O ator James Dean foi o protagonista da adaptação teatral de 'O Imoralista',
de André Gide, na Broadway, em 1954
Foto: Royal Theatre
Romance explora relações entre juventude e puritanismo, saúde e saber, corpo doentio e saudável
Silviano Santiago*,
O Estado de S.Paulo
Friedrich Nietzsche, na filosofia alemã, e André Gide, na literatura
francesa, são os dois primeiros autores a se autodenominar imoralistas.
No livro O Crepúsculo dos Ídolos, em entrada intitulada Fala o Imoralista,
Nietzsche afirma: “A história dos desejos tem sido até agora a parte
vergonhosa do homem”. Ao se autoproclamar publicamente, a identidade
rebelde se propõe ao convencimento do outro por atitude imperiosa e
transgressora em face dos valores morais dominantes em sociedades de
tradição greco-romana e cristã. Visa também à inevitabilidade de nova e
próxima batalha contra os princípios que reafirmam o controle da conduta
humana pela norma coletiva. O individualismo rebelde contraria a
polêmica política de rebanho. Enxerga-a como passageira ou definitiva
forma de cansaço da regra democrática. Daí o recurso ao nome próprio
como indispensável motor revolucionário.
Lembre-se da advertência do marxista Theodor Adorno em Minima Moralia:
“Ao longo desses 150 anos que passaram desde o aparecimento do
pensamento hegeliano, é ao indivíduo que coube uma boa parte do
potencial de protesto”.
A dupla abertura oferecida ao leitor brasileiro pelas reflexões de Nietzsche em O Crespúsculo dos Ídolos (1889), e de Gide na prosa de O Imoralista
(1902), agora em nova edição em português, desregulamenta o modelo de
comportamento moral do homem, conscrito e restrito pelas virtudes
greco-latinas e cristãs. Em contrapartida ao infindável domínio da
estabilidade apolínea nas sociedades pequeno-burguesas, o pensamento
libertário de Nietzsche e a prosa confessional de Gide estimulam o
retorno aos valores dionisíacos, orgíacos por natureza.
À
serenidade apolínea do burguês se contrapõe o movimento dionisíaco do
artista, que anuncia a liberdade que desautoriza os valores normativos
na invenção do novo homem. Por ser singular e com vistas ao coletivo, a
instabilidade orgíaca visa a traduzir o pedido de revanche do páthos
(qualidade do que é nitidamente emocional e transiente) ao vitorioso
êthos (autocontrole racional sobre paixões, inclinações e afetos
desordenados). Emprestamos novo conteúdo à leitura que o historiador Aby
Warburg faz da originalidade criativa da arte renascentista na sua
relação ao despotismo do modelo clássico greco-latino que a inspira.
Para retomar Nietzsche, leitor de Schopenhauer, acrescento que, na imoralidade de O Imoralista
de André Gide, está em jogo a busca da beleza humana que reside na
negação da função reprodutora da espécie para acentuar o saber que ata a
especulação estética ao prazer sensual que a obra de arte oferece ao
leitor. É como se de repente o romancista, para apreciar voluptuosamente
os belíssimos trabalhos que representam o nu frontal, retirasse da
estatuária as folhas de parreira e da pintura a pudicas mãos de Vênus.
Estatelam-se as ditas partes vergonhosas do corpo humano. Ainda com
Nietzsche, continuo a leitura do imoralismo gidiano: “a cultura e a
literatura mais elevadas da França clássica floresceram em sua
totalidade sobre o solo do interesse sexual”.
A Origem do Mundo
− o “imoral” quadro de Courbet de 1886 – é na verdade um close-up que
tem o mesmo lugar e a mesma data de nascimento dos imoralistas em
análise. Diante do nu frontal masculino ou feminino, os historiadores
anglo-saxões da arte, informados direta ou indiretamente pelo
puritanismo protestante, apenas trocam folhas de parreira e mãos
venusianas pela proposta de atitude pudica por parte do espectador. É
preciso que guarde “distância estética” da Vênus de Botticelli. No
momento glorioso da apreciação, abre-se espaço neutro (?) entre a nudez
do corpo exposto e a sensualidade do espectador.
Para repreender o
puritanismo que o formata na província francesa e ainda o puritanismo
do seu leitor é que André Gide, ao final do evangelho homoerótico que é o
livro Os Frutos da Terra (1897), aconselha: “Quando me tiveres
lido, joga fora este livro – e sai. Gostaria que te tivesse dado o
desejo de sair – sair do que quer que seja e de onde que esteja, de tua
cidade, de tua família, de teu quarto, de teu pensamento. Não leves meu
livro contigo”.
Ao se debater contra a “formação” que castra, o
imoralismo gidiano vivifica a força rebelde do nome próprio singular.
Põe em questão o sujeito, “o quem?” − e não “o quê?”. Tonifica as
necessidades plurais do corpo masculino, seus sentimentos e afetos, com
vistas à “construção” do que seja o humano, demasiadamente humano.
Talvez não seja por outro motivo que o romancista Julio Cortázar, autor
do conto As Babas do Diabo, inspirador do Blow Up de Antonioni, seja o
tradutor de O Imoralista ao castelhano. Todos esses artistas estão
comprometidos com a escrita da experiência de vida em primeira pessoa
(no caso do conto de Cortázar, os olhos do artista são atualizados pelo
recurso à imagem dada pela câmara fotográfica). Daí advém a opção de
Nietzsche e de Gide por escrita singular. Em plena vigência da dialética
hegeliana, o estilo de Nietzsche é epigramático e profético. Em repúdio
à estética realista-naturalista de Émile Zola, o de Gide é confessional
e moralista.
Não é outro o motivo para que, nos anos 1960, se
cunhe a expressão híbrida “autoficção”. Ela configura um florescente
gênero de prosa literária que enxerta algo e muito da autobiografia na
prosa literária de tronco francês. Nos dias de hoje, O Imoralista é autoficção. A experiência de vida do autor ampara a urgência de o narrador em primeira pessoa expressar a verdade poética.
Que o leitor de André Gide, que se apoiar unicamente no argumento
estético, se previna contra ciladas. A trama de O Imoralista repousa nas
misteriosas relações entre juventude e puritanismo, saber e qualidade
de vida, saúde e saber. Entre corpo doentio e corpo saudável. Entre
corpo e alegria. Como no caso do companheiro Nietzsche, a escrita de
Gide, e também a leitura de seus livros, tem finalidade terapêutica.
Escreve Nietzsche em Humano, Demasiadamente Humano: “Um passo
adiante na convalescença: e o espírito livre se aproxima novamente à
vida, lentamente, sem dúvida, e relutante, seu tanto desconfiado”.
Numa compreensão atual da história das ideias no Ocidente, Nietzsche e
Gide são os principais mentores da notável contribuição de Michel
Foucault ao pensamento ocidental. Depois da série de trabalhos sobre
“saber e poder”, dedica-se ele ao estudo dos “modos de subjetivação”.
Leiam-se as magníficas aulas que nos anos de 1980/1 oferece no Collège
de France, reunidas sob o título de Subjetividade e Verdade. Foucault
retoma dos gregos o tópico negligenciado das “técnicas de si”. Elas
resumem os procedimentos presumidos ou prescritos aos indivíduos para
fixar a identidade, para mantê-la ou transformá-la graças a relações de
domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si.
Ao
recolocar o imperativo socrático sob a perspectiva dos tempos de moral
vitoriana, Foucault deixa claro que a autoproclamação do nome próprio
rebelde – Nietzsche ou Gide – como portador da verdade não é crítica
estreita à ideologia de rebanho nem elogio do tipo humano excepcional.
Somos todos democráticos e excepcionais. Basta que cada um, com a
intenção de reformatar os impulsos que herda e conduzem ao sofrimento,
assuma o domínio de si sobre si mesmo na busca da identidade. A história
da sexualidade de Foucault começa pela “vontade de saber”. Leia-se O Imoralista ao mesmo tempo que Os Frutos da Terra.
A prosa literária é referendada pelo evangelho da cura, que instiga o
leitor já bem instruído a jogar fora o livro e, ao ar livre da
liberdade, ganhar o domínio de si sobre si mesmo.
O vocabulário da saúde está presente em O Crepúsculo dos Ídolos.
Cite-se: “Este homem jovem empalidece e murcha precocemente. Seus
amigos dizem: tal ou tal doença é a causa. Eu digo: o fato de ele ter
adoecido, o fato de ele não ter se oposto à doença, foi justamente o
efeito de uma vida empobrecida, de uma extenuação hereditária”. O
Imoralista é escrito com o mesmo vocabulário da saúde e em confronto
aberto com a vida empobrecida e a extenuação hereditária.
Recém-casado com Marceline, o jovem historiador Michel parte com a
esposa em viagem de núpcias ao norte da África. Marceline se casa em
obediência ao pedido do pai. O marido é historiador e vem de meio
puritano, típico da pequena-burguesia provinciana. O desenlace é
evidente no enlace. Em viagem pela Tunísia, Michel acaba por ter sua
primeira experiência homoerótica com garotos árabes. Rompe
definitivamente com o puritanismo que lhe fora inculcado.
De
natureza frágil, Michel é tomado por violentas expectorações de sangue.
Tuberculoso, oscila entre vida e morte. Descobre que tem negligenciado o
corpo em favor dos estudos. Entrega-se ao processo de negação da vida
espiritual em proveito da vida ao ar livre e em contato com a natureza
selvagem. Obriga-se a se alimentar. Ao recobrar a saúde, descobre a
sensualidade reprimida. A sensibilidade à flor da pele do convalescente é
explosiva. Vive “perigosamente”, não esconde o narrador.
O
casal está de volta à França. Passa uma temporada em La Morinière,
chácara na região normanda. A aridez salutar da África tem contraponto
na fertilidade do campo francês. Surge uma inversão no protagonismo. A
saudável Marceline adoece. Sofre embolia pulmonar. Marido convalescente e
esposa enferma se dão as mãos na necessidade de repouso. Distantes até
então do sexo, os dois corpos se preparam para o reencontro imprevisível
no amor. O enlace afetivo dos corpos não se passa no plano elevado do
espírito. Não se sublima. Tampouco se dá na união de corpos enamorados,
como experiência sexual efetiva.
O enlace é experiência física
solitária, sensível e íntima. Ao se eleger dois corações como lugar do
desempenho, esclarece-se que o enlace dos corpos é afeto. O sentimento
humano é puro e profundo. Leio um trecho em que se explicita a força da
convalescença que aproxima marido e esposa e os aconchega. Escreve
Michel: “aquela espécie de simpatia física que, por ocasião da embolia,
me levara a sentir em mim as terríveis palpitações do coração de
Marceline me cansara como se eu mesmo estivesse enfermo”. Ao renascer na
chácara normanda, a angústia do marido se faz acompanhar do sofrimento
da esposa. Michel e Marceline ganham o afeto desde que brota a “simpatia
física”.
A simpatia física sentida por Michel lhe entra pelos
olhos para logo lhe ganhar a corrente sanguínea e encharcar o corpo.
Desliza pelas veias até o coração e, lá, se expande e se confunde com o
corpo de Marceline. Ao ganhar o coração dela se manifesta por
apalpadelas (‘attouchements’). Por bolinagem de coração em coração. O
precário relacionamento sentimental se transforma em sentimento
humanamente profundo. A simpatia física ganha sentido e soberania no
relacionamento libidinoso do marido já sadio com a esposa convalescente.
Páginas adiante, o romance volta a trabalhar a simpatia física. O
contexto é inesperado e transgressor. Recuperada, Marceline transmite
tranquilidade. É devolvida à vida social com os familiares e as velhas
amigas. Michel sai pela chácara e se envolve com vários grupos de
trabalhadores. A “má curiosidade” rouba-lhe o tempo ou o enriquece.
Depende. A existência de cada um dos camponeses lhe parece misteriosa. A
todos e a qualquer Michel empresta segredo que ele, a todo custo,
deseja conhecer. Vagabundeia, faz companhia, espia. Nunca interroga.
Escuta as piadas alheias e supervisiona menos o trabalho e mais os
prazeres.
Quer vê-los nos momentos de brincadeira. Sabe que sente
prazer, mas ainda não tem acesso ao motivo do desassossego feliz. O
contínuo deslumbramento lhe vem da mera percepção da cambada de
trabalhadores do campo? Tem dificuldade em exprimir a espécie de alegria
que experimenta quando está “entre” eles e “com” eles. Imediatamente se
autocorrige: a alegria que sente profundamente “através” deles.
Uma cena inesperada torna Michel consciente da própria sensualidade. A
narrativa retoma a descrição do afeto que o marido nutre pela esposa.
Michel escreve que está a viver − copio − “uma espécie de simpatia,
semelhante à que fazia palpitar o meu coração junto com o de Marceline”.
Trata-se, continua ele, de eco de cada sensação alheia, algo que não é
vago, mas agudo e preciso. O relato se prepara para expor a perturbadora
cena fatal. O protagonista remodela a vida por ele vivida em falso até
então.
Michel isola o ceifeiro do grupo de camponeses e o repara.
O jovem trabalha com a foice. Michel sente em seus braços a curva do
corpo do ceifeiro. Está cansado do cansaço alheio. O gole de cidra que o
ceifeiro bebe sacia a sede de Michel. Sente o líquido deslizar pela
garganta. Um dia, ao amolar a foice, um dos camponeses corta
profundamente o polegar. Michel sente sua dor, até a medula. Em O
Imoralista, a “simpatia física” é o modo de o corpo se aconchegar no
corpo alheio que lhe seduz pelo conhecimento e pelo apuro gradativo da
própria sensibilidade curiosa, solitária, carente e afetuosa.
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* É um ensaísta, poeta, professor contista e romancista brasileiro.
Fonte: https://www.estadao.com.br/noticias/geral,classico-de-andre-gide-o-imoralista-ganha-nova-edicao-no-brasil,70002501148
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