Christian Dunker*
Acolher é potencializar a solidão como fonte e origem de toda resistência
Os
últimos tempos, pré e pós-eleitorais, marcaram uma mutação expressiva
da imagem que os brasileiros tinham de si. Sai o homem cordial e o
jeitinho brasileiro, entra o novo tipo de fundamentalismo no qual todos
são corruptos e privilegiados até que se prove o contrário. As imagens
que temos de nós mesmos são, por definição, encobrimentos narcísicos
diferentes do que realmente somos. Imagens dependentes do ângulo que se
quer mostrar e das sombras que produzimos para nos proteger de nós
mesmos. Aparências são importantes também no sentido simbólico, pois
elas retratam nossa relação com a lei. Pense em como nos comportamos
diante das “crianças” ou naquele casal em guerra pré-falimentar, mas que
gasta suas últimas energias, psíquicas e morais, para manter as
aparências. Quando abandonamos o “como se” e o registro da ficção, o que
sobra não é a transparência autêntica, mas tão somente nosso
desrespeito à lei simbólica.
O
sentimento geral de que paramos de nos escutar, de que o debate
tornou-se improdutivo e que daqui para frente o que vale é a força
ampara-se nestes dois processos: o primeiro fixa a pessoa a uma imagem,
depois disso, tudo o que ela disser só confirma a posição na qual ela
foi colocada. O segundo exercita a estética tosca da liberalização das
aparências, a partir da qual temos a ilusão de que estamos vendo por
dentro as entranhas do poder. O ponto de junção entre estes dois
processos é esta espécie de nova lei geral baseada na intimidação.
Intimidar vem de íntimus, profundo, secreto e privado. Combina-se com
intimação, ou seja, convocar o outro a responder. Intimidar é levar o
outro ao limite de sua timidez ou reserva, produzir embaraço ou vergonha
ou medo. Thyimós, em grego, era este órgão dos afetos, a voz de nossas
disposições e incertezas, o lugar onde sentíamos raiva, inveja ou
piedade. Neste sentido, intimidar é fazer com que alguém se reduza ao
seu próprio timo, e assim escute apenas seus afetos. Sobretudo não
exteriorizar mais do que a subordinação imposta pelo outro permite. Em
suma, a intimidação é uma forma de silenciamento do outro, um modo de
aprisioná-lo a ouvir apenas a sua própria voz, de impotência e
constrangimento.
Escutar o
outro nestas condições é inverter a intimidação em intimidade. Pensemos
no valentão da escola, o protótipo do futuro assediador de maiores.
Notemos como sua arte consiste em isolar ainda mais aquele que já se
sente isolado, em expor aos outros o fato de que ele é sozinho e,
enquanto tal, vulnerável. Em contrapartida, os que pelo silêncio ou pela
adesão direta perfilam-se ao lado do intimidador compram segurança por
pertencer ao grupo. Aqui está também o antídoto da escuta acolhedora.
Ela não deve buscar apenas piedade ou solidariedade que no fundo oporá
grupo contra grupo, fracos contra fortes, perdedores contra vencedores.
Acolher é potencializar a solidão como fonte e origem de toda
resistência. Acolher é transformar a solidão em solitude, fazendo do
desamparo e da vulnerabilidade algo que não deve ser temido nem
envergonhado, mas reconhecido. É assim que surge a resiliência que não
precisa nem de esperança nem de otimismo para agir. Basta escutar a
força e a suficiência de ser cada um.
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* Psicanalista e professor titular da Universidade de São Paulo.
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/christian-dunker/noticia/2018/11/como-escutar-o-outro-em-tempos-de-acolhimento-e-intimidacao-cjp4ch5y40hvb01rxdnxeg6kw.html
Imagem da Internet
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* Psicanalista e professor titular da Universidade de São Paulo.
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/christian-dunker/noticia/2018/11/como-escutar-o-outro-em-tempos-de-acolhimento-e-intimidacao-cjp4ch5y40hvb01rxdnxeg6kw.html
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