quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Em “Quichotte”, Salman Rushdie se inspira em Cervantes


 
 O “Quichotte” de Rushdie é um indiano-americano de 70 anos, vendedor itinerante — Foto: Sipa via AP 

Autor busca inspiração em Dom quixote para falar sobre mundo pós-verdade

Por Sonia Nolasco

Em “Quichotte”, seu livro mais pessoal em muitos anos, Salman Rushdie examina sua própria experiência de exílio e deslocamento. Não é um pastiche do “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes (1547-1616), clássico espanhol do século XVII, o primeiro romance realista da literatura ocidental. Neste gênero, há um choque entre ilusões e realidade - o indivíduo deve adaptar seus ideais ao mundo real.

O personagem de “Quichotte” deve se ajustar a um mundo pós-verdade, onde “visões e outras ilusões são esperadas”, escreveu Rushdie. Ele avisa que seu livro é uma bagunça - mas uma bagunça altamente perceptiva.

Quichotte atravessa os Estados Unidos em busca da amada. Num estilo cáustico e hilariante, Rushdie usa essa viagem para ridicularizar questões presentes no século XXI: culto da violência, racismo, abuso de armas e drogas, celebridades, imigração, suicídio assistido, existência de Deus, abuso sexual, espiões cibernéticos, ficção científica, hipercapitalismo, cultura pop, mudanças climáticas, notícias “fake”, fraude nas corporações, crises políticas e televisão de baixo nível. Para o autor, estamos na “era do tudo pode acontecer”.

Rushdie criou um universo que parece original até para quem nunca ouviu falar do fidalgo espanhol errante que atacava moinhos de vento. Usa um tipo extravagante de realismo mágico que irritou seus detratores mais ferinos (críticos literários da Índia em jornais ingleses). O autor, indiano radicado em Londres, disse numa entrevista que buscou o romance de Cervantes como inspiração num momento em que a vida pública se tornou desarrazoada, quixotesca.

O herói de Cervantes, eternamente moderno talvez por ser anticontemporâneo, revelou-se um personagem adequado à realidade atual. Rushdie agride a cultura destrutiva de nossa época assim como Cervantes hostilizou a cultura “junk” de seu próprio tempo.

Quichotte enfrenta um mundo em que a vida real é menos real que a da televisão, onde zombam do amor em programas de casais fictícios, e as notícias são menos reais que os boatos. Assassinos em toda parte. A civilização se desintegra. Nosso planeta, cada vez mais quente, breve acabará em chamas. É uma sátira devastadora da América, da Índia e da Inglaterra de hoje.

O enredo se passa nos EUA, em Londres e Mumbai - que Rushdie, nostálgico, chama de Bombay. Segue a aventura de um idealista cuja loucura consiste em sua nobreza de espírito e sua recusa em acreditar que existe um limite para o comportamento humano.

O Quichotte de Rushdie não é um fidalgo transtornado por lendas medievais sobre cavaleiros e, sim, por televisão de baixo nível. Ismail Smile, indiano-americano de 70 anos, vendedor itinerante de produtos farmacêuticos, assiste a tanta televisão-lixo nos motéis onde dorme pelo país, que fica aparvalhado. Apaixona -se por Salma R., indiana jovem e bonita, estrela de talk-show. Ele escreve cartas amorosas à moça e assina Quichotte - título da ópera de Jules Massenet (1842-1912).

Demitido do emprego, Smile parte num velho “Chevy” do Arizona para Nova York disposto a conquistar Salma. Na viagem ele imagina ter um filho como companheiro. Batiza de Sancho o rapaz invisível que é engraçado, mas sensato, sobre as dificuldades que os dois enfrentam. Questões sobre ficção e realidade estão em toda parte no livro.

É a grande conexão entre Rushdie e Cervantes, que se preocupava com a diferença entre realidade e imaginação. Outra similaridade: Rushdie também não se inquieta com a arquitetura desordenada de sua trama.

Antes de realizar seu sonho impossível, Quichotte quer se reconciliar com a irmã que está morrendo de câncer em Bombay. Quando esse capítulo termina, somos informados de que o autor da narrativa anterior era um escritor indiano de Nova York que publicou, sob o pseudônimo Sam DuChamp, oito livros medíocres de espionagem.

 
“Quichotte” Salman Rushdie Editora Random House, 416 págs., US$ 28 (importado) / BBB
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco

Agora mudou de estilo e escreve sobre “como somos prejudicados pela cultura que criamos”. Ele recorda sua infância em Bombay e a irmã de quem se afastou há 40 anos e que está com câncer.

Rushdie extrapola as noções de mágico e realismo quando diz que DuChamp não é real. Existe outro narrador, incorpóreo e divino, que une as histórias de pessoas que vieram de uma certa parte da Índia para tentar vencer na América. As narrativas se entrelaçam de forma surpreendente. No fim, Quichotte parece mais um romance sobre acreditar, com a convicção tão antiga e explorada de que a crença é suficiente para tornar as coisas verdadeiras.
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Fonte:  https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/01/03/em-quichotte-salman-rushdie-se-inspira-em-cervantes.ghtml

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