terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Além do princípio do prazer, o fascínio


 Lucia Serrano Pereira (*)

Livro de psicanalistas franceses analisa possibilidade de uma
 fascinação pelo trauma. Foto: Georgina Coupe/ Number 10 via Fotos Públicas

2020 comemora um século da publicação do texto de Freud “Além do princípio do prazer”. Texto da virada na produção freudiana, escrito pós-Primeira Guerra, onde Freud se vê frente ao enigma dos sonhos repetitivos daqueles que seguiam aprisionados no sofrimento, de modo especial, mesmo que deixando para trás o tempo do front.

Havia algo impossível de elaborar que retornava incessantemente através de sonhos perturbadores, marcados por sua fixidez. De que se tratava isso que resistia a se deslocar, a se desfazer e permitir com que o sujeito pudesse deixar para trás o horror?

Para além do que que Freud já havia formulado com a hipótese do inconsciente e de suas formações, das estruturas clínicas, da angústia, das inibições, dos sintomas, do narcisismo e tantos outros conceitos que iam construindo o caminho da psicanálise, agora surgia algo novo. A possibilidade de conceber e formular o campo da repetição como um funcionamento psíquico até então não desvendado. Demoníaco, de certa forma.

O que faz com que sejamos tomados em circuitos de repetição que não comandamos, e que quando nos damos por conta, estamos lá? Desde coisas muito banais, como o caminho que percorremos de carro e que mesmo pensando variar, em ir por ruas diferentes, não é que pegamos a mesma, de novo… Até as mais complexas – por que a escolha amorosa levou novamente para alguém que não pode estar presente…

Território importante das histórias e das grandes ficções, cinema, literatura, onde um roteiro repetitivo comanda e o sujeito dança como os sapatinhos vermelhos (Andersen) ou segue a música do flautista de Hamelin ( irmãos Grimm). Caminhos mortíferos. Ela, Catarina, tem que dançar com seus sapatinhos, dança incessante que a leva amputar os pés, e ainda assim não se libertar. E as crianças de Hamelin são conduzidas à morte da mesma forma pela qual o flautista levou a infestação de ratos ao som hipnotizante, fascinante, da melodia que os conduziu ao afogamento. Ambas histórias que implicam algo de um excesso, em torno do qual se arma o enredo…

E nós, seguimos tendo que lidar com tudo isso, as guerras em suas novas formas, os circuitos angustiantes, aprisionantes que se apresentam com outras cenas, as de nosso tempo.

Há pouco mais de um ano nosso colega Roland Chemama escreve, junto com Christian Hoffman (os dois psicanalistas em Paris) “Trauma dans la civilization, terrorisme et guerres des identités”. Livro que parte dos atentados terroristas que tem acontecido nos últimos anos na França e de seus efeitos na clínica. Eles pensam a partir da escuta dos seus pacientes e das questões que implicam o laço social. Um fragmento de leitura ficou especialmente me interrogando e faz ao mesmo tempo pensar no diálogo com o “Além do princípio…” em nosso tempo.

Chemama se pergunta, em certo ponto: “uma fascinação pelo trauma?” E narra um pequeno recorte clínico. Uma jovem paciente mora perto de um dos lugares onde aconteceram os atentados de novembro de 2015. Mesmo vizinha aos eventos não presenciou nada, nenhuma cena sangrenta, ele diz. Mas ela ouvia os barulhos dos acontecimentos que se desdobravam ali perto, e que ela distinguia mais ou menos, mas o suficiente para aterrorizá-la. Ligando o radio aos poucos foi entendendo o que estava acontecendo e as notícias que começavam a ser transmitidas, em relação com o que estava ouvindo. Ela pensa que o melhor é se isolar e se fechar em casa. Mas ao mesmo tempo, não consegue deixar a sacada onde tinha ouvido os ruídos inquietantes.

Durante as semanas que se seguiram, ela se deu conta de que voltava e voltava à sacada, coisa que não tinha o costume de fazer, e se questiona. Acha que o determinante para esse comportamento é uma angústia, como se pudesse se assegurar, indo ali, que nada estava acontecendo, e que não corria risco de que alguma agressão pudesse vir.

Mas logo pensa algo diferente, de que não era bem isso, ou de que não era só isso, ou principalmente isso. Chemama sublinha: de fato estava, e mesmo nas palavras dela, suspensa ao terror que tinha conhecido e, em sua ação de voltar, talvez procurasse reencontrar o traumatismo daquele momento, quase como que um ponto inaugural. Se tratava de uma angústia e do medo de que algo acontecesse (o que era bem comum das pessoas sentirem naqueles dias e semanas), ou mais: se ali não poderíamos pensar em um estado de fascinação? A natureza disso tudo ficava ainda opaca, diz Chemama. Mas nos indica essa direção, de que o estado de diferentes formas de guerra que podemos viver em nosso tempo (também sofremos os efeitos das guerras que se travam em nosso contexto) ressaltam de forma contundente aquilo que encontramos de paradoxal no que comanda nossos atos e que nos leva, muitas vezes, à nossa perda. Além do princípio do prazer, que Freud escreve junto com a inquietante estranheza. Não coincidência.
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(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Fonte:  https://www.sul21.com.br/colunas/coluna-appoa/2020/01/alem-do-principio-do-prazer-o-fascinio/ 

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