Ignácio de Loyola Brandão*
No final de ano acaba sendo um grupo de umas 20 pessoas, há o cerimonial do café da manhã
Primeiros dia pós Natal e Ano Novo. Ruas vazias, silenciosas. O que é estranho nesta cidade.
Após
estranhos dias em que tudo o que se viu foi gente correndo para
shoppings, mercados, armazéns, mercearias, fica um vácuo, um buraco no
ozônio de nossos cérebros. Na infância, em manhãs como esta, eu garoto
remediado corria pelas ruas de Araraquara, batendo nas portas e
desejando Boas Festas. Ganhava nozes, figos secos, pedaços de bolo (nem
se sabia o que era panetone), uma moeda ou uma raspança: “Ora essa,
garoto sem vergonha, não venha nos acordar de manhã, suma daqui!”.
Amanhã
seguimos para o interior de Minas Gerais. Seis horas de carro e mal
passamos de um estado para outro. Lugar isolado, difícil com o Wi-Fi, um
temperamental. O que é maldição para muitos, ninguém se desconecta
mais, ficam desesperados, ansioso, insones, querem saber o que acontece
no mundo. E interessa? Por exemplo, só de saber o que acontece em
Brasília é uma angústia, nos leva a ingerir litros de ansiolíticos.
fazenda Cangalha (geringonça que tropeiros colocavam no lombo dos
animais para transportar mercadorias) é de um casal, Ivo e Sueli, amigos
novos, de uns dez anos para cá, aos quais nos afeiçoamos. Nosso grupo
ali terá gente de São Paulo e do interior de São Paulo e de Minas,
paisagistas, arquitetos, professores, lavradores, músicos, escritores,
agricultores, produtores de mel (é o Harvey, um americano que veio para
cá, adorou, ficou) e especialistas em azeite de oliva.
No final
de ano acaba sendo um grupo de umas 20 pessoas, há o cerimonial do café
da manhã, todos juntos, cerca de oito e meia ou nove. Há o almoço e tudo
ali é local. O leite é das vacas, a manteiga é batida ali, os queijos a
Renatinha faz, da ricota ao fresco, o leite vira também, doce, pudim,
ambrosia, etc, os sucos vêm do pomar (frutas, amoras, ameixas, maçãs,
laranjas, mexericas, tangerinas, goiabas, mamão, uvaias, sem tóxicos) ou
da horta (couves e verduras, coisas da moda, dizem que ajudam a
emagrecer).
O café é passado no coador, como antigamente.
Compra-se na cidadezinha vizinha, Aiuruoca, pequena, mas berço da Isis
Valverde, estrela da Globo, uma sensação. O interior surpreende. Agora,
nosso amigo Ivo tornou-se cidadão honorário da cidade, afinal foi dos
primeiros produtores de azeite de oliva local.
No final da tarde,
toma-se gim tônica com zimbro, voltou à moda. Na minha juventude nos
reuníamos no Bar do Pedro, no hotel Municipal em Araraquara tomando gim
tônica. Uma vez, aos 20 anos, tomei um porre, quase entrei em coma
alcoólico, uma barra, fiquei mal três dias, levei mais de 40 anos para
voltar a tomar gim. Sem falar no castigo paterno.
As comidas são
diversas. Cada um leva alguma coisa pronta, carne, carneiro, salmão,
peixe, vitela, massa, molhos (ou ali se fazem molhos), etc. Quem cozinha
vai para a cozinha, exibe-se.
Nada sei fazer, é um defeito
grande. Passeamos, descansamos, lemos, ficamos na varanda, caminhamos
(eu cada vez menos), tomamos sol.
O tempo escoa em outro ritmo. A
paisagem é ensurdecedora de tanto silêncio. De tão linda, surpreendo-me
levantando os olhos do livro e fico absorto, contemplando montanhas
altíssimas, verdes, ou pedras gigantescas que nos fazem anões.
Leio Pontos de Fuga, segundo volume da trilogia de Milton Hatoum, sempre impecável. E também o Pequeno Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro. Deleito-me com A Elite na Cadeia, de Walter Nunes, que mostra o dia a dia dos corruptos na prisão de Curitiba.
“Momentos.
Na vida o que valem são os momentos”, dizia o falecido Giovanni Bruno,
grande personagem entre os chefs de cozinha paulistanos. O amanhã
existirá? Aqui em São Paulo todos se lembram do jovem de 18 anos que
saiu da festa de um amigo na rua Bela Cintra e ao chegar ao térreo, a
marquise do prédio desabou sobre sua cabeça, matando-o. Amanhã? O amanhã
pode ser o minuto seguinte a este. Ou o instante.
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* Contista, romancista, jornalista brasileiro e membro da Academia
Brasileira de Letras. Possui uma uma vasta produção literária, tendo
sido traduzido para diversas línguas. Recebeu, entre alguns prêmios, o
Jabuti em 2008.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-amanha-pode-ser-o-instante-seguinte,70003142113
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