2020 comemora um século da publicação do texto de Freud
“Além do princípio do prazer”. Texto da virada na produção freudiana,
escrito pós-Primeira Guerra, onde Freud se vê frente ao enigma dos
sonhos repetitivos daqueles que seguiam aprisionados no sofrimento, de
modo especial, mesmo que deixando para trás o tempo do front.
Havia algo impossível de elaborar que retornava incessantemente
através de sonhos perturbadores, marcados por sua fixidez. De que se
tratava isso que resistia a se deslocar, a se desfazer e permitir com
que o sujeito pudesse deixar para trás o horror?
Para além do que que Freud já havia formulado com a hipótese do
inconsciente e de suas formações, das estruturas clínicas, da angústia,
das inibições, dos sintomas, do narcisismo e tantos outros conceitos que
iam construindo o caminho da psicanálise, agora surgia algo novo. A
possibilidade de conceber e formular o campo da repetição como um
funcionamento psíquico até então não desvendado. Demoníaco, de certa
forma.
O que faz com que sejamos tomados em circuitos de repetição que não
comandamos, e que quando nos damos por conta, estamos lá? Desde coisas
muito banais, como o caminho que percorremos de carro e que mesmo
pensando variar, em ir por ruas diferentes, não é que pegamos a mesma,
de novo… Até as mais complexas – por que a escolha amorosa levou
novamente para alguém que não pode estar presente…
Território importante das histórias e das grandes ficções, cinema,
literatura, onde um roteiro repetitivo comanda e o sujeito dança como os
sapatinhos vermelhos (Andersen) ou segue a música do flautista de
Hamelin ( irmãos Grimm). Caminhos mortíferos. Ela, Catarina, tem que
dançar com seus sapatinhos, dança incessante que a leva amputar os pés, e
ainda assim não se libertar. E as crianças de Hamelin são conduzidas à
morte da mesma forma pela qual o flautista levou a infestação de ratos
ao som hipnotizante, fascinante, da melodia que os conduziu ao
afogamento. Ambas histórias que implicam algo de um excesso, em torno do
qual se arma o enredo…
E nós, seguimos tendo que lidar com tudo isso, as guerras em suas
novas formas, os circuitos angustiantes, aprisionantes que se apresentam
com outras cenas, as de nosso tempo.
Há pouco mais de um ano nosso colega Roland Chemama escreve, junto com Christian Hoffman (os dois psicanalistas em Paris) “Trauma dans la civilization, terrorisme et guerres des identités”.
Livro que parte dos atentados terroristas que tem acontecido nos
últimos anos na França e de seus efeitos na clínica. Eles pensam a
partir da escuta dos seus pacientes e das questões que implicam o laço
social. Um fragmento de leitura ficou especialmente me interrogando e
faz ao mesmo tempo pensar no diálogo com o “Além do princípio…” em nosso
tempo.
Chemama se pergunta, em certo ponto: “uma fascinação pelo trauma?” E
narra um pequeno recorte clínico. Uma jovem paciente mora perto de um
dos lugares onde aconteceram os atentados de novembro de 2015. Mesmo
vizinha aos eventos não presenciou nada, nenhuma cena sangrenta, ele
diz. Mas ela ouvia os barulhos dos acontecimentos que se desdobravam ali
perto, e que ela distinguia mais ou menos, mas o suficiente para
aterrorizá-la. Ligando o radio aos poucos foi entendendo o que estava
acontecendo e as notícias que começavam a ser transmitidas, em relação
com o que estava ouvindo. Ela pensa que o melhor é se isolar e se fechar
em casa. Mas ao mesmo tempo, não consegue deixar a sacada onde tinha
ouvido os ruídos inquietantes.
Durante as semanas que se seguiram, ela se deu conta de que voltava e
voltava à sacada, coisa que não tinha o costume de fazer, e se
questiona. Acha que o determinante para esse comportamento é uma
angústia, como se pudesse se assegurar, indo ali, que nada estava
acontecendo, e que não corria risco de que alguma agressão pudesse vir.
Mas logo pensa algo diferente, de que não era bem isso, ou de que não
era só isso, ou principalmente isso. Chemama sublinha: de fato estava, e
mesmo nas palavras dela, suspensa ao terror que tinha conhecido e, em
sua ação de voltar, talvez procurasse reencontrar o traumatismo daquele
momento, quase como que um ponto inaugural. Se tratava de uma angústia e
do medo de que algo acontecesse (o que era bem comum das pessoas
sentirem naqueles dias e semanas), ou mais: se ali não poderíamos pensar
em um estado de fascinação? A natureza disso tudo ficava ainda opaca,
diz Chemama. Mas nos indica essa direção, de que o estado de diferentes
formas de guerra que podemos viver em nosso tempo (também sofremos os
efeitos das guerras que se travam em nosso contexto) ressaltam de forma
contundente aquilo que encontramos de paradoxal no que comanda nossos
atos e que nos leva, muitas vezes, à nossa perda. Além do princípio do
prazer, que Freud escreve junto com a inquietante estranheza. Não
coincidência.
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(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro
da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em
Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).Fonte: https://www.sul21.com.br/colunas/coluna-appoa/2020/01/alem-do-principio-do-prazer-o-fascinio/
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