domingo, 19 de janeiro de 2020

Pra quem acredita

Lya Luft*

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Acreditei em muita coisa até quase o fim da infância e até hoje acredito em um monte de coisas, algumas das quais até duvido, mas faço calar a dúvida - porque, às vezes, acreditar é melhor, mais sábio ou... mais confortável.

Um pouquinho covarde, e daí? Nem todo mundo tem de ser herói. Venerei Joana D?Arc no livro de Erico Verissimo, que iluminou parte de minha infância e meu amor pelas palavras, mas não queria estar no lugar dela. Mas neste mundo, nesta hora, bem que a gente precisava de um pequeno exército de Joanas D?Arc e cavaleiros correspondentes.

Mas... ignorar é tão doce... fingir pode ser tão tranquilo... e por outro lado, quem aguentaria enfrentar todas as loucuras deste mundo, desta hora? Então a gente vai toureando com as realidades ruins, do jeito que dá. Dinheiro curto? Fechamos a bolsa, a carteira. Filho malcriado? Repensamos nossa atitude com ele, mesmo sem saber se deve ser para mais carinho ou mais dureza.

Mil recomendações sobre alimentação e saúde? Carne vermelha, morre mais cedo. Muito carboidrato, idem. Tudo depende do ponto de vista, do ângulo e das possibilidades de cada um. Há bastante tempo, como menos carne mas nunca foi por convicção, por não querer matar e comer quem tem rosto, cara ou focinho e pode me encarar. Talvez o corpo vá se adequando ao que lhe serve melhor.

Então como se faz?, perguntam. Existe uma coisa chamada bom senso, com que todos nascemos e que pode nos orientar bastante bem. Além disso, receitas, sugestões ou ordens, que vêm de fora, mudam com o tempo. E com os costumes.

Na infância de minha mãe, comia-se pão feito em casa, com banha de porco em lugar de manteiga, mais saboroso, diziam. Eu me horrorizei quando me disseram. Nenhum dos meus tios morreu cedo devido a isso. Piolho na cabeça da meninada mesmo em colégio caro? Neocid em pó e touca de banho da mãe por uma hora, depois lavar, e deu. Ninguém que eu conheça ficou louco por isso.

Chinelada quando preciso, que ninguém é de ferro e sobretudo meninos ativos, depois de dois ou três dias de chuva fechados em casa na praia, fazem qualquer um perder a cabeça. Gritaria, empurrões, mãe, o mano tirou meu carrinho, mãe, o mano baixou minha calça, mãe, dá um jeito nesses guris pelamordedeus.

Desconfio um bocado dessas modas e ídolos que hoje nos atropelam e confundem, principalmente a meninada. Todo rico não presta. Moralidade é coisa de velho. Emprego, só ganhando bem de saída, e sem chefe pra atazanar a gente. Para segurar seu homem ou enlouquecer sua mulher (amante se for o caso), as recomendações são tão acrobáticas que o melhor seria voto de celibato. Pensando bem, eu ainda acredito em muita coisa: decência, gentileza, afeto; confiança e respeito; boa administração de dinheiro e amor; um pouquinho de loucura aqui e ali, às vezes mergulhar e ver o que acontece.

E, como respondi certa vez a uma das minhas crianças que perguntava sobre gnomo e fada, "pra quem acredita, existe", eu acredito que somos trapalhões mas não inteiramente burros: o ser humano acaba consertando, um pouco, as bobagens que faz ou as tragédias que causa.
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*Escritora e tradutora brasileira. É colunista semanal da ZH e professora aposentada da UFRGS.
Imagem da Internet
Fonte:  https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=36b940ab6e3e9cf977f92dd0448e27dc 18/01/2020

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