Dom Walmor Oliveira de Azevedo*
Profeta Ezequiel, Capela Sistina - Michelangelo
As profecias são indispensáveis na qualificação do tecido
antropológico-cultural que sustenta a vida de uma sociedade. Trata-se da
necessária clarividência que deve ser a estrela-guia de todos os
processos sociopolíticos e econômicos. Compreende-se que a ausência da
profecia pode contribuir na perda de rumos, na cristalização de
posicionamentos e dinâmicas que possam levar a desmandos do poder, à
corrupção e à indiferença em relação a desigualdades e ofensas contra a
dignidade humana, gerando sofrimento, principalmente, para os mais
pobres e indefesos. Sem a luz da profecia, impera a obscuridade das
trevas, mesmo quando vozes são propagadas, pois lhes falta a coerência
necessária para promover transformações.
Conforme escritos e
relatos do Antigo Testamento, a história de Israel mostra a importância
determinante da profecia para se reencontrar equilíbrio nas relações. É,
pois, imprescindível a presença da profecia na configuração de
instituições, livrando-as da submissão aos interesses das oligarquias –
sempre alheias aos pobres e sofredores. O profeta é aquele que vê o que a
maioria não consegue enxergar e a profecia, obviamente, não pode se
reduzir a discurso, à linguagem de impropérios, muitas vezes em tom
agressivo, sem a devida coerência. O enxergar de modo lúcido não
dispensa o profeta do selo de qualidade, próprio dos que cultivam
conduta transparente, que não compactuam com os privilégios e as
situações injustas denunciadas.
Compreende-se, assim, porque
historicamente sempre existiram confrontos entre profetas, sacerdotes e
reis. Esses últimos, frequentemente cegados pela posição que ocupam na
sociedade, enrijecidos e, por isso, incapazes de mudar, não conseguem
conquistar um modo de ver diferente, no horizonte da justiça e da
verdade. Quando se apaga a luz da profecia, reinam as obscuridades,
multiplicam-se os mecanismos balizadores da injustiça e,
irremediavelmente, impera a indiferença, destruidora da intocável
sensibilidade humana para o exercício da solidariedade. A ausência de
profecia revela-se ainda no descalabro de se falar uma coisa e se
praticar outra, denunciar alguém, mas usufruir dos mesmos privilégios.
A
profecia é indispensável na busca pelo equilíbrio que redefine
práticas, substitui hábitos, qualifica juízos e cria a mentalidade nova,
pautada no mais profundo sentido de solidariedade. Importante saber: a
profecia não é exclusividade de alguns poucos. Trata-se de um bem a ser
praticado por todos. Em uma passagem bíblica no Livro do Êxodo, Moisés é
informado que algumas pessoas não reconhecidas como profetas se
dedicavam a profetizar. Prontamente, a partir de sua lucidez, Moisés
proclama: quem dera se todo o povo profetizasse. Certamente, a justiça e
a solidariedade estariam asseguradas no coração da sociedade. Mas, ao
invés disso, os profetas sofrem oposição, e até perseguição. A
clarividência da profecia incomoda pela propriedade do questionamento
frontal ao exercício do poder – quando em vez de compreendido como
serviço, passa a ser fonte de decadências, em razão dos abusos, da falta
de interesse por Deus, das impiedades e fraudes.
No momento em
que a profecia perde vigor, a sociedade se desarticula e surgem cenários
sombrios, a exemplo do que se assiste na contemporaneidade. Sem ela, a
sociedade não se corrige nem consegue se reerguer. A civilização atual é
desafiada a cultivar linguagem profética, expressão da clarividência,
capacidade indispensável para não se repetir erros, ou comportamentos
como o de falar de um modo, mas incoerentemente viver e agir de outro.
Não
basta o leito de qualquer que seja a ideologia, deve-se buscar algo
mais, com força para refinar escutas, especialmente os clamores dos
pobres, e iluminar o olhar, revigorando a profecia, que faz falta à
sociedade. Cada pessoa possa assumir a condição de aprendiz, ciente de
que não basta a adoção de discursos “requentados”, enfraquecidos pelas
incoerências de seu porta-voz. A genuína profecia é um novo caminho,
lucidez capaz de oferecer respostas coerentes. É hora de buscá-la, para
consertar uma sociedade sem profecias.
------------------ * Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Fonte: http://arquidiocesebh.org.br/para-sua-fe/espiritualidade/artigo-de-dom-walmor/sociedade-sem-profecias/? 17/01/2020
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