O “Quichotte” de Rushdie é um
indiano-americano de 70 anos, vendedor itinerante — Foto: Sipa via AP
Autor busca inspiração em Dom quixote para
falar sobre mundo pós-verdade
Por Sonia Nolasco
Em “Quichotte”, seu livro mais pessoal em
muitos anos, Salman Rushdie examina sua própria experiência de exílio e
deslocamento. Não é um pastiche do “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes
(1547-1616), clássico espanhol do século XVII, o primeiro romance realista da
literatura ocidental. Neste gênero, há um choque entre ilusões e realidade - o indivíduo
deve adaptar seus ideais ao mundo real.
O personagem de “Quichotte” deve se ajustar a
um mundo pós-verdade, onde “visões e outras ilusões são esperadas”, escreveu
Rushdie. Ele avisa que seu livro é uma bagunça - mas uma bagunça altamente
perceptiva.
Quichotte atravessa os Estados Unidos em busca
da amada. Num estilo cáustico e hilariante, Rushdie usa essa viagem para
ridicularizar questões presentes no século XXI: culto da violência, racismo,
abuso de armas e drogas, celebridades, imigração, suicídio assistido,
existência de Deus, abuso sexual, espiões cibernéticos, ficção científica,
hipercapitalismo, cultura pop, mudanças climáticas, notícias “fake”, fraude nas
corporações, crises políticas e televisão de baixo nível. Para o autor, estamos
na “era do tudo pode acontecer”.
Rushdie criou um universo que parece original
até para quem nunca ouviu falar do fidalgo espanhol errante que atacava moinhos
de vento. Usa um tipo extravagante de realismo mágico que irritou seus detratores
mais ferinos (críticos literários da Índia em jornais ingleses). O autor,
indiano radicado em Londres, disse numa entrevista que buscou o romance de
Cervantes como inspiração num momento em que a vida pública se tornou
desarrazoada, quixotesca.
O herói de Cervantes, eternamente moderno
talvez por ser anticontemporâneo, revelou-se um personagem adequado à realidade
atual. Rushdie agride a cultura destrutiva de nossa época assim como Cervantes
hostilizou a cultura “junk” de seu próprio tempo.
Quichotte enfrenta um mundo em que a vida real
é menos real que a da televisão, onde zombam do amor em programas de casais
fictícios, e as notícias são menos reais que os boatos. Assassinos em toda
parte. A civilização se desintegra. Nosso planeta, cada vez mais quente, breve
acabará em chamas. É uma sátira devastadora da América, da Índia e da
Inglaterra de hoje.
O enredo se passa nos EUA, em Londres e Mumbai
- que Rushdie, nostálgico, chama de Bombay. Segue a aventura de um idealista
cuja loucura consiste em sua nobreza de espírito e sua recusa em acreditar que
existe um limite para o comportamento humano.
O Quichotte de Rushdie não é um fidalgo
transtornado por lendas medievais sobre cavaleiros e, sim, por televisão de
baixo nível. Ismail Smile, indiano-americano de 70 anos, vendedor itinerante de
produtos farmacêuticos, assiste a tanta televisão-lixo nos motéis onde dorme
pelo país, que fica aparvalhado. Apaixona -se por Salma R., indiana jovem e
bonita, estrela de talk-show. Ele escreve cartas amorosas à moça e assina
Quichotte - título da ópera de Jules Massenet (1842-1912).
Demitido do emprego, Smile parte num velho
“Chevy” do Arizona para Nova York disposto a conquistar Salma. Na viagem ele
imagina ter um filho como companheiro. Batiza de Sancho o rapaz invisível que é
engraçado, mas sensato, sobre as dificuldades que os dois enfrentam. Questões
sobre ficção e realidade estão em toda parte no livro.
É a grande conexão entre Rushdie e Cervantes,
que se preocupava com a diferença entre realidade e imaginação. Outra
similaridade: Rushdie também não se inquieta com a arquitetura desordenada de
sua trama.
Antes de realizar seu sonho impossível,
Quichotte quer se reconciliar com a irmã que está morrendo de câncer em Bombay.
Quando esse capítulo termina, somos informados de que o autor da narrativa
anterior era um escritor indiano de Nova York que publicou, sob o pseudônimo
Sam DuChamp, oito livros medíocres de espionagem.
“Quichotte” Salman Rushdie Editora Random House, 416 págs., US$ 28
(importado) / BBB
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado
/ CCC Baixa qualidade / C Alto risco
Agora mudou de estilo e escreve sobre “como
somos prejudicados pela cultura que criamos”. Ele recorda sua infância em
Bombay e a irmã de quem se afastou há 40 anos e que está com câncer.
Rushdie extrapola as noções de mágico e
realismo quando diz que DuChamp não é real. Existe outro narrador, incorpóreo e
divino, que une as histórias de pessoas que vieram de uma certa parte da Índia
para tentar vencer na América. As narrativas se entrelaçam de forma
surpreendente. No fim, Quichotte parece mais um romance sobre acreditar, com a
convicção tão antiga e explorada de que a crença é suficiente para tornar as
coisas verdadeiras.
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Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/01/03/em-quichotte-salman-rushdie-se-inspira-em-cervantes.ghtml
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