sábado, 8 de setembro de 2018

A CREMAÇÃO DA CULTURA

José de Souza Martins*
 
O incêndio devastador do Museu Nacional não é um caso isolado. Trágico porque o museu é referência entre as instituições científicas brasileiras, seja porque fosse memória de vários campos do conhecimento, seja porque abrigava diferentes cursos de pós-graduação da UFRJ. Dentre eles, o de antropologia, um dos mais respeitados da América Latina. Como é costume, não será difícil encontrar um bode expiatório para a tragédia em nossa concepção inquisitorial da culpa. Põe-se uma verbinha aqui, corta-se uma cabeça acolá e tudo se acalma.

É próprio de nossas tradições, para enfrentar problemas, procurar culpados em vez de procurar causas. Devemos nos perguntar primeiro por que aqui instituições culturais, como os museus, têm sido atingidas por grandes incêndios, se não pela desimportância que a eles se atribui? Para que servem instituições científicas num país em que a média de nota do ensino médio é de apenas 3,8, o que reprovaria qualquer um em qualquer lugar? No incêndio tem mais do que fogo.

Vários dos incêndios recentes em nossas instituições culturais ocorreram em prédios muito antigos, não raro, centenários. Só em São Paulo, vários. Foi o caso do incêndio no arquivo do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em 2005; do museu e centro cultural do Liceu de Artes e Ofícios, em 2014; do Museu da Língua Portuguesa, em 2015, que teve um morto. O incêndio do moderno auditório do Memorial da América Latina, em 2013, que deixou vários bombeiros feridos e destruiu uma tapeçaria de Tomie Ohtake, de 800 m2, evidencia que não só edificações antigas estão sujeitas a grave risco, mas que há também algo bem contemporâneo nas causas desses desastres.

Em 2005, um incêndio de seis horas no prédio tombado do arquivo do Juqueri, instalado em uma obra de Ramos de Azevedo, destruiu muitas centenas de prontuários essenciais para o estudo da história das doenças mentais entre nós e das técnicas de seu tratamento. Destruiu, também a biblioteca da instituição, a mais completa do país em livros e revistas científicas sobre psiquiatria, cobrindo a literatura especializada da metade do século XIX à metade do século XX. E não faltou a queima de uma carta de Sigmund Freud ao diretor do hospital, o médico Osório César, artista plástico e estudioso da relação entre arte e loucura, um pioneiro do movimento da arteterapia entre nós.

Em 2014, foi a vez do Liceu de Artes e Ofícios, no bairro da Luz. A escola fundada no século XIX pelo engenheiro e arquiteto Ramos de Azevedo dedica-se até hoje à formação profissional de jovens artesãos e artistas. Santos Dumont foi frequentador do Liceu, e grandes nomes de nossas artes plásticas e de nossa escultura foram alunos daquela escola pública. O incêndio atingiu o centro cultural e o museu de protótipos e réplicas de obras de grandes artistas, do acervo de instrumentos pedagógicos do Liceu. Das 28 réplicas, apenas oito foram recuperadas.

Em 2015, um incêndio devastou boa parte da centenária estação da Luz, da antiga S. Paulo Railway, a primeira ferrovia paulista. O fogo consumiu o Museu da Língua Portuguesa, nela instalado. Teve menor alcance porque o local era constituído de materiais reprodutíveis, dos quais existem as matrizes. O velho monumento ferroviário é que foi posto em perigo. Pela segunda vez, pois a estação já pegara fogo em 1946, tudo indica que um incêndio criminoso para destruir os arquivos da ferrovia. Visitei em Glasgow, na Escócia, o museu de arte construído pela mesma fundição que fez as peças de ferro da construção da estação e de outra similar em Sydney, na Austrália. Foi quando fiquei sabendo que o herdeiro da fábrica quis doar ao museu os arquivos com plantas e desenhos das obras ali feitas, que o museu não aceitou. Ele, então, queimou tudo, inclusive os desenhos da estação da Luz.

A causa principal desses incêndios aqui no Brasil é o nosso subdesenvolvimento. Somos capazes de fazer grandes obras, mas não somos capazes de mantê-las. Temos muita iniciativa e pouca acabativa. Os políticos desse subdesenvolvimento sabem fazer inaugurações, mas não sabem prover meios e mecanismos de manutenção das obras da cultura. Raramente distinguem entre um Museu Nacional e um Museu da Língua Portuguesa, língua que mal leem e mal falam, para parafrasear Monteiro Lobato. Como se viu na resposta aos jornalistas do secretário de Governo sobre o incêndio: isso é choro de viúva.

Os edifícios alcançados pelos incêndios são quase sempre antigos. Vitimados por uma crônica falta de políticas de gestão na área da cultura, de uma rotina própria para preservação permanente dos acervos e das instalações. Coisa de um país em que o serviço público se arrasta pelo pedregoso caminho das improvisações.
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*José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto).

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