Roberto DaMatta*
Faz algum tempo que eu descobri que não tenho mais que carregar o meu futuro
Deixem-me
repetir: um dos mais surpreendentes triunfos de ficar velho (velhice é
outra coisa) é descobrir, com um sorriso irônico e um enorme alívio, que
não se tem futuro.
Uma
analogia batida é imaginar o final de uma viajem de trem quando
passamos pelos subúrbios e pelas zonas mais pobres da cidade e, em
seguida, entramos no enxame de gente ansiosa da estação. Neste momento, a
viagem termina, não há mais trilho a ser trilhado. Acabar é ficar com
um absoluto presente no colo. Um presente que não será mais vivido e
transmitido para ninguém.
Faz algum tempo que eu descobri que não
tenho mais que carregar o meu futuro. E eu lhes confesso: ele foi
pesado, cheio de coisas escondidas e de memórias empoeiradas como é
comum acontecer com o reprimido, o ocultado e o aprisionado, que
imploram livramento.
Quando
mencionei isso numa aula, alguns jovens me olharam intrigados, mas
nenhum ficou decepcionado. Acho até que alguns me invejaram por ter
consciência de que estou mais próximo do fim da linha, mas – e esse
ponto é absolutamente fundamental – não finalizei o gosto da viagem. O
fim tem uma vantagem: ele torna o presente algo único e precioso. Se
para os jovens o futuro demanda múltiplas escolhas imperiosas, que podem
ou não dar certo – sobretudo com o poderoso preocupar-se com o que se
“vai ser”, essa exigência do individualismo que, no caso americano, é
muito mais obsessiva do que entre nós e faz com que o futuro assuma uma
tremenda e muitas vezes agoniada proporção.
Nesses tempos
globalizados e um tanto sinistros, eu – no papel de pai, avô e professor
– sei como é complicado sair da verdadeira prisão de um Brasil no qual a
gente só tinha futuro como médico, advogado, engenheiro e oficial das
Forças Armadas (com ênfase no oficial) e em uma elitista carreira
diplomática, para poder ser “alguém”. Hoje, porém, pode-se até ser
polícia, dono de bar, motorista e garçom.
Convenhamos que esse
naipe de escolhas se tornou muito amplo e, certamente, demasiado
democrático no contexto de um universo profissional preciso e
estruturado para as camadas médias, um leque no qual o futuro
invariavelmente deveria repetir o passado.
Quando, nos anos 50,
entrei numa Faculdade de Filosofia, um amigo decretou que ia estudar
numa escola para mulheres e veados. De lá, disse ele, você sai professor
o que, no Brasil, é pior do que ser lixeiro, pois não aprender algo
novo, descobrir o que ninguém sabe, é uma dimensão indesejada. Pode-se
ser do contra, mas é crime, pecado e tabu falar em alternativas e
liberdade. Até hoje, pagamos salários de merda aos lixeiros, mas não há
verbas previstas para conferências e palestras acadêmicas que,
obviamente, não precisam de honorários.
Quando virei um leitor
aplicado, disseram-me que poderia enlouquecer, pois é justamente isso o
que ocorre com quem relativiza costumes estabelecidos e prisões
culturais solidamente construídas. Como duvidar ou questionar se o
caminho já estava traçado primeiro pelo catolicismo e depois pelo
chamado “pensamento crítico”?
Tornei-me, Deus e eu sabemos como,
antropólogo social. Um profissional da dúvida, um investigador do por
que gostamos de comer misturando arroz com feijão e o que isso teria a
ver com a mestiçagem mascaradora e criadora de hierarquias. Pesquisei
ainda como os chamados “índios”, que andam sem roupa, inventam seus
mundos. Um conhecido me perguntou se eles não ficavam excitados vendo
aquelas mulheres nuas.
Questão tão esdrúxula quanto válida quando
descobrimos por que a “política” foi transformada num espaço de
enriquecimento e aristocratização, porque não se resiste aos dinheiros
públicos que até anteontem, sendo de todos, não seriam de ninguém...
Um dia ouvi num ato falho que, além de louco, era antropófago. Fiquei
feliz. Descobri o meu futuro pesquisando sociedades modestas, muito mais
pobres do que a pobreza que vive ao nosso lado e é mantida pelo nosso
estilo de vida. Encontrei futuro no Museu Nacional que, não obstante,
pegou fogo.
Lamento ver instituições como a Casa de Rui Barbosa
serem atingidas. Para mim, elas deveriam ser independentes.
Pesquisadores e professores não podem ser funcionários públicos – os
papéis não combinam.
Ponto final: sem liberdade, amor e
perseverança não há, mesmo velho, nenhum futuro. Aliás, o que está para
chegar depende de lucidez intelectual: o verdadeiro livramento.
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* Antropólogo, conferencista, consultor, colunista de jornal e produtor brasileiro de TV
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,livramentos,70003167414 22/01/2020
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