Anos atrás, li um artigo de um sociólogo chinês
que afirmava considerar interessante o culto à democracia no Ocidente.
Apesar de partilhar com meus conterrâneos ocidentais a crença de que a
democracia é, de longe, o menos ruim dos regimes conhecidos (por limitar
o poder e não porque exista alguma forma de sabedoria popular), com
todas suas mazelas, achei interessante um sociólogo fazer esse
julgamento.
É óbvio que, em alguns séculos, talvez a democracia tenha passado, e
nossos descendentes julguem peculiar nossa fé num sistema altamente
volátil e comparem essa nossa fé à antiga fé de se ler presságios nas
vísceras dos animais: tão irracional quanto.
A China é o grande desafio histórico do mundo contemporâneo.
Não me refiro tanto aos jovens chineses que frequentam universidades e
seus professores: esses são a mesma coisa no mundo inteiro, uma elite
chique, acostumada a privilégios, que no fundo tem nojinho de gente
pobre e ignorante.
Refiro-me à população comum, que não fez universidade, ou se o
fez, o fez apenas com objetivos técnicos de sobrevivência. Tive a
chance, recentemente, de falar com pessoas assim na China e de entender
um pouco alguns meandros desse gigante econômico, que poderá pôr em
dúvida a relação, supostamente considerada como essencial, entre
sociedade de mercado (e o enriquecimento em larga escala que ela gera) e
democracia liberal.
Umas das coisas que mais me chama a atenção nesse estrato da
população, com quem você pode conversar se não considerar gente “comum”
um asno —como o fazem, corriqueiramente, os membros da minha tribo— é um
certo desinteresse profundo pela ideia de democracia.
Ouvi de uma mulher de cerca de 30 anos, cujo marido acabou de abrir
um pequeno restaurante num shopping chique tipo JK Iguatemi em Pequim,
que estão trabalhando como loucos para fazer dar certo, que não querem a
vida inquieta e infeliz que seus irmãos de Hong Kong têm. Manifestações
nas ruas, interrupção do cotidiano e insegurança. Segundo ela, a vida
na China é tranquila, feliz e segura.
A comparação com Hong Kong é significativa se lembrarmos que a região vive instabilidade há meses.
A ideia que trocamos facilmente liberdade por estabilidade é fato. O amor à democracia é um fetiche.
Mesmo a liberdade de expressão
é mais sentida como valor por certas profissões apenas, e mesmo elas
(professores, jornalistas, intelectuais em geral), ao longo de século
20, se revelaram bem fogosas quanto a compactuar com formas não
democráticas de governo. Basta ter uma ideologia e um emprego que
justifiquem a parceria.
O brilhante historiador Tony Judt,
no seu livro “Past Imperfect: French Intellectuals, 1944-1956”,
University of California Press, 1992, e no seu monumental “Postwar: A
History of Europe Since 1945”, Penguin, 2006, diz que todos os sistemas
totalitários no século 20 precisaram de apoio de intelectuais,
jornalistas, professores, artistas e acadêmicos, à direita e à
esquerda.
Enfim, acreditar que esses profissionais garantem, com certeza, a
democracia, é uma ilusão. O que se viu no século 20 foi muitos deles
apoiarem regimes totalitários, à direita e à esquerda.
Suspeito, às vezes, que democracia seja, antes de tudo, um estilo de
vida. Política no espaço público como entendemos (debates, disputas,
polêmicas) inexiste no seio da população comum na China. E não parece
fazer falta. É como se política fosse pra profissionais gestores. O
cidadão comum cuida da sua vida. Política é algo que se você ou eu nos
metermos, atrapalha.
Quanto ao controle das vidas, esse é tecnológico. A China é uma República de Platão com alta tecnologia.
Todo o avançado sistema de tecnologia da informação serve à população
e, ao mesmo tempo, serve para tornar as vidas “visíveis” para o Estado.
Lá, Estado e mercado são a mesma coisa.
O desafio que a China nos coloca é se de fato a democracia é
fundamental para se viver materialmente bem. Homens e mulheres tendem a
optar pela segurança material em detrimento de formas mais “abstratas”
de bem-estar.
----------------------
Nenhum comentário:
Postar um comentário