Gilles Lapouge*
Um flagelo assola o clero: a guerra entre dois adversários da ordenação de padres
Um
livro está sendo lançado em Paris. Tem tudo para bombar. O tema é
apaixonante: diáconos casados podem ser ordenados padres? O livro é
assinado por duas personalidades: o cardeal Robert Sarah, um dos
principais nomes da cúria romana, e – principalmente – Bento XVI, de 82
anos, que renunciou ao cargo em 2013 e se tornou papa emérito, nomeando o
sucessor, o atual papa, Francisco.
Esse
panorama literário foi varrido subitamente por um tufão
teológico-psicológico de rara violência. Como explicar essa tempestade?
Uma guerra teológica entre os partidários do celibato e os que o
combatem com unhas e dentes? Não. Uma luta entre reformistas e
conservadores? Também não. Um choque de egos? Tampouco. Tempestade em
copo d’água? Não. Pode ser tudo isso, mas não apenas isso.
Vamos dar uma olhada nos sombrios bastidores do espetáculo que se desenrola em Roma.
Em
suma: o Sínodo da Amazônia, há alguns meses, acendeu o rastilho ao
sustentar que alguns diáconos possam ser ordenados padres na Amazônia,
considerando-se a penúria de sacerdotes na região. A decisão do papa
Francisco a respeito é, pois, esperada com impaciência.
Se essa
regra derrogatória tivesse sido aprovada por Francisco, uma fratura
escancararia a disciplina do celibato, obrigatório, desde a Idade Média
na Igreja latina. Sabemos, por palavras codificadas, que o papa
Francisco e seu predecessor, o papa emérito Bento XVI, divergem. Bento é
mais intransigente, menos laicista que Francisco.
Mas um outro
flagelo assola o Vaticano: a guerra entre dois adversários da ordenação
de padres casados. E os dois assinam o livro que opõe um o papa emérito e
o cardeal Sarah. Ambos rejeitam a tese do sínodo, mas um com
delicadeza, outro com fúria. Bento se exprime com contenção, enquanto
Sarah, prefeito da Congregação do Culto Divino, golpeia como um ferreiro
da Idade Média.
Num texto anterior, ele pôs no mesmo saco “as
ideologias ocidentais da homossexualidade e do aborto, de um lado, e o
fanatismo islamista (islâmico?) de outro”. Agora, no livro em questão, o
cardeal Robert Sarah escreveu esta frase: “Alguns bispos do Ocidente e
da América Latina usam o desespero de povos empobrecidos como
laboratório para seus projetos de aprendiz de feiticeiro, visando a
impor sacerdotes de segunda classe”.
Embaixadores estão tentando
alinhavar uma trégua entre os dois homens. O tom do diálogo tem sido
amargo. Um diplomata, aparentemente da brigada de Bento, disse: “É
evidente que o fato de aparecerem na capa do livro dois textos, um de
Bento, outro de Sarah, não significa que se trate de uma obra conjunta.
Bento e Sarah não escreveram um texto a quatro mãos. Bento estava
completamente alheio”.
A resposta do cardeal Robert Sarah, no
Twitter, foi cortante. “Bento sabia que nosso projeto tomaria forma de
livro”. O campo de Bento exigiu que seu nome seja retirado da coautoria,
da introdução e da conclusão do livro. Por enquanto, esperamos,
impacientes, a volta do papa Francisco à arena. /
TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
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* GILLES LAPOUGE É CORRESPONDENTE EM PARIS
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,um-livro-incendeia-o-vaticano,70003165336 20/01/2020
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