defender-se também protege os outros da corrupção da sociedade.

Quando pessoas mais ingénuas descobrem a capacidade de sentir raiva, ficam chocadas, por vezes de forma profunda. Um exemplo contundente disso mesmo pode ser encontrado na suscetibilidade de soldados com perturbação de stress pós-traumático, que ocorre com frequência por causa de algo que fizeram, em vez de algo que lhes aconteceu. Reagem como os monstros que podem ser nas condições extremas do campo de batalha, e a revelação dessa capacidade destrói o seu mundo.

Não é de admirar. Talvez assumissem que todos os perpetradores mais terríveis da História eram pessoas muito diferentes deles. Talvez nunca tenham sido capazes de ver em si mesmos a capacidade para oprimir e acossar (ou até a capacidade para serem assertivos e bem-sucedidos). Tive pacientes que ficavam de tal maneira aterrorizados que, literalmente, tinham convulsões histéricas ao ver o olhar malévolo na cara dos seus ata cantes. Tipicamente, tais indivíduos são oriundos de famílias superprotegidas, onde não se permite que exista nada de terrível, e tudo é uma terra de fadas e maravilhas.

Quando ocorre o despertar – quando as pessoas, em tempos ingénuas, reconhecem em si mesmas as sementes do mal e da monstruosidade, e se veem como perigosas (pelo menos potencialmente), os seus medos diminuem. Desenvolvem um maior respeito por si mesmos. Nesse momento, talvez comecem a resistir à opressão. Percebem que têm a capacidade para se defenderem porque também são terríveis. Percebem que podem e devem defender-se, porque começam a compreender quão genuinamente monstruosas se tornarão se assim não for – alimentam os seus ressentimentos, transformando-os em desejos destrutivos. Repetindo: há muito poucas diferenças entre a capacidade para o caos e a destruição e a força de caráter. Esta é uma das lições mais difíceis de aprender na vida.
Talvez sejamos perdedores. Ou talvez não – mas, se somos, não temos de permanecer assim. Talvez tenhamos apenas um mau hábito. Talvez sejamos um conjunto de maus hábitos. No entanto, mesmo que a nossa pobre postura resulte de algo que honestamente nos aconteceu – mesmo não sendo populares e tendo sido acossados em casa e na escola –, isso agora já não é apropriado. As circunstâncias mudam. Se andamos cabisbaixos, com a mesma postura que caracteriza a lagosta derrotada, as pessoas irão atribuir-nos um estatuto mais baixo, e aquilo que partilhamos com os crustáceos, na base no nosso cérebro, irá conferir-nos um número baixo na hierarquia da dominância. Então, o cérebro produzirá menos serotonina. Isso fará com que fiquemos menos felizes, e mais ansiosos e tristes, e com tendência a recuar quando devíamos defender-nos. Isso também reduzirá a probabilidade de vivermos num bairro melhor, de ter acesso a recursos de mais qualidade, e obter um parceiro saudável e desejável. Será mais provável que abusemos de cocaína e álcool, porque vivemos para o presente, num mundo com um futuro demasiado incerto. Irá aumentar a suscetibilidade de sofrermos de uma doença de coração, de cancro ou demência. Resumindo: nada de bom.

Levantarmo-nos e endireitarmos as costas significa construir a arca que protege o mundo do dilúvio, guiando o nosso povo pelo deserto, depois de termos escapado da tirania, estando a caminho de um lar e de um país mais confortável, e anunciar a palavra profética àqueles que ignoram as viúvas e as crianças. Significa carregar a cruz que marca o X, ou lugar onde nós e o Ser se intersetam de forma tão terrível. Significa lançar a ordem rígida, morta e demasiado tirânica de volta para o caos onde foi gerada; significa suportar a incerteza subsequente e estabelecer, como consequência, uma ordem melhor, com mais significado e mais produtiva.

Se andamos cabisbaixos, com a mesma postura que caracteriza a lagosta derrotada, as pessoas irão atribuir-nos um estatuto mais baixo, e aquilo que partilhamos com os crustáceos, na base no nosso cérebro, irá conferir-nos um número baixo na hierarquia da dominância. Então, o cérebro produzirá menos serotonina. Isso fará com que fiquemos menos felizes, e mais ansiosos e tristes, e com tendência a recuar quando devíamos defender-nos. 
 
Por isso, tenhamos atenção à postura. Paremos de andar dobrados e murchos. Digamos aquilo que realmente pensamos. Que os nossos desejos venham primeiro, como se tivéssemos direito a eles – pelo menos tanto direito como os outros. Caminhemos direitos e olhemos em frente. Arrisquemos ser perigosos. Vamos encorajar a serotonina a circular abundantemente através dos circuitos cerebrais desesperados pelo seu efeito tranquilizante.

As pessoas, incluindo nós, assumirão que somos competentes e capazes (ou, pelo menos, não concluirão o contrário de imediato). Fortalecidos pelas respostas positivas que recebemos, passaremos a estar menos ansiosos. Então, iremos descobrir que é mais fácil prestar atenção às subtis pistas sociais que as pessoas trocam quando comunicam. As conversas fluirão melhor, com menos pausas desconfortáveis. Isso fará com que seja mais provável conhecer pessoas, interagir com elas, e impressioná-las. Fazer isso não irá apenas aumentar a probabilidade de que coisas boas nos aconteçam – também fará com que essas coisas boas nos façam sentir ainda melhor quando acontecem.

Com uma postura correta e fortalecidos, podemos abraçar o Ser e trabalhar para melhorá-lo ainda mais. Fortalecidos dessa forma, podemos aguentar as dificuldades de pé, mesmo durante a doença da pessoa amada, mesmo durante a morte dos pais, e permitir a outros que encontrem força a nosso lado, quando, de outra forma, seriam tomados pelo desespero. Fortalecidos dessa maneira, embarcaremos na viagem das nossas vidas, deixaremos a luz brilhar, por assim dizer, na colina paradisíaca, e perseguiremos o destino a que temos direito. O sentido da nossa vida pode ser suficiente para manter à distância a influência corruptora do desespero mortal. Então, talvez possamos aceitar o terrível fardo do mundo e encontrar alegria.

Procuremos inspiração na lagosta vitoriosa, com os seus 350 milhões de anos de sabedoria prática. Levantemos a cabeça e endireitemos as costas.
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Fonte:  https://observador.pt/especiais/as-12-regras-para-uma-vida-sem-caos-receitadas-pelo-fenomeno-jordan-peterson/

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