O físico, astrônomo e pesquisador fala sobre espiritualidade, ateísmo, tecnologia e nosso futuro: “A natureza não dá a mínima para a gente”
Desde criança, Marcelo Gleiser nutre uma curiosidade muito
grande pelos mistérios do universo. Questões sobre como surgiu tudo o
que nos rodeia, a origem da própria vida e a inquietude de querer saber
se estamos sozinhos no cosmo ocupavam e ainda ocupam sua mente. Ainda
adolescente, com cerca de 13 anos, ele conta ter descoberto que muitas
dessas questões faziam parte da ciência moderna. E foi assim que começou
sua exploração pelos caminhos da física
e da astronomia. Em 1981, Gleiser se formou em física na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, fez mestrado na Universidade
Federal do Rio de Janeiro e doutorado no King’s College de Londres.
Desde 1991, é professor e pesquisador no Dartmouth College, nos Estados
Unidos.
Para o intelectual brasileiro, hoje com 60 anos, a espiritualidade
e a ciência não são saberes opostos, como se convencionou acreditar ao
longo dos séculos. Ele defende, na verdade, que ambos os fatores se
complementam. Em março de 2019, em razão de suas reflexões acerca do
tema, foi a primeira personalidade brasileira contemplada com o Prêmio
Templeton, conhecido como o “Nobel da espiritualidade”, distinção que já
foi recebida por nomes como Dalai Lama e Madre Teresa de Calcutá.
Recentemente, lançou o livro O caldeirão azul: O universo, o homem e seu espírito (Record),
em que compila textos de sua autoria publicados nos últimos anos em
diversas mídias. Talvez este seja o melhor ponto de partida para quem
quer tomar primeiro contato com a vasta produção de Gleiser, já que se
trata de ensaios que dão generosa amostra de suas ideias sobre ciência e
espiritualidade, futuro da humanidade e do planeta e nossa relação com a
tecnologia, com uma tônica filosófica e social.
E foi sob esse
prisma que, pouco antes de conduzir uma de suas lives no YouTube,
Marcelo Gleiser gentilmente reservou um tempo para conversar com a Trip.
Trip.
Os seus textos são elogiados por serem acessíveis ao grande público.
Essa sua maneira de abordar os assuntos científicos, éticos e
cosmológicos é produto intencional, planejado, ou apenas o seu jeito
particular de falar das coisas?
Marcelo Gleiser. É
difícil separar as duas coisas. Diria que meu jeito de explicar é algo
natural e que vem da minha empatia em relação aos que me escutam. Acho
que isso é algo que me remete à minha adolescência, pois sempre tive que
estudar muito para ter sucesso, eu não era um daqueles caras que sempre
sabia tudo. Entendo, também, que as pessoas gostam de histórias e que,
ao contar a ciência como uma grande história, desperto o interesse
delas.
No senso comum, sempre houve
aquela noção de perfeição do universo, mas você mostra, em suas obras,
que nessa perfeição também há muita desordem e assimetria. Nesse
sentido, você diria que podemos tirar uma preciosa lição de vida se
aceitarmos que tudo o que acontece é para o bem, mesmo tragédias e
adversidades que enfrentamos no microcosmo de nossas realidades
pessoais? Acho que não existe um grande “plano”, para o bem ou
para o mal, especialmente arquitetado pela natureza ou, ainda mais
vagamente, pelo destino. As coisas acontecem, algumas planejadas por nós
e outras de maneira acidental. O essencial é como nos preparamos para
isso e como reagimos quando temos que encarar alguma dificuldade. No
livro Criação imperfeita, argumento que a imperfeição é a mola
criadora da natureza. Vejo isso na gente também. Se fossemos perfeitos,
não teríamos a necessidade de criar e crescer. Se criamos para o bem ou
para o mal é uma escolha que nos remete ao mundo da ética, e aí o que
vale é a história e as intenções de cada um.
É possível rastrear as origens da necessidade que
temos da crença no divino? E não acreditar em Deus não seria antinatural
para a espécie humana, uma vez que o próprio ateísmo de Richard Dawkins
e seus seguidores pode ser considerado também uma forma de religião? Não
há dúvida de que as origens da religião vêm de nossos antepassados, que
não podiam compreender as ações da Natureza, tanto para o bem (a
fertilidade das florestas e rios, por exemplo) ou para o mal
(tempestades, terremotos, vulcões). Viam as ações naturais como um
grande mistério impenetrável e associaram a ação de deuses a ele. Essa
atração pelo desconhecido é uma das características mais essenciais do
ser humano; todos nós, ateus ou crentes, somos atraídos pelo
desconhecido. A questão de “Deus” é mais complexa e depende do contexto
cultural. O que, para nós no Brasil, é a crença “natural” em um Deus
bíblico, não faz sentido para os bilhões de hindus e budistas pelo
mundo, ou para os nativos da Amazônia ou da Nova Zelândia. A natureza do
divino é relativa, mas não a necessidade de crer. O ateísmo mais
radical a que você se refere — e existem várias gradações de ateísmo —
é, a meu ver, a crença na não crença. Portanto, é uma forma de fé, já
que não se pode eliminar a possibilidade da existência de uma ou mais
divindades no mundo. No máximo, podemos afirmar que não temos evidência
da existência de deuses, o que não é o mesmo de uma prova definitiva.
Por isso me coloco como agnóstico e não ateu.
Em
sua avaliação, o impacto das tecnologias digitais nas relações sociais
tem sido mais positivo ou negativo? Tendo em vista que hoje já
conhecemos pessoas que se casam com bonecos e tantas coisas que caberiam
num roteiro de Black Mirror surgindo frequentemente em nossos
assuntos diários, você acha que o avanço da Inteligência Artificial, da
realidade virtual e da robótica, por exemplo, podem dar vazão ao
desenvolvimento de comportamentos humanos cada vez mais estranhos no
futuro? Não há dúvida de que a tecnologia digital está
transformando o mundo, incluindo como as pessoas se comportam e se
comunicam. Existem aspectos tanto positivos como negativos disso, como
quase tudo. Em termos positivos, as pessoas ganham uma voz individual,
uma presença no mundo que não tinham no passado recente. Você tem sua
presença no Instagram, no YouTube e, de repente, pessoas no mundo
inteiro te “conhecem”, ou podem participar da sua vida de alguma forma.
Por outro lado, isso leva a um grande perigo, o de se viver em função
dos outros, do que os outros pensam de você. Não só as pessoas, mas os
governos e empresas. A privacidade é perdida, e já é manipulada para
fins econômicos. Diria que existe, sim, uma ameaça aqui, a de as pessoas
perderem a capacidade de se relacionar de forma direta com as outras,
sem uma tela como intermediário. Outro problema é o tempo perdido em
frente das telas; livros ou atividades criativas, como tocar um
instrumento, ficam sendo secundárias aos celulares e videogames, aos
vídeos no YouTube. Ou seja, cresce a passividade das pessoas, que acabam
sendo mais recipientes de informação do que criadoras de informação. Os
criadores de conteúdo são pouquíssimos quando comparados aos que
consomem os produtos. Quanto ao futuro, muito provavelmente isso vai se
exacerbar cada vez mais. O que é estranho para nós da geração que tem um
pé no passado analógico e outro no mundo digital, para nossos filhos, é
natural. O que realmente pega é como essa geração vai se relacionar com
a natureza. O meu medo é que não entendam o quanto dependemos dela para
sobreviver enquanto espécie. Não dá para sobreviver como no mundo
virtual, com muitas vidas e mundos imaginários. Temos esse aqui e só.
Esse é um problema bem mais urgente do que a possibilidade de uma IA
tomar conta do mundo.
“Não temos evidência da existência de deuses, o que não é o mesmo de uma prova definitiva. Por isso me coloco como agnóstico e não ateu”
Marcelo Gleiser
A ciência é capaz de atestar a força do pensamento e de
técnicas de programação mental para conquistar objetivos materiais? Falo
de teorias que sugerem que riqueza, pobreza, saúde e doença, felicidade
e infelicidade estão associadas a bloqueios e desbloqueios mentais. Não
acho que tenha a ver. Obviamente, uma atitude positiva com relação à
vida, uma força de vontade grande para se ter sucesso, terão uma
influência essencial na vida da pessoa, independente de suas origens. Se
você acha que vai fracassar, você vai fracassar. Se você tem traumas
que não enfrenta através de terapia, você terá problemas de
relacionamento. Mas isso é algo individual, subjetivo, e nada tem a ver
com uma influência cósmica. A Natureza não dá a mínima para a gente.
Recentemente, uma reportagem na revista Wired falou sobre
um grupo de ativistas usando realidade virtual para tentar
conscientizar as pessoas a respeito da tortura inerente ao que chamam de
"agricultura animal" — o confinamento e reprodução de determinadas
espécies somente para o abate na indústria alimentícia — , o que
inevitavelmente influencia na seleção natural, uma vez que a gerações
inteiras dessas espécies — bovinos, suínos e aves — não são dadas as
chances de lutar por sua vida, como aconteceria em um ecossistema
equilibrado. Depois da descoberta do cultivo e preparo de uma infinidade
de alimentos naturais extremamente nutritivos, continuar comendo carne,
na opinião dos ativistas, é um costume que só se justifica num “padrão
Matrix de vida”, sendo que a grande maioria dos humanos veem graça na
“fofura” dos animais não humanos, mas continuam se alimentando da morte
desses seres. Que tipo de reflexão podemos fazer sobre isso? Ótima
pergunta! Vejo, no século 21, esse apetite insaciável por carne animal
como um atraso moral e, mais ainda, um verdadeiro genocídio. São milhões
e milhões de animais abatidos diariamente só no Brasil. Não temos o
direito de fazer isso com outras criaturas que têm uma razão de viver.
Ademais, em termos ambientais, não há nada de mais terrível do que a
agropecuária. Se as pessoas conseguissem ao menos reduzir o seu consumo
de carne, o mundo se transformaria radicalmente, incluindo o aquecimento
global. E sugiro que os restaurantes tenham parte da culpa, por
oferecerem pouquíssimas (ou nenhuma) opção vegetariana. As pessoas acham
que a culinária vegetariana é ruim, o que é uma grande bobagem. Se come
muito bem sem consumir carne. E não consumir carne é comprovadamente
melhor para a saúde. Espero que o consumo de carne seja encarado nas
próximas décadas como foi o cigarro na década passada! Não entendo como a
Geração Z ainda come carne.
Ainda
no gancho da pergunta anterior, qual é a sua visão a respeito da chamada
bioarte? Gente como o brasileiro Eduardo Kacs, que criou a coelha
transgênica fluorescente Alba, e que também traduziu um trecho da Bíblia
para código Morse, que, por sua vez, foi transformado em uma sequência
de DNA depois inserida em uma bactéria. Contanto que seja feita
eticamente, e como um ato criativo positivo sem o intuito de criar o
sofrimento animal ou humano, não vejo um problema com uma nova forma de
expressão artística. O problema em transformar um animal em uma nova
criatura é que imediatamente este animal fica isolado do processo de
seleção natural e passa a ser uma curiosidade que serve apenas ao
propósito mesquinho dos humanos que o criaram. Qual o intuito de se
criar essa nova criatura? Essa é a questão que o bioartista deve
responder.
“Existe a ameaça de as pessoas perderem a capacidade de se relacionar de forma direta com as outras, sem uma tela como intermediário”
Marcelo Gleiser
Não é de hoje que a ciência e o ambientalismo são
desacreditados e até minorizados por líderes políticos e de seitas. Mas,
na era da pós-verdade, assusta que ideias absurdas como terraplanismo e
a negação dos motivos comprovados de catástrofes ecológicas que já
estamos testemunhando encontrem tantos adeptos. Como é possível reverter
esse quadro? O único modo de reverter essa tendência absurda é
expô-la ao ridículo. E isso só pode ser feito quando pessoas com a
autoridade real do saber se manifestam publicamente, apresentando os
erros dessas crenças e modismos caóticos. Acho que os cientistas no
Brasil e no mundo deveriam se manifestar mais publicamente sobre isso, e
as escolas deveriam discutir isso no currículo. Só a educação pode
combater o obscurantismo cultural.
Qual é o sentido da vida sob o prisma da ciência? A
ciência tem uma versão do sentido da vida que não é interessante em
termos existenciais. É se reproduzir e basta. Obviamente, o ser humano
precisa de muito mais do que isso e essa busca por sentido não é
necessariamente uma questão científica. A ciência impõe certos
parâmetros nessa busca, mas a razão dela é subjetiva e cultural. Cada um
de nós precisa ter uma razão para acordar todos os dias e ir para o
mundo. Diria que o sentido da vida é viver uma vida com sentido,
buscando sempre a riqueza moral que justifica sua existência, e que faça
desse mundo um lugar melhor para os que te seguirem.
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Fonte: https://revistatrip.uol.com.br/trip/o-fisico-e-astronomo-marcelo-gleiser-fala-sobre-ateismo-religiao-tecnologia-e-o-sentido-da-vida?utm_campaign=oqel&utm_source=Newsletter
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