Roberto DaMatta*
Sabia da morte e a conhecia, mas fiquei surpreso com sua impositiva
realidade
Eu a vi com o rosto de mármore, e os olhos para sempre fechados. Peguei
no seu braço: estava como um pedaço de gelo. Sabia da morte e a conhecia, mas
como ocorre na vida e no amor, fiquei surpreso com sua impositiva realidade.
Mario Batlha, meu querido amigo me pronunciou essas palavras neste
Natal, no bar do Soares aqui em Niterói, no nosso encontro anual de velhos
amigos – velhos pois todos temos mais de 89 anos.
Quando entramos no bar, os jovens atendentes sorriem, pois todo jovem
gosta de ouvir histórias contadas por velhos. Elas revelam como somos tolos e
antigos. E é preciso sentir-se esperto e moderno neste Brasil onde o sujeito
que chama o outro de tosco não sabe o quão tosco ele é.
Vamos ao bar em busca da juventude que a amizade e o álcool – o espírito
– fornecem. Bar tem a ver com alegria, piada, aventura e bebidas. É um espaço
aberto e ambíguo, pois abriga e revela, permite sair e entrar sem pedir
licença. É público no ambiente, mas suas mesas são como casas oferecendo a seus
ocupantes uma certa privacidade.
Foi ali que meu querido amigo Mario Batalha me olhou com olhos marejados
de lágrimas e eu o olhei de volta com meus olhos molhados e turvos de velho.
Perdi a esposa que o Dr. Alzheimer roubou de mim faz uma década,
complementou ele numa explicação patética como ocorre em todo sofrimento.
Fomos ao enterro de Sueli, a infortunada esposa de Mario. Lé estava ele
com suas roupas antigas, magro como um tuberculoso, triste como um profeta.
Olhava para todos com a surpresa dos que descobrem que o mundo é feito de
sofrimento e, naquele momento, ele o vivia integralmente. No centro daquele
triste mundo, jazia sua mulher cercada de flores numa imobilidade de estátua.
Era a presença da morte na antessala do cemitério, pois a casa dos mortos é um
dormitório do qual os religiosos dizem que se desperta para o outro mundo.
Pessoas chegavam e saíam, repetia Mario com um sorriso sem graça no
rosto. Eram amigos queridos e alguns parentes. Todos estavam tocados pela magia
da morta, minha mulher que foi generosa e tranquila. Todos diziam que tivesse
“força”, a palavra de conforto da época de Star Wars quando, de fato, ali nada
tinha de naves espaciais. Muito pelo contrário, continuou Mario Batalha
tragando seu uísque, ali ia-se para o fundo de uma cova, para dentro da terra
de onde um o primeiro homem saiu. Um barro fosco e malcheiroso do qual nasceu
Deus sabe como, um espírito voltado para cima. Um olhar para as estrelas e,
eventualmente, para o sol que cega.
Calma Mario, disse com compaixão e afaguei suas mãos magras de velho.
Tudo passa...
Todos os outros amigos e até o Boca Mole e seu marido concordaram.
Estavam de bom humor e faziam intrigas alegres e bem-humoradas em honra ao
amargor de Mario. Fulano dissse X de sicrano que, por sua vez, comentou Y de
beltrano...
A conversa ia do bar ao cemitério. De um lado o álcool, que é um espírito
que despertava; do outro, o espírito liberto da carne pronta a apodrecer e
fazia chorar em impulsos sofridos, como um orgasmo maldito.
Eu olhava tudo como de fora, mas os laços de amizade me envolviam. Eu
amo meu amigo Mario Batalha, um cara zangado, mas que jamais foi capaz de dizer
um não. Um sujeito cuja generosidade é maior do que o Pão de Açúcar visto de
Icaraí, e por isso sofria.
Dez anos de doença. Dez anos de sentimentos de culpa. Dez anos de
lágrimas represadas. Subitamente, Mario Batalha tirou seu revólver 38 da cinta
de oficial de infantaria da reserva devidamente aposentado e começou a atirar
para cima, calmo, no Bar do Soares causando pânico, dando-lhe um ar jovem e
ativo de puteiro animado. Fregueses ocasionais corriam, mas nós ficamos e
bebemos ao surto do Mario. Era uma legítima manifestação de sua dor. Coisa
singular e espalhafatosa, sem dúvida, mas não feriu ninguém, exceto algumas
lâmpadas e garrafas que se quebram ou mudaram de prateleira. Tal como a esposa
que fora linda e jazia inerme no seu caixão, prestes a ser enterrada no que me
pareceu um enorme buraco.
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*Antropólogo, conferencista, consultor, colunista de jornal e produtor brasileiro de TV.
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