13 Janeiro 2020
"Por um lado, o filósofo, herdeiro e primeiro expoente da teoria
crítica, propõe interpretar todo o progresso humano à luz da
"constelação de fé e saber" e, por outro, convoca a filosofia à
sua tarefa principal: responder às grandes questões sobre a origem e o destino
da humanidade, aquelas sintetizadas por Kant mais de dois
séculos atrás: o que posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? O que
é o homem?".
O artigo é do filósofo, jornalista e escritor italiano Giancarlo Bosetti, diretor
da revista de cultura política Reset, cofundada com Norberto Bobbio,
dentre outros, publicado no jornal La Repubblica, 11-01-2020. A tradução
é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Jürgen Habermas, após dez
anos de trabalho, aqueles entre seus oitenta e noventa anos, enviou
recentemente para publicação uma surpreendente obra por seu tamanho (dois
volumes, mais de 1700 páginas) e por seu conteúdo. Um duplo desafio aparece
rapidamente claro nas páginas de Auch eine Geshichte der Philosophie:
desafio à interpretação atual da modernidade como secularização e desafio à
"desintegração" acadêmica da filosofia em muitas diferentes técnicas.
Por um lado, o filósofo, herdeiro e primeiro expoente da teoria crítica, propõe
interpretar todo o progresso humano à luz da "constelação de fé
e saber" e, por outro, convoca a filosofia à sua tarefa
principal: responder às grandes questões sobre a origem e o destino da
humanidade, aquelas sintetizadas por Kant mais de dois séculos
atrás: o que posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? O que é o
homem?
Habermas quer incentivar os
filósofos a retomarem um caminho, nunca terminado, mesmo na época atual, que é
pós-metafísica. O que significa que não podemos mais nos refugiar no mito ou na
garantia de um Ser que seja uma só coisa com o bem, o belo e o justo e
que dite regras. Mas não devemos renunciar a um "pensamento geral".
Até agora, o "processo de aprendizagem", no qual se baseia a visão
habermasiana, na segunda metade do século XX, deu uma discreta prova de sua
capacidade de "integração". Para o filósofo da "ética do
discurso", a partir dos recursos morais presentes na comunicação
humana (linguagem), é possível realizar um progresso que regula, com o direito, o tráfico das
atividades humanas. Esse progresso revelou um futuro de possível normatividade
universal, kantianamente acima das diferenças tribais e nacionais. Mas agora
arriscamos um "descarrilamento" daquele caminho: parecem estar
secando os recursos disponíveis para a modernidade reproduzir a si mesma,
parece estar se esgotando o combustível que alimenta as instituições da
liberdade. Preocupa a crise daqueles mecanismos que haviam funcionado,
especialmente na Europa, ao segregar o
direito a partir dos recursos morais da vida pública e da política.
Para Habermas, parecem estar secando os recursos disponíveis para a
modernidade reproduzir a si mesma, parece estar se esgotando o combustível que
alimenta as instituições da liberdade – Giancarlo Bosetti
O problema ao qual Habermas dedica essas 1700
páginas é precisamente o das "fontes" da normatividade, das
energias que se mantêm unida e podem fazer crescer a solidariedade entre os
seres humanos. Por isso quis traçar a história desses recursos, procurando seus
vestígios desde início do homo sapiens, nos três milênios da
"constelação" religião-conhecimento-vida das comunidades. Onde
estão as chaves que explicam como, a partir dos ritos hominídeos, chegamos à Constituição
americana de 1787, à Carta dos Direitos Humanos de 1948 ou à União
Europeia? E, se as encontrássemos, não serão essas mesmas as chaves que
podem nos colocar de volta no caminho?
O problema ao qual Habermas dedica as 1700 páginas do seu novo livro é
precisamente o das "fontes" da normatividade, das energias que se
mantêm unida e podem fazer crescer a solidariedade entre os seres humanos –
Giancarlo Bosetti
Conforme anunciado pela reflexão "pós-secular", desde o
diálogo de 2004 com o cardeal Ratzinger e, mais recentemente, com Verbalizzare
il sacro Habermas, coloca aqui
no centro de seu pensamento a religião, a dimensão sagrada e ritual que
antecede a formação da linguagem e da racionalidade que a linguagem incorpora.
A história dos recursos que produzem normatividade e, portanto,
moral, e depois direito, começa a partir daí.
Para isso, encontramos no livro uma atenção renovada e vistosa à "época
axial" - o conceito é de Karl Jaspers - que é o período entre o
nono e o terceiro séculos a.C., que vê um extraordinário florescimento de fé e
de pensamento, com Confúcio e Lao Tsé
na China, com os Upanishads e Buda na Índia, com
os profetas bíblicos na Palestina, com Homero e a filosofia
grega. Em tempos relativamente próximos, e sem contato entre si, se produzem
fenômenos que oferecem ensinamentos morais e princípios de saber que permitem
que indivíduos e comunidades enfrentem as ameaças naturais e sociais, ensinando
a gerenciar as dissonâncias cognitivas e os revezes de todos os tipos, ajudando
a integração a fazer o seu caminho. As energias de solidariedade que mantêm as
ordens sociais unidas se geram e regeneram historicamente nas práticas de culto
das comunidades, a secularização transfere e traduz depois as obrigações de
natureza religiosa em estruturas de consciência abstratas.
Habermas quer traçar a história dos recursos da normatividade,
procurando seus vestígios desde início do homo sapiens, nos três milênios da
"constelação" religião-conhecimento-vida das comunidades – Giancarlo
Bosetti
Habermas confessou,
apresentando seu livro à imprensa alemã e também no seminário realizado em Cortona
com estudiosos italianos, que se inspirou na "famosa formulação de Adorno de que todo o
conteúdo teológico deve ‘imigrar no profano’". E assim fizeram
historicamente, mas o que não está claro - acrescentou ele - é se e como essa
tradução, do teológico para o laico, "possa prosseguir até hoje"
diante de problemas éticos de tipo completamente novo, como aqueles postos pelo
fim do crescimento natural do organismo humano e da possibilidade de
intervenções descontroladas sobre a sua estrutura genética.
A hipótese de continuar a buscar recursos nos depósitos de significado,
nas "reservas semânticas" da religião, parece para Habermas plausível
– Giancarlo Bosetti
A hipótese de continuar a buscar recursos nos depósitos de significado,
nas "reservas semânticas" da religião, parece para Habermas plausível. Há uma
encruzilhada na história da filosofia que esse livro propõe como central, a que
separa o caminho de David Hume daquele de Emanuel
Kant: ambos concordam em separar a fé da ciência, mas o primeiro elimina
qualquer legado e vestígio da fé judaica e cristã da filosofia, enquanto o
segundo tenta incluir na filosofia contemporânea a substância conceitual que a
religião cristã havia assumido através da simbiose com a filosofia grega, o neoplatonismo,
Orígenes e Agostinho. Hume desconstrói os conceitos de
identidade pessoal e de obrigação moral, enquanto Kant pretende
reconstruir o núcleo moral da ética cristã e da lei natural "dentro dos
limites da pura razão". Uma encruzilhada que tem um seguimento no
empirismo, Newton, nas ciências
naturais, de um lado, e no idealismo transcendental e em Hegel, pelo outro, especialmente aquele Hegel
da filosofia do direito que coloca no centro da modernidade a questão de
integração social de indivíduos, em sua unicidade, com normas abstratas e
gerais. Um tema que permanece caro à teoria social crítica, que Habermas leva a explorar os
vínculos entre o indivíduo e a comunidade, sobre a formação do "nós"
na concretude histórica das formas particulares de vida que cada comunidade
assume, com as suas normas-guias.
Habermas deixa em aberto um questionamento: se os processos de
aprendizado moral, que se encarnam na constitucionalização das liberdades
legais, estão ficando emperrados,
caberá ainda à constelação de fé-saber os
alimentar?
– Giancarlo Bosett
Essa imponente obra oferece a confirmação do percurso do grande filósofo
alemão, mas também várias surpresas e permanecerá no centro da discussão
filosófica contemporânea por um longo tempo. Deixa em aberto um questionamento
dramático: se os processos de aprendizado moral, que se encarnam na
constitucionalização das liberdades legais, estão ficando emperrados,
caberá ainda à constelação de fé-saber os alimentar? E, se também os recursos
religiosos escasseiam, haverá movimentos seculares e práticas sociais capazes
recolocar em movimento a máquina?
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/595535-o-retorno-de-habermas
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