Luis Fernando Verissimo*
E vamos nós para o ano vinte-vinte, na esperança de que a repetição dos números signifique alguma coisa
E
vamos nós para o ano vinte-vinte, na esperança de que a repetição dos
números signifique alguma coisa. Vivemos sempre com a expectativa que
uma anomalia, qualquer anomalia, qualquer ruptura com o normal – como um
ano com números reincidentes – seja um sinal. Estão querendo nos dizer
alguma coisa. Quem, e o quê? Os avisos chegam de todos os lados, caberia
a nós entendê-los. A Terra fala conosco por meio dos seus desastres
naturais: terremotos e vulcões seriam recados a serem decifrados. A
História fala conosco por meio dos seus intérpretes. E o Universo se
dirige a nós pelos astros.
***
As pessoas procuram nos astros a evidência de que não estão sozinhas,
que algo guia seu passos e orienta sua vida – de longe, bem longe. A
persistente crença em astrologia, apesar da dificuldade em conciliar
seus princípios e sua linguagem com o bom senso, não tem explicação – ou
só se explica pela renuncia à racionalidade que também é uma forma de
buscar uma direção na vida, venha ela de onde vier, das religiões ou de
Júpiter.
***
História pessoal, que já contei mais de uma vez: quando comecei a
trabalhar na imprensa, há 200 anos, fazia de tudo na redação, depois de
passar o dia no meu outro emprego de redator de publicidade. Um dia me
pediram para fazer o horóscopo, já que o astrólogo profissional insistia
em ganhar um aumento, uma reivindicação irrealista, dadas as condições
do jornal. Como eu já fazia de tudo na redação, comecei a fazer o
horóscopo também. Todos os dias inventava o destino das pessoas e
distribuía as previsões e os conselhos pelos 12 signos do zodíaco.
***
O horóscopo era a última coisa que eu fazia no jornal antes de ir me
encontrar com a Lucia e, se tivéssemos sorte, ir a um cinema, de modo
que meu horóscopo era sempre feito às pressas, e com a escassa energia
que sobrava depois de um dia fazendo de tudo, na agência de publicidade e
na redação. E então bolei uma solução genial para liquidar o horóscopo
em pouco tempo e ir embora. Como era óbvio que as pessoas só querem
saber o texto do seu próprio signo e não o dos outros, comecei a fazer
um rodízio: mudava os textos de signo e de lugar. O que um dia era o
texto para libra no dia seguinte era para sagitário, etc. Ninguém iria
notar a trapaça sideral, os deuses me perdoariam.
***
Não
demorou para que o editor do jornal me chamasse. Tinha muita gente
reclamando do horóscopo. O que eu pensava que era óbvio não era. Minha
pseudoesperteza tinha sido descoberta, aparentemente todo o mundo lê
todo o horóscopo todos os dias. Minha breve carreira de astrólogo
terminou ali. Mas eu só queria dizer que, mesmo quando era eu que
escrevia os textos, nunca deixava de olhar para ver o que libra
reservava para meu futuro. Fazer o quê? Precisamos de uma direção na
vida, venha ela de onde vier.
----------
* Jornalista. Cronista. Escitor
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,2020,70003144015
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário