quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Paulo Freire, Bolsonaro e o energúmeno

José de Souza Martins*
 
 Foto: Carvall
 
Quando o presidente desqualifica Paulo Freire, só pode ser coisa de um governo que institui aqui o “energumenato”


O presidente definir como energúmeno o educador brasileiro Paulo Freire, mundialmente conhecido pela obra de resgate de milhares de pessoas da escuridão do analfabetismo, só pode ser coisa de um governo que institui aqui o “energumenato”. O que faz do povo um povo sem vontade própria, uma sociedade de ordem unida, desprovida de consciência social e política.

Paulo Freire foi satanizado já antes do golpe e perseguido depois do golpe de 1º de abril de 1964 pelo mero motivo de ter criado um método de alfabetização rápida de adultos, uma necessidade do capitalismo e, é bom que se diga, do protestantismo voltado para o livre exame da Bíblia e para a emancipação republicana que faria de todos os brasileiros, cidadãos.

Freire desenvolveu seu método com apoio da Igreja Católica, que o aplicou no Movimento de Educação de Base, no Nordeste, de 1961. Foi inspirado no personalismo de Emmanuel Mounier, pensador católico, fundador da excelente e erudita revista “Esprit”. Ele pensava numa sociedade centrada na pessoa em oposição à sociedade materialista do indivíduo, fragmentário e alienado. O MEB foi iniciativa de um bispo conservador, Dom Eugênio de Araújo Sales, e da CNBB.

É claro que o método de alfabetização criado por Freire era adaptado à realidade de trabalhadores rurais pobres, já maduros e socializados numa cultura popular e mística que reconhecia na situação social em que viviam e trabalhavam os próprios remanescentes do cativeiro. Seria ingênua e ineficaz qualquer tentativa de alfabetizá-los com frase de cartilha de criança da cidade, como “Eva viu a uva”.
As frases de referência do método de Freire tinham que ter sentido, relativas às duras condições de trabalho dos alunos, à margem dos direitos sociais reconhecidos em lei. O método de Freire completa o que ficou faltando na Lei Áurea, que libertou juridicamente o escravo, mas não o emancipou. Não lhe deu as condições da liberdade de consciência
necessária à sua conversão em homem verdadeiramente livre e cidadão.

A Constituição de 1891 completou a iniquidade ao negar o direito de voto aos analfabetos. Os constituintes sabiam que excluir os analfabetos do processo eleitoral era um modo de manter a dominação política das oligarquias regionais, economicamente sustentadas pelo latifúndio excludente e pela servidão retrógrada.

A alfabetização de adultos só é viável se for técnica social de uma educação abrangente e libertadora, isto é, emancipadora, que recompense o educando com a esperança de um novo mundo possível. Um mundo que justifique pertencer a ele.

O próprio Exército sempre recusou os analfabetos porque a profissão  O próprio Exército sempre recusou os analfabetos porque a profissão militar exige leitura, discernimento, capacidade de raciocínio. Hoje, nem basta ser apenas alfabetizado para as funções militares. A manobra e o manejo de um tanque de guerra depende de que o militar conheça bem matemática e cálculo e até mais do que isso. Não é possível ter Exército, Marinha e Aeronáutica num país de analfabetos. Mesmo que não reconheçam, Paulo Freire deveria ser um herói também das Forças Armadas. Só uma descabida alienação não permite compreender isso.

A resistência dos militares à missão civilizadora de Freire veio da vulnerabilidade, que historicamente os vitima nas posições de governo. Sobretudo em relação ao assédio dos que atrás deles procuram esconder-se na ilusão de acobertarem-se da marginalidade histórica que os faz agentes de um passado antirrepublicano, incompatível com o que é próprio do capitalismo e da democracia.

O Exército foi enganado no episódio de Canudos. O Barão de Jeremoabo, latifundiário e político do sertão baiano, recebera antecipadamente o dinheiro pela madeira necessária à construção da igreja do povoado de Antonio Conselheiro. Mas os lesara, não entregando a mercadoria. Os sertanejos organizaram uma procissão para buscá-la em Monte Santo. Tomaram a madeira já paga e a levaram para Canudos. Não eram monarquistas, único crime político definido na nova Constituição. Eram seguidores da utopia milenarista do Divino Espírito Santo, centrada na figura simbólica do Imperador do Divino. Esperavam o advento da era do Espírito, um tempo de justiça, fartura e alegria. Eram religiosos, que praticavam a caridade.

O Barão de Jeremoabo vingou-se. Telegrafou ao governador denunciando o “surto monarquista” no sertão, o que era falso. Mandada a polícia para reprimi-lo a fogo, acabou vitimada pelos recursos toscos da resistência sertaneja. O governador mobilizou o Exército, que caiu na armadilha ideológica, atacou sertanejos indefesos e foi por eles derrotado. Livrou-se apenas com o massacre final. É nisso que dá não conhecer antropologia nem sociologia. E não conhecer o próprio país.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador emérito do CNPq, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Desavessos” (Criarte).

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