sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

O triunfo da BARBÁRIE

José de Souza Martins*
 
 Foto: Carvall
 Os linchamentos daqui são o termômetro da desorganização social que se expressa no estado de anomia. O da transformação social patológica que não gera as correspondentes regras de conduta social que lhe deem sentido.

Indução de suposta legitimação da exclusão social dos diferentes e dos que estão à margem incita ao justiçamento como apropriada decorrência de concepção fascista de ordem política.

O Brasil continua a ser, provavelmente, o país que mais lincha no mundo. É que temos fatores diferenciais para que aqui o linchamento tenha se tornado uma modalidade cotidiana de violência coletiva. Em outros países, em que ele ocorre de modo intermitente, existem circunstâncias não cotidianas, que o favorecem, como as de situação de guerra e de conflito político.

Há cinco anos, no Brasil, havia um linchamento ou tentativa de linchamento por dia. Hoje, são cerca de dois, em média. Uma área mais ampla do território nacional foi incluída na geografia do justiçamento. Linchamos, aliás, desde o século XVI.

Que a violência coletiva persista depois de cinco séculos, indica que é desencadeada pelo modo como está organizada a sociedade brasileira e que, nestes cinco séculos, o país não conseguiu dar passos decisivos em direção à civilização.

Criamos uma sociedade sociologicamente superficial, determinada por deficiências crônicas, decorrentes da sobrevivência de referências de conduta de quando apenas ensaiávamos o que seria a sociedade brasileira que nascia.Uma carta do padre Manuel da Nóbrega, do século XVI, nos dá preciosas indicações nesse sentido.

Linchamento não inclui o indevidamente chamado “linchamento moral”. O verdadeiro linchamento incide fisicamente sobre o corpo da vítima. Nos casos brasileiros, implicitamente e subjacente a essas ocorrências, há um “protocolo” de procedimentos, uma gradação da violência praticada, que vai da perseguição, do apedrejamento e do espancamento até a mutilação e a queima da vítima ainda viva.
Os extremos e os momentos desse “protocolo” são a referência para cálculo do índice de crueldade de cada ocorrência. É, portanto, possível medir a intensidade do ódio que move a multidão na execução do destinatário da fúria, seja ele culpado ou inocente.

E, nesse sentido, ao longo do tempo ou no recorte de um período determinado, por esse meio, pode-se avaliar não só o agravamento do problema em si, mas, sobretudo, a intensificação da crise social de que é indício.

Os linchamentos daqui são o termômetro da desorganização social que se expressa no estado de anomia. O da transformação social patológica que não gera as correspondentes regras de conduta social que lhe deem sentido.

Continuamos mergulhados nessa situação crítica e nada indica que os governantes estão dotados da lucidez civilizada necessária àquilo que é próprio da governação. Ao contrário, presidente, ministros e acólitos enviam reiterados sinais à sociedade em favor do conflito e da violência e de explícitas medidas em favor da anomização crescente do país.

É uma técnica de dominação política. Mesmo que estimular os linchamentos não seja intenção confessa de quem governa, a indução de uma suposta legitimação da exclusão social dos diferentes e dos que estão à margem da vida social e política incita à prática do justiçamento como apropriada decorrência de uma concepção fascista de ordem política.

O retorno ao tema decorre das novas evidências de mudanças tanto na geografia dessa violência de contrapartida, a vingança coletiva, quanto nas características das vítimas da violência original que motiva o justiçamento. Há 30 anos, os linchamentos estavam concentrados em São Paulo, na Bahia e no Rio de Janeiro, nas próprias áreas metropolitanas das capitais.

Aos poucos as ocorrências foram se deslocando em direção ao Centro-oeste e ao Norte e aos municípios interioranos. Nos últimos meses, tornaram-se mais evidentes e mais violentos no Amazonas, embora continuem a ocorrer no país inteiro.

Em três casos ocorridos nesse Estado, as vítimas estavam presas, foram tiradas da cadeia pela turba enfurecida, em dois casos foram mortas e mutiladas e queimadas, a multidão gritando ao redor da pira sacrificial. A vítima sobrevivente era uma mulher grávida, que incendiara a casa de uma rival, em consequência do que morreu um menino de dois anos.

Nos outros dois casos, de um jovem de 18 anos e de um homem de 28 anos, o motivo foi estupro e assassinato de criança. Num dos casos, o estuprador era filho de pastor evangélico e namorado de sua vítima. No outro, escondeu a morta sob a cama e ali foi o corpo descoberto pela companheira do criminoso. Portanto, pessoas à margem de relações sociais estáveis.

O ódio nos linchamentos é expressão de medo e de covardia. São de preferência praticados à noite, para evitar o reconhecimento dos participantes. Os participantes sabem que estão violando a lei e a concepção de punição restitutiva, a que permite a reintegração do criminoso na sociedade. O justiçamento sumário objetiva impedir que isso aconteça. É decretação da morte física, mas também da morte social do linchado.
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* José de Souza Martins é Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, Pesquisador Emérito do CNPq e membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Linchamentos A Justiça Popular no Brasil” (Contexto).

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