04 de janeiro de 2020
Comumente
pensamos na escritura com um texto escrito, parte de um cânone fechado,
sacrossanto, como uma verdade literal. Mas para a autora Karen
Armstrong, que aos 75 anos é embaixadora com a United Nations Alliance
of Civilizations, esta concepção equivocada é a razão das “nossas atuais
dificuldades no tocante à religião”. Ou seja, hoje as pessoas ou
consideram a religião de modo exageradamente literal ou a negam
completamente.
Esperando
corrigir esse equívoco, Karen Armstrong, em seu livro mais recente, faz
um histórico de como as escrituras do mundo foram produzidas e
desenvolvidas. Em vez de tentar fazer com que a escritura diga o que
desejamos, usando-a para promover a divisão e a intolerância, ela acha
que devemos ver a “ambiguidade das escrituras mais como a expressão da
complexidade do dilema humano e compreendê-las como obras evoluídas de
arte que viabilizam a transcendência e a transformação moral”.
A introdução e conclusão de The Lost Art of Scripture (A Arte Perdida das Escrituras)
têm um tom de manifesto, mas este trabalho robusto constitui, por outro
lado, um tour panorâmico da história das religiões em que a autora não
explora profundamente uma única escritura. Não se trata de uma exegese
ou de ideias originais – ela é uma estudiosa, não acadêmica. E
repetidamente se refere à escritura como uma forma de arte. Não obstante
o título do livro, ela não explica satisfatoriamente porque a arte está
“perdida” ou os textos sagrados necessitam ser “resgatados”. Mas Karen
Armstrong é uma excepcional narradora e seu livro é fascinante. É um
compêndio de filosofia religiosa.
Ela começa reformulando material de livros anteriores, particularmente A History of God (Uma História de Deus)
traçando o desenvolvimento da Bíblia Hebraica, desentranhando-a e
esmiuçando como é seu estilo. De Israel ela salta para a Índia, traçando
as origens dos Vedas, e depois para a China e as escrituras mais
antigas, no sentido moderno de textos sagrados escritos: os oráculos
chineses. Em meio a esta história itinerante, ela ocasionalmente
sublinha que a escritura não tem por fim ser lida “com os olhos passando
rapidamente por uma página escrita, mas “sua mensagem tem de ser
digerida, inscrita no coração e na mente e fundida com as profundezas do
ser”. Por meio de rituais que combinam música e movimentos corporais, a
escritura permite que os participantes incorporem a tradição. Desta
maneira a escritura resulta não só em transcendência, mas em
transformação moral.
Passando por Israel, Índia e China, Karen
Armstrong traça as revoluções da escrita que refletiram “a maior
transformação social, política e econômica” no século 6 a.C. Nesse
momento havia Esdras, Confúcio e as Upanishads, Mêncio, Mahavira, Lao Zi
e Buda – como foi retratado no Cânone Pali e nas sutras Mahayana, que
podem ser as primeiras “fanfics” (contos escritos por pessoas inspiradas
em outros autores). Mais ou menos no meio de seu livro, Armstrong se
atém aos Gospels, que chama adequadamente de “midrash”, “um
entrelaçamento de versos escritos para criar uma história que insere
significado e esperança no presente confuso”.
Com seções
meticulosas sobre os Talmudistas, neoconfucianos, os teólogos medievais e
os cabalistas, Karen continua a história até o Grande Despertar, O
hasidismo e a ascensão do fundamentalismo moderno – sem dúvida o mais
equivocado desenvolvimento religioso do livro.
Em várias seções
ela contextualiza as tendências agressivas do islamismo, explicando que
no Alcorão “a jihad está principalmente associada não à guerra, mas à
resistência não violenta”, como “a luta” para a entrega espiritual. Cada
sura violenta do Alcorão, ela afirma, foi escrita durante a luta dos
muçulmanos pela sobrevivência e elas foram na maior parte ignoradas até a
era moderna, quando o colonialismo provocou uma reação violenta que
precisava de uma justificativa religiosa. O significativo é que Karen
Armstrong não tem explicações tolerantes similares no caso de qualquer
outra escritura. Mas ela, que foi uma freira católica, não poupa
críticas ao protestantismo. Na sua visão, empreendemos o caminho errado
na Reforma, com sua ênfase na palavra escrita divorciada do ritual – no
literalismo às custas da metáfora. Armstrong condena a Reforma como “uma
ressurgência do hemisfério esquerdo do cérebro” e se existe um único
deslize no seu livro é a sua tentativa de examinar a história religiosa
através de lentes neurobiológicas.
“Os neurologistas descobriram
que o hemisfério direito do cérebro é essencial para a criação de
poesia, música, e religião”, ela escreve na introdução. Esta descoberta
permite a ela escrever que “na Índia as pessoas recitam o mantra com o
fim de lograr a transição do hemisfério esquerdo do cérebro, analítico e
discursivo, para uma forma mais profunda e intuitiva de consciência”. A
autora afirma ainda que o Deus da Bíblia não pode ser conhecido
cognitivamente nos moldes do hemisfério esquerdo do cérebro: esta
percepção exige a visão holística do direito em que o bem e o mal são
fundidos de algum modo indescritível”.
Mas este apelo à
neurociência é um tanto simplista. Por um lado, a escritura tem a ver
com a mente, não com o cérebro e a autora não faz menção à mente –
talvez porque os neurocientistas sabem pouco sobre ela. E ainda, ao
filtrar a compreensão escritural através do prisma cérebro
esquerdo/cérebro direito, ela cai na mesma armadilha que condena: tentar
compreender a religião racionalmente.
Talvez Karen Armstrong
esteja tentando convencer os céticos, mas ela própria admite que este
enfoque é errado. À medida que chega perto do fim do livro, ela diz que
ciência e escritura “são bem diferentes e aplicar uma à outra leva a
confusão”.
A missão da autora de disseminar a compaixão por meio
do entendimento é louvável. Mas apesar da extensa pesquisa e escrito com
lucidez, os fins e os meios de The Lost Art of Scripture infelizmente
são confusos. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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*RANDY ROSENTHAL É MESTRE EM ESTUDOS TEOLÓGICOS PELA UNIVERSIDADE DE HARVARD, ONDE É PROFESSOR
Fonte: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,ex-freira-e-teologa-karen-armstrong-pondera-sobre-o-fanatismo-religioso,70003142148
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