José de Souza Martins*
Foto: Carvall
Quando o presidente desqualifica Paulo Freire,
só pode ser coisa de um governo que institui aqui o “energumenato”
O presidente
definir como energúmeno o educador brasileiro Paulo Freire, mundialmente
conhecido pela obra de resgate de milhares de pessoas da escuridão do
analfabetismo, só pode ser coisa de um governo que institui aqui o
“energumenato”. O que faz do povo um povo sem vontade própria, uma sociedade de
ordem unida, desprovida de consciência social e política.
Paulo Freire foi
satanizado já antes do golpe e perseguido depois do golpe de 1º de abril de
1964 pelo mero motivo de ter criado um método de alfabetização rápida de
adultos, uma necessidade do capitalismo e, é bom que se diga, do protestantismo
voltado para o livre exame da Bíblia e para a emancipação republicana que faria
de todos os brasileiros, cidadãos.
Freire desenvolveu
seu método com apoio da Igreja Católica, que o aplicou no Movimento de Educação
de Base, no Nordeste, de 1961. Foi inspirado no personalismo de Emmanuel
Mounier, pensador católico, fundador da excelente e erudita revista “Esprit”.
Ele pensava numa sociedade centrada na pessoa em oposição à sociedade
materialista do indivíduo, fragmentário e alienado. O MEB foi iniciativa de um
bispo conservador, Dom Eugênio de Araújo Sales, e da CNBB.
É claro que o
método de alfabetização criado por Freire era adaptado à realidade de trabalhadores
rurais pobres, já maduros e socializados numa cultura popular e mística que
reconhecia na situação social em que viviam e trabalhavam os próprios
remanescentes do cativeiro. Seria ingênua e ineficaz qualquer tentativa de
alfabetizá-los com frase de cartilha de criança da cidade, como “Eva viu a
uva”.
As frases de
referência do método de Freire tinham que ter sentido, relativas às duras
condições de trabalho dos alunos, à margem dos direitos sociais reconhecidos em
lei. O método de Freire completa o que ficou faltando na Lei Áurea, que
libertou juridicamente o escravo, mas não o emancipou. Não lhe deu as condições
da liberdade de consciência
necessária à sua
conversão em homem verdadeiramente livre e cidadão.
A Constituição de
1891 completou a iniquidade ao negar o direito de voto aos analfabetos. Os
constituintes sabiam que excluir os analfabetos do processo eleitoral era um
modo de manter a dominação política das oligarquias regionais, economicamente sustentadas
pelo latifúndio excludente e pela servidão retrógrada.
A alfabetização de
adultos só é viável se for técnica social de uma educação abrangente e
libertadora, isto é, emancipadora, que recompense o educando com a esperança de
um novo mundo possível. Um mundo que justifique pertencer a ele.
O próprio Exército
sempre recusou os analfabetos porque a profissão O próprio Exército sempre recusou os
analfabetos porque a profissão militar exige leitura, discernimento, capacidade
de raciocínio. Hoje, nem basta ser apenas alfabetizado para as funções
militares. A manobra e o manejo de um tanque de guerra depende de que o militar
conheça bem matemática e cálculo e até mais do que isso. Não é possível ter Exército,
Marinha e Aeronáutica num país de analfabetos. Mesmo que não reconheçam, Paulo
Freire deveria ser um herói também das Forças Armadas. Só uma descabida
alienação não permite compreender isso.
A resistência dos
militares à missão civilizadora de Freire veio da vulnerabilidade, que
historicamente os vitima nas posições de governo. Sobretudo em relação ao
assédio dos que atrás deles procuram esconder-se na ilusão de acobertarem-se da
marginalidade histórica que os faz agentes de um passado antirrepublicano,
incompatível com o que é próprio do capitalismo e da democracia.
O Exército foi
enganado no episódio de Canudos. O Barão de Jeremoabo, latifundiário e político
do sertão baiano, recebera antecipadamente o dinheiro pela madeira necessária à
construção da igreja do povoado de Antonio Conselheiro. Mas os lesara, não
entregando a mercadoria. Os sertanejos organizaram uma procissão para buscá-la
em Monte Santo. Tomaram a madeira já paga e a levaram para Canudos. Não eram
monarquistas, único crime político definido na nova Constituição. Eram
seguidores da utopia milenarista do Divino Espírito Santo, centrada na figura
simbólica do Imperador do Divino. Esperavam o advento da era do Espírito, um
tempo de justiça, fartura e alegria. Eram religiosos, que praticavam a
caridade.
O Barão de
Jeremoabo vingou-se. Telegrafou ao governador denunciando o “surto monarquista”
no sertão, o que era falso. Mandada a polícia para reprimi-lo a fogo, acabou
vitimada pelos recursos toscos da resistência sertaneja. O governador mobilizou
o Exército, que caiu na armadilha ideológica, atacou sertanejos indefesos e foi
por eles derrotado. Livrou-se apenas com o massacre final. É nisso que dá não
conhecer antropologia nem sociologia. E não conhecer o próprio país.
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* José de Souza
Martins é sociólogo. Pesquisador emérito do CNPq, professor emérito da
Faculdade de Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Entre
outros livros, autor de “Desavessos” (Criarte).
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