Crónica de Anselmo Borges*
no Diário de Notícias
«Não temos dois Papas, existe apenas um, Francisco»
1. Julgo que nunca no Vaticano a Cúria
tinha ouvido tais denúncias como as que tem ouvido da parte do Papa
Francisco. Que "a corte é a peste do papado", que sofre de doenças
terríveis como "sentir-se imortal, indispensável",
"uma Cúria que não se autocritica, que não procura melhorar é um corpo
doente", "a fossilização mental e espiritual", "Alzheimer espiritual",
"a rivalidade e a vanglória", a doença da "esquizofrenia existencial",
que é a de "quem vive uma vida dupla", a doença
dos "rumores, mexericos, murmurações, má-língua", que pode levar ao
"homicídio a sangue frio", a doença de "divinizar os chefes"...
Estas foram as críticas elencadas logo
na saudação natalícia de 2014. Têm-se sucedido ao longo dos anos. Neste
Natal, Francisco avisou de modo frontal: "Hoje não somos os únicos que
produzem cultura, nem os primeiros nem os mais
escutados". Mais: "Já não estamos num regime de cristianismo, porque a
fé, especialmente na Europa, mas inclusivamente em grande parte do
Ocidente, já não constitui um pressuposto óbvio, e ela até é
frequentemente negada, gozada, marginalizada e ridicularizada."
Por isso, concluiu, citando o cardeal Carlo Martini, outro jesuíta, que
foi arcebispo de Milão: "A Igreja anda com duzentos anos de atraso.
Porque não se mexe? Temos medo. Medo em vez de coragem? No entanto, o
cimento da Igreja é a fé, a confiança, a coragem...
Só o amor vence o cansaço."
2. Mas a Cúria não está na disposição de
mudar, tudo indica. A última bomba-escândalo girou e gira à volta de um
livro do cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto
Divino e para a Disciplina dos Sacramentos,
nascido na Guiné-Conacri há 72 anos, que tentou associar como co-autor
da obra o Papa emérito. Tem como título, no original francês, Des
Profondeurs de Nos Coeurs (Do Fundo dos Nossos Corações), e na capa
aparecem Bento XVI e o cardeal Robert Sarah como co-autores.
Diga-se, logo de entrada, que Bento XVI
já não existe como Papa e veremos que também não há justificação nenhuma
para se chamar Papa emérito. Pode, pois, compreender-se o imbróglio
causado por esta publicação enganosa. Não é
de modo nenhum vontade minha entrar aqui na descrição da confusão
causada por este verdadeiro folhetim de péssimo gosto e com toques de
ridículo, que envolveu avanços e recuos, afirmações e desmentidos, e que
apenas tem por efeito causar ainda maior descredibilização
da Igreja. O que parece claro é que, a pouca distância temporal da
publicação da Exortação prometida pelo Papa Francisco após o Sínodo de
Março passado sobre a Amazónia, que terá em atenção as conclusões por
quase unanimidade da vontade sinodal de que o Papa
autorize a ordenação de homens casados e que dê o devido lugar à mulher
na Igreja, se quis influenciar negativamente Francisco para que trave o
que o Sínodo claramente propôs. Aliás, desse modo, travar-se-ia também o
caminho sinodal da Igreja Alemã, que vai
no mesmo sentido.
Para terminar com a confusão, o
secretário particular do Papa emérito, arcebispo Georg Gänswein, veio
afirmar no passado dia 14 que este "não tinha aprovado nenhum projecto
para um livro com dupla assinatura", Bento XVI "não
escreveu o livro a quatro mãos com o cardeal Sarah".
3. O que é claro é que o objectivo do livro é opor-se tenazmente à ordenação de homens casados.
Não há dúvida de que Bento XVI se opõe a
esta ordenação. Para ele, segundo os textos que continuam no livro de
Sarah, há para o padre uma impossibilidade de um vínculo matrimonial,
atendendo concretamente à celebração quotidiana
da Eucaristia.
No entanto, Ratzinger nem sempre pensou
assim, é bom lembrar. Em 1970, o então professor de Teologia escreveu um
pequeno livro, Fé e Futuro, resultado de uma série de palestras
radiofónicas sobre como seria a Igreja do ano 2000,
no qual se lê: "Certamente conhecerá também novas formas ministeriais e
ordenará como sacerdotes cristãos provados, experimentados, que
continuarão a exercer a sua profissão. Em muitas comunidades mais
pequenas e em grupos sociais homogéneos, a pastoral será
normalmente exercida deste modo. Juntamente com estas formas,
continuará a ser indispensável o sacerdote dedicado plenamente ao
exercício do ministério como até agora."
O texto fatal é do cardeal Sarah: "Há um
laço ontológico-sacramental entre o sacerdócio e o celibato. Qualquer
enfraquecimento desse vínculo levaria a pôr em causa o magistério do
concílio e dos Papas Paulo, João Paulo II e Bento
XVI. Peço humildemente ao Papa Francisco que nos proteja
definitivamente de tal possibilidade, vetando qualquer enfraquecimento
da lei do celibato sacerdotal, mesmo limitado a uma ou outra região."
Este é que é, no meu entender, o ponto
essencial da tomada de posição do livro em defesa do celibato
sacerdotal. Ora, esta afirmação é inadmissível, até do ponto de vista
histórico: não é sabido que havia apóstolos casados, incluindo
São Pedro? Não foi apenas no segundo milénio do cristianismo que se foi
impondo a lei do celibato obrigatório? Mas, mesmo neste enquadramento, a
lei não se estendeu à Igreja Católica oriental, onde há padres casados,
e Bento XVI decretou que os padres anglicanos
que entrassem na Igreja Católica continuariam com a sua família. A
actual norma do celibato obrigatório não provém de Jesus, que não a
impôs aos apóstolos. São Paulo - estou a citar o teólogo José M.
Castillo - afirmou que ele como os outros apóstolos tinham
o direito de ir acompanhados por uma mulher cristã, lê-se na Primeira
Carta aos Coríntios, e, nas Cartas a Timóteo e a Tito, diz-se que os
candidatos aos ministérios eclesiais, incluindo o episcopado, devem ser
homens casados com uma mulher, que saibam governar
a família, porque "quem não sabe governar a sua própria casa, como vai
cuidar da Igreja de Deus?". Além disso, é sabido que no concílio
ecuménico de Niceia, o bispo Pafnúcio, celibatário e venerado confessor
da fé, gritou perante a assembleia conciliar que
"não se devia impor aos homens consagrados esse jugo pesado, dizendo
que é também digno de honra o acto matrimonial e imaculado o próprio
casamento; e que não danificassem a Igreja exagerando a severidade".
Onde se quer então fundamentar esse
"vínculo ontológico-sacramental entre o sacerdócio e o celibato"? Ele
não existe pura e simplesmente. É falsa a ideia de que através da
ordenação o padre entraria e ficaria num grau superior
de ser em relação aos outros fiéis, como é falsa, consequentemente, a
ideia de que o fim do celibato retiraria ao padre esse lugar especial
sagrado, que realmente não tem. De facto, o sacerdócio ministerial é
apenas um serviço ao único sacerdócio real que
é o de todos os baptizados: o padre ou o bispo não são mais cristãos do
que os outros cristãos, têm apenas uma função de serviço diferente, e
na Igreja há variedade de serviços.
Ainda há-de aparecer quem me mostre onde
é que no Novo Testamento Jesus ordenou alguém in sacris. Mas foi e é
este pseudocarácter sagrado especial do padre e do bispo que esteve e
está na base dessa calamidade que o Papa Francisco
não se cansa de denunciar: o clericalismo, que reivindica duas classes
na Igreja: o clero e o leigo, com estatuto ontológico e não meramente
funcional diferente.
4. Estou convencido de que, desta vez,
Ratzinger acabou por ser utilizado e até manipulado. Ninguém sabe até
que ponto. De qualquer forma, todo este episódio vem chamar a atenção
para o estatuto do que indevidamente se chama
"Papa emérito". De facto, nada justifica esse título. Pelo contrário.
Significativamente, Francisco nunca se chamou a si mesmo Papa, mas
simplesmente bispo de Roma. O Papa não é senão o bispo de Roma, e ao
bispo de Roma está vinculada a missão da unidade da
fé. Assim, Ratzinger é tão-só bispo emérito de Roma, mas não Papa
emérito e, consequentemente, não deveria utilizar as vestimentas
pontifícias, que só criam a confusão de se pensar que há dois Papas. Até
o cardeal Gerhard Müller, um dos representantes da ala
mais conservadora da Cúria, veio lembrar: "Que não haja confusões! Não
temos dois Papas, existe apenas um, Francisco. Diz-se Papa emérito por
cortesia, mas na realidade Bento XVI é bispo emérito."
5. Já este texto estava terminado,
quando se soube que tudo indica que o Papa publicará ainda nesta semana a
Exortação pós-Sínodo sobre a Amazónia.
Anselmo Borges, no
DN
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* Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Fonte: https://www.dn.pt/edicao-do-dia/26-jan-2020/cardeal-sarah-papa-emerito-e-francisco-11749387.html
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