Em Desterros,
sua estreia na literatura, a psiquiatra Natalia Timerman foi bastante
elogiada pela forma como humanizou as prisioneiras do sistema carcerário
de São Paulo. Rachaduras, seu novo livro, o primeiro de
ficção, subverte essa ideia e parte rumo ao oposto – nos contos
frenéticos, cheios de fluxo de consciência e vozes sobrepostas, Timerman
aguçou o olhar da cidade e pôs uma lente de aumento nas neuroses
cotidianas. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Natalia fala
de seu processo criativo e explica sua reconciliação com São Paulo.
Os
personagens de ‘Rachaduras’ parecem o tempo todo expostos aos problemas
da vida cotidiana, como se a fissura estivesse no banal, e não no
extraordinário. Como foi o seu processo de escrita?
A escrita deste livro se deu ao longo de muitos anos. Percebi que se
tratava de uma unidade – rachada – quando notei se repetir o tropeço, o
não pertencimento. A própria estrutura do livro remete a isso, dividindo
em três eixos a recorrência de apelos de personagens que tentam com
urgência fazer parte das coisas como são: a vida banal, transcorrendo
como “deve” ser. Mas assumir a impossibilidade, as rachaduras, é, como
no poema de Leonard Cohen, entender que é pela quebra que pode entrar a
luz.
Você começou escrevendo sobre a realidade das
mulheres encarceradas e agora se volta para a ficção. Como é transitar
por esses eixos? O que a ficção pode aprender com a não ficção, e
vice-versa?
A escrita literária me parece ser dos poucos
meios de que dispomos para acessar a complexidade do real; e a ficção
consegue aumentar a abrangência desse acesso, porque inventa a si e se
dá de volta ao real. A não ficção exige um freio, uma certa reverência
às pessoas que nasceram, que existem; a ficção pede uma entrega por meio
da qual os personagens passam a existir e falar por si.
O
fluxo de consciência é uma das estratégias narrativas mais presentes no
livro. A forma precede o conteúdo ou é um encaixe? Como foi encontrar a
voz de cada personagem?
Como cada conto surgiu de uma
maneira, talvez não haja uma precedência, mas um acontecer simultâneo de
forma e conteúdo servindo-se reciprocamente. O ímpeto de escrever pode
servir a algo vago até que seja escrito: uma ideia esfumaçada, uma frase
isolada que pede amparo de quem a possa dizer. Me parece que foram
perguntas feitas pelos personagens, por sua voz, e a resposta, se
existe, se dá em seu dizer.
São Paulo é quase uma personagem do livro. Que cidade é essa e qual a sua relação com o caos urbano?
São Paulo é minha matriz, meu repertório de imaginação, onde cresci e
de onde sempre quis sair. Curioso é que, depois que comecei a escrever,
minha vontade de morar em outro lugar se apaziguou. Parece que as
palavras me conciliaram com ela, me permitindo sair de mim e então da
cidade – escrevendo sobre e a partir dela.
Sheila Heti,
em ‘Maternidade’, diz que ‘Só duas pessoas ficam ao lado do réu — sua
mãe e seu advogado’. Em ‘Desterros’, as mães exercem um papel
fundamental no documento que você pretendia construir, e muitos dos
contos de ‘Rachaduras’ são protagonizados por mães em profunda agonia.
Qual é o principal desafio de narrar a maternidade?
No
exato instante em que uma mãe está escrevendo, ela não está cuidando de
seus filhos. É uma escrita culpada: mãe é culpa, é insuficiência, pois
uma mãe é sempre também uma mulher, que, já dizia Simone de Beauvoir,
não encontra nas funções de engendrar e aleitar uma afirmação da sua
existência, e sim a passividade de suportar seu destino biológico.
Escrever sobre maternidade é, apesar e por meio da culpa, superar o que
há de passivo no mero cumprimento de um fato biológico: é conciliar o
chamado desse destino com a possibilidade de realização de si como
mulher.
RACHADURAS
AUTORA: NATALIA TIMERMAN
EDITORA: QUELÔNIO
152 PÁGS., R$ 37,40
-------------------
*MATEUS BALDI É ESCRITOR E CRÍTICO LITERÁRIO, FUNDADOR DA PLATAFORMA ‘RESENHA DE BOLSO’
Fonte: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,contos-da-psiquiatra-natalia-timerman-tratam-das-neuroses-cotidianas,70003161815 Acesso 25/01/2020
Nenhum comentário:
Postar um comentário