José de Souza Martins*
Foto: Carvall
Os linchamentos
daqui são o termômetro da desorganização social que se expressa no estado de
anomia. O da transformação social patológica que não gera as correspondentes
regras de conduta social que lhe deem sentido.
Indução de suposta
legitimação da exclusão social dos diferentes e dos que estão à margem incita
ao justiçamento como apropriada decorrência de concepção fascista de ordem
política.
O Brasil continua a
ser, provavelmente, o país que mais lincha no mundo. É que temos fatores
diferenciais para que aqui o linchamento tenha se tornado uma modalidade
cotidiana de violência coletiva. Em outros países, em que ele ocorre de modo
intermitente, existem circunstâncias não cotidianas, que o favorecem, como as
de situação de guerra e de conflito político.
Há cinco anos, no
Brasil, havia um linchamento ou tentativa de linchamento por dia. Hoje, são
cerca de dois, em média. Uma área mais ampla do território nacional foi
incluída na geografia do justiçamento. Linchamos, aliás, desde o século XVI.
Que a violência
coletiva persista depois de cinco séculos, indica que é desencadeada pelo modo
como está organizada a sociedade brasileira e que, nestes cinco séculos, o país
não conseguiu dar passos decisivos em direção à civilização.
Criamos uma
sociedade sociologicamente superficial, determinada por deficiências crônicas,
decorrentes da sobrevivência de referências de conduta de quando apenas
ensaiávamos o que seria a sociedade brasileira que nascia.Uma carta do padre
Manuel da Nóbrega, do século XVI, nos dá preciosas indicações nesse sentido.
Linchamento não
inclui o indevidamente chamado “linchamento moral”. O verdadeiro linchamento
incide fisicamente sobre o corpo da vítima. Nos casos brasileiros,
implicitamente e subjacente a essas ocorrências, há um “protocolo” de
procedimentos, uma gradação da violência praticada, que vai da perseguição, do
apedrejamento e do espancamento até a mutilação e a queima da vítima ainda
viva.
Os extremos e os
momentos desse “protocolo” são a referência para cálculo do índice de crueldade
de cada ocorrência. É, portanto, possível medir a intensidade do ódio que move
a multidão na execução do destinatário da fúria, seja ele culpado ou inocente.
E, nesse sentido,
ao longo do tempo ou no recorte de um período determinado, por esse meio, pode-se
avaliar não só o agravamento do problema em si, mas, sobretudo, a
intensificação da crise social de que é indício.
Os linchamentos
daqui são o termômetro da desorganização social que se expressa no estado de
anomia. O da transformação social patológica que não gera as correspondentes
regras de conduta social que lhe deem sentido.
Continuamos
mergulhados nessa situação crítica e nada indica que os governantes estão
dotados da lucidez civilizada necessária àquilo que é próprio da governação. Ao
contrário, presidente, ministros e acólitos enviam reiterados sinais à
sociedade em favor do conflito e da violência e de explícitas medidas em favor
da anomização crescente do país.
É uma técnica de
dominação política. Mesmo que estimular os linchamentos não seja intenção
confessa de quem governa, a indução de uma suposta legitimação da exclusão
social dos diferentes e dos que estão à margem da vida social e política incita
à prática do justiçamento como apropriada decorrência de uma concepção fascista
de ordem política.
O retorno ao tema
decorre das novas evidências de mudanças tanto na geografia dessa violência de
contrapartida, a vingança coletiva, quanto nas características das vítimas da
violência original que motiva o justiçamento. Há 30 anos, os linchamentos
estavam concentrados em São Paulo, na Bahia e no Rio de Janeiro, nas próprias
áreas metropolitanas das capitais.
Aos poucos as
ocorrências foram se deslocando em direção ao Centro-oeste e ao Norte e aos
municípios interioranos. Nos últimos meses, tornaram-se mais evidentes e mais
violentos no Amazonas, embora continuem a ocorrer no país inteiro.
Em três casos
ocorridos nesse Estado, as vítimas estavam presas, foram tiradas da cadeia pela
turba enfurecida, em dois casos foram mortas e mutiladas e queimadas, a
multidão gritando ao redor da pira sacrificial. A vítima sobrevivente era uma
mulher grávida, que incendiara a casa de uma rival, em consequência do que
morreu um menino de dois anos.
Nos outros dois
casos, de um jovem de 18 anos e de um homem de 28 anos, o motivo foi estupro e
assassinato de criança. Num dos casos, o estuprador era filho de pastor
evangélico e namorado de sua vítima. No outro, escondeu a morta sob a cama e
ali foi o corpo descoberto pela companheira do criminoso. Portanto, pessoas à
margem de relações sociais estáveis.
O ódio nos
linchamentos é expressão de medo e de covardia. São de preferência praticados à
noite, para evitar o reconhecimento dos participantes. Os participantes sabem
que estão violando a lei e a concepção de punição restitutiva, a que permite a
reintegração do criminoso na sociedade. O justiçamento sumário objetiva impedir
que isso aconteça. É decretação da morte física, mas também da morte social do
linchado.
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* José de Souza
Martins é Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, Pesquisador
Emérito do CNPq e membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é
autor de “Linchamentos A Justiça Popular no Brasil” (Contexto).
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