Leandro Karnal*
História revela o processo de construção de cada cultura e deve ser desafio ao autoritarismo
Sua
história pessoal, a história da sua família e a do nosso país são
partes essenciais da identidade de cada um. Quero pensar três perguntas
para saber de história: utilidade, escrita e propriedade. Não escrevo
para colegas de profissão, porém para o público leitor com sensibilidade
e interesse. Começo pela primeira, a que lança a incômoda questão sobre
o valor da História.
Vivemos
em uma época de profunda polarização. Basta olharmos para os índices de
aprovação e rejeição de Donald Trump, que se mantiveram praticamente
inalterados desde sua eleição, para entendermos como há dois EUA no
mesmo país. Os dois lados vociferam grande indisposição um com o outro.
Situações similares podem ser observadas mundo afora. Em épocas
eleitorais, tal tensão fica mais evidente, todavia se engana quem
acredita que enterramos as machadinhas nos interstícios. Estarmos
permanentemente polarizados já seria ruim, um sintoma de doença na
democracia, segundo o livro Como as Democracias Morrem (de
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, 2018). O pior é nossa falta de vontade
ou incapacidade de superarmos os polos. Vou chamar esse fenômeno de
“bolharização”. Escolho viver em bolhas, em ilhas, isolado, apenas com
meu mundinho, minhas coisas e pessoas. Outra ilha/bolha só pode ser
povoada por gente ruim e perigosa, pois, na minha, apenas os anjos
vivem.
História é sempre essencial. Em momentos assim, a História
é ainda mais fundamental. E para que serve a História? Quem é
historiador já ouviu essa pergunta de forma direta ou amenizada. Quando
os EUA estavam em seu início, pobres e endividados, o futuro presidente
John Adams (1735-1826), negociando acordos comerciais em Paris, escreveu
para sua esposa, Abigail. Na carta, dizia que estava encantado com a
corte francesa, seus luxuosos palácios, seus corredores e salões lotados
de arte e história. Por outro lado, tomado pelo pragmatismo que
marcaria parte da história nacional daquele nosso vizinho do Norte, mas
também por certa inveja, refutava que aquilo não era o presente de sua
nação. Afirmava que a geração dele deveria ser de engenheiros, de
trabalhadores braçais estratégicos, pois tudo ainda estava por ser
feito. Se essa geração triunfasse, a seguinte, dos filhos do casal,
seria de arquitetos, mais despojados do peso de erguer a base, poderiam
dar acabamento fino ao novo que ali se desenhava. Por fim, os netos
poderiam ser artistas. Karl Marx, curiosamente, também dividiu o mundo
assim: primeiro as necessidades materiais, depois o resto. A economia,
depois a política. Ao fim, uma pátina de arte, um verniz de cultura. De
forma mais comum, ainda existe o pensamento de que o essencial e prático
estaria nas áreas de exatas e biológicas. As ciências humanas seriam
adereço, “perfumaria”. Nada mais enganoso. Algoritmos e novas
tecnologias têm tornado obsoleto muito do que fazíamos. Porém, entender a
natureza humana, suas variações em grupos ao longo do tempo e do
espaço, é algo que está cada vez mais necessário. De perfumaria,
passamos a artigo de primeira necessidade. Somos, nos dias de hoje, um
valor fundamental em grandes centros de pensamento.
Vou
desenvolver a ideia. É fundamental dar às coisas alguma perspectiva
histórica. Isso quer dizer que um mesmo fato sempre pode ser lido de
vários ângulos; que os agentes históricos se movem em um misto daquilo
que podem fazer no contexto que lhes permite que algo seja feito. Em
outras palavras, que muito pouco é natural quando se trata de
humanidade. A vasta maioria de nossas ações e pensamentos é moldada por
cultura, logo muda com o tempo. Além dessa desnaturalização, a
perspectiva histórica nos ensina alguma humildade. Podemos estudar
grandes homens e mulheres do passado, ou os mais humildes, e,
inequivocamente, todos morreram. Assurbanipal foi grande em seu tempo,
se sentia o homem mais poderoso da Terra. Quem é ele hoje em dia? Em que
suas ideias prosperaram? As lentes da história ajudam-nos a ajustar o
foco e dar aos fatos ocorridos dimensão e perspectiva para além do
impacto imediato. Algumas questões somem, como as polêmicas diárias de
mídias sociais, ao passo que a extrema relevância de outras pode nos ser
despercebida.
Pôr as coisas em perspectiva, admitir que tudo
tem mais de um lado e que todos precisam ser ouvidos, não significa,
contudo, que vale qualquer coisa em História ou que rever o passado para
que ele me diga o que me interessa seja possível. História
“desnaturaliza” o que parece inscrito no livro das leis físicas e
biológicas. História revela o processo de construção de cada cultura.
História sempre deve ser um desafio ao autoritarismo, ainda que muitos
historiadores tenham se tornado defensores de ditaduras, infelizmente.
Como há maus médicos, há maus profissionais da área da memória. História
insere os conceitos no seu significado de época, evita anacronismos,
revisita valores e desmancha dogmas pela sua própria natureza de
perguntar e colocar em perspectiva. Historiadores críticos incomodam
sistemas totalitários e foram perseguidos em regimes muito variados. Há
muito mais para pensar e dizer, mas, por enquanto, precisamos dar espaço
para a esperança e encerrar por aqui.
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* Historiador brasileiro, professor da Universidade Estadual de Campinas, especializado em história da América.
Imagem da Internet
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,para-que-serve-a-historia,70003167626 22/01/2020
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