Alicia Kowaltowski*
Estabelecer uma hipótese envolve muito
trabalho,
interação, contribuição e reconhecimento
da comunidade de cientistas
Em 1961, o bioquímico Peter Mitchell
revolucionou a área de metabolismo quando propôs a hipótese quimiosmótica
para explicar como nossas células geram energia para funcionar. Resumidamente,
estava sugerindo que as mitocôndrias, a parte das células que produz essa
energia, agiam
de modo muito semelhante a baterias, promovendo um fluxo de elétrons
associado à separação de polos negativos e positivos. A hipótese de Mitchell
não era um “chute”, mas sim uma explicação bem embasada, mas ainda passível de
comprovação, para explicar observações anteriores. Como toda hipótese
científica, era testável, e poderia se provar verdadeira ou falsa.
Essa hipótese específica não foi bem aceita
de imediato na comunidade científica. Vários outros pesquisadores da época
lançaram outras hipóteses que pareciam mais prováveis, ou pelo menos mais
palatáveis, para explicar como as mitocôndrias funcionam e geram energia. Mas,
aos poucos, enquanto testavam sem muito sucesso as diversas hipóteses, a
opinião da maior parte da comunidade científica foi mudando. A hipótese
quimiosmótica ganhou bastante força por causa do biólogo de plantas André
Jagendorf, um aliado improvável, que demonstrou experimentalmente que
cloroplastos, que geram energia para plantas, funcionam como previsto por
Mitchell. Inspirados por Jagendorf, Mitchell e Jennifer Moyle, sua colaboradora
de longa data, desenharam experimentos que demonstraram que as mitocôndrias de
fato usavam a separação de cargas positivas e negativas como fonte de energia.
Vários outros pesquisadores posteriormente adicionaram a esses achados, e assim
se construiu uma forte sustentação à ideia.
Quando Mitchell
recebeu o Prêmio Nobel em Química em 1978, foi laureado não pela hipótese,
e sim pela teoria quimiosmótica. Em conversa casual, uma “teoria” pode
parecer algo pouco fundamentado, como uma simples noção, não muito diferente de
uma hipótese. Mas na ciência, teorias são algo muito diferente. Teorias
científicas diferem de hipóteses porque são explicações para fenômenos
observados que já foram amplamente testados, e são muito bem embasadas.
Estabelecer uma teoria científica requer extenso trabalho, muita comprovação,
e, acima de tudo, uma abundância de convencimento para obter consenso da
maioria da comunidade científica.
A ciência
não é dogmática, e portanto qualquer hipótese científica pode ser derrubada por
ciência de melhor qualidade. Com a aquisição de novo conhecimento, elas podem
mudar, moldando-se e crescendo com novos achados e evidências
Muito se fala do biólogo e geólogo Charles
Darwin e sua teoria da evolução das espécies por meio da seleção natural.
Darwin publicou o livro que detalhadamente discute o conceito de seleção
natural (“A origem das espécies por meio de seleção natural: ou a preservação
das raças favorecidas na luta pela vida”) em 1859, décadas após a viagem no
veleiro HMS Beagle, iniciada em 1831. Nessa viagem, ele fez observações
fundamentais que inspiraram o conceito de seleção natural. O longo tempo de
trabalho nesse conceito científico dá a impressão de que Darwin passou mais de
20 anos recluso matutando suas ideias e escrevendo esse único livro. Já ouvi,
inclusive, a brincadeira entre cientistas atuais de que Darwin seria
considerado improdutivo cientificamente, pelos critérios de hoje.
A realidade é o completo oposto: Darwin teve
uma produtividade científica extremamente rica. Ao voltar da viagem, publicou
uma extensa coleção de livros descrevendo minuciosamente as observações
geográficas e biológicas que fez ao redor do mundo. Realizou também muitos
experimentos para testar suas ideias (incluindo no seu próprio jardim), apresentou mais de uma
centena de trabalhos em reuniões de sociedades científicas, e trocou inúmeras
correspondências com seus pares cientistas, debatendo e polindo as ideias que
apresentaria no seu livro icônico. O seu trabalho incansável continuou após a publicação
da sua obra mais conhecida, e envolveu a elaboração de vários outros livros que
apoiam a sua hipótese para explicar a origem das espécies. Dentre eles,
destaca-se uma observação detalhada de como nós, humanos, propositadamente
mudamos espécies domesticadas, uma demonstração que características podem
ser selecionadas por pressões do ambiente. Transformar a hipótese da seleção
natural na teoria da origem das espécies por seleção natural envolveu muito
trabalho, além de muita interação, contribuição, e reconhecimento de outros
cientistas.
A ciência não é dogmática, e portanto
qualquer hipótese científica pode ser derrubada por ciência de melhor
qualidade. No caso de teorias científicas, porém, é raro que isso aconteça,
justamente porque construir uma teoria requer muita sustentação e comprovação
anterior. Isso não significa, no entanto, que teorias científicas são
inalteráveis. Com a aquisição de novo conhecimento, elas podem mudar,
moldando-se e crescendo com novos achados e evidências. Teorias científicas
evoluem.
Temos hoje traçadas, uma por uma, as mutações
dos genes que levaram às mudanças de formato dos bicos dos tentilhões de
Darwin, os pássaros que lhe causaram tanta fascinação quando ele visitou as
ilhas Galápagos, e que participaram da origem da teoria da seleção natural,
inspirando-o a pensar sobre o mecanismo que leva a essas alterações. Essas
evidências genéticas se somam a muitos outros achados sobre a nossa natureza
que corroboram a existência de seleção natural em evolução. De fato, não existe
contraponto científico a essa ideia – a teoria da evolução das espécies pela
seleção natural é tão fundamental à biologia moderna que é impossível estudar
ou ensinar essa área sem incluí-la. Gosto de acreditar que Darwin ficaria
maravilhado ao ver em que a sua teoria evolutiva evoluiu.
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Alicia Kowaltowski é médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas.
Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do
Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia
Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora
de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação
Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos
transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às
quintas-feiras.
Imagem da Internet
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