Maílson da Nóbrega*
ENVIESADA - A escultura que simboliza a
Justiça em frente ao STF, em Brasília: a Constituição elevou a renda
dos juízes (
Evaristo Sa/AFP)
O garantismo e o resgate da dívida social moldaram a Constituição. No entanto, sem recursos e sem profundas reformas, um futuro sombrio nos espera
O ambiente da época da Constituição de 1988
não era o melhor para forjar as bases do nosso futuro. Havia séria crise
econômica. Pouquíssimos na classe política se preocupavam com a
situação das finanças públicas (ainda hoje é assim). A sociedade
esperava que a volta da democracia nos fizesse um povo feliz e próspero.
Tancredo Neves prometera uma nova Constituição, mas dificilmente
levaria a ideia adiante. Percebia os riscos. Só que José Sarney, o vice
que assumiu com a morte do presidente eleito, não possuía força política
para abandonar a promessa.
Para o jurista Ney Prado, a inspiração brasileira veio de
experiências constitucionais de Espanha, Itália, França e Estados
Unidos, mas adotou-se o modelo português, cuja fonte intelectual tinha
sido a obra Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, do
marxista José Joaquim Gomes Canotilho. A Constituição portuguesa teve
revisões quinquenais. A proposta de transição para o socialismo deu
lugar à democracia econômica, e não à primazia do proletariado. A nossa
foi revista uma vez, mantendo graves problemas. Na Espanha, uma comissão
parlamentar elaborou o texto e negociou temas espinhosos latentes na
ditadura franquista. A Constituição, admirável obra política, foi
acolhida pelo Parlamento, que não pôde emendá-la. Depois, foi aprovada
em referendo popular. Aqui, cada um dos 559 constituintes podia fazer
propostas em comissões temáticas. Uma comissão de sistematização
elaboraria o texto final. Saiu um conjunto incoerente que abrigou
utopias, intervencionismo, patrimonialismo, paternalismo e
corporativismo. O capitalismo foi mercadoria rara nesse balaio de
desejos.
Duas ideias predominaram: o garantismo e o resgate da dívida social.
Pela primeira, haveria o máximo de direitos, para que não fossem
novamente violados por um regime autoritário, como se este, caso
surgisse, não pudesse revogá-los. Isso levou à invasão de áreas típicas
da legislação ordinária, sujeitando a modernização a emendas
constitucionais, mais difíceis de aprovar. A promessa de resgatar a
dívida social era o contraponto à decisão dos militares de pagar a
dívida externa “com a fome do povo”.
Da elaboração, saiu um conjunto incoerente que abrigou utopias, intervencionismo, patrimonialismo,
paternalismo e corporativismo
Com 250 artigos, mais os setenta (hoje 114) do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, a Constituição só perde em extensão para a
da Índia e a da Nigéria. Já recebeu 99 emendas. A Constituição dos
Estados Unidos, com 231 anos e apenas sete artigos, tem 27 emendas. A
primeira alteração, a dos direitos individuais, tem dez artigos, que se
contam como dez emendas. Pelo nosso critério, foram dezessete emendas.
Ignorou-se o princípio econômico da escassez. Sem medir
consequências, criou-se um Estado de bem-estar social de país
desenvolvido, mas incompatível com a nossa realidade. No dizer do
constituinte Roberto Campos, “a Constituição promete-nos uma seguridade
social sueca com recursos moçambicanos”. Em 2016, o gasto social — mais
da metade com aposentadorias e pensões — nas três esferas de governo
atingiu 25,7% do PIB, mais do que na Alemanha (25,3%), na Noruega
(25,1%) e no Reino Unido (21,5%). Para financiá-lo, elevou-se fortemente
a carga tributária, que passou de 22% do PIB, em 1988, para 32%, em
2017, nível de país desenvolvido. O gasto primário da União (exclui
encargos financeiros) passou de 12,6% do PIB, em 1986, para 19,5% do
PIB, em 2017. As despesas obrigatórias com pessoal, previdência, saúde e
educação somam mais de 90% do gasto primário da União, penalizando o
investimento e outras áreas relevantes. Esvai-se a cada dia o espaço
para a gestão fiscal.
A Constituinte foi o paraíso das corporações. Uma das mais poderosas,
a do Judiciário, conseguiu indexar a remuneração de juízes federais e
estaduais a 95% do subsídio mensal de ministro do Supremo Tribunal
Federal. Os estados menos desenvolvidos pagam a seus magistrados o mesmo
que o estado mais rico, dispondo de arrecadação bem menor. As demais
carreiras pressionam por equiparações. O custo das aposentadorias se
agiganta. As despesas com pessoal ativo e aposentado estão na raiz das
falências estaduais. Para o advogado Joaquim Falcão, os servidores
públicos têm dezesseis vezes mais chances de recorrer ao STF do que os
trabalhadores do setor privado, que estão protegidos por menos artigos,
incisos e parágrafos.
Aposentadorias generosas de pouco menos de 1 milhão dos servidores
federais causaram um déficit de 86 bilhões de reais em 2017. Os 34,5
milhões de beneficiários do INSS responderam por um déficit de 182
bilhões de reais. Entre 2001 e 2015, o déficit acumulado do regime
previdenciário dos servidores atingiu 1,3 trilhão de reais. O economista
José Márcio Camargo lembrou que eles estão entre os 20% mais ricos da
população. Para ele, “o sistema de aposentadoria do setor público
brasileiro é, provavelmente, o maior programa de transferência de renda
de pobre para rico no mundo”.
A União transferiu expressiva parcela de recursos aos estados e
municípios, mais tarde ampliada por emendas constitucionais. Em 1987, o
governo federal transferia 32% do imposto de renda e 32% do IPI a
governos subnacionais (20% em 1975). Agora, são 49% e 59%,
respectivamente. Se recorresse aos dois tributos para cobrir a expansão
de gastos sociais, o governo federal teria de cobrar o dobro, pois
metade deveria ser repassada aos entes subnacionais. Por isso, optou por
contribuições, que lhe pertencem integralmente. O ICMS incorporou os
tributos federais únicos sobre combustíveis, minerais e transportes. Os
estados passaram a legislar sobre o ICMS, que agora pode ser alterado
por 27 jurisdições. A harmonia das normas, essencial em um tributo sobre
o valor agregado, desandou. Virou bagunça. O ICMS ficou insanamente
mais complexo e instável. As regras mudam, em média, setenta vezes por
semana. Agregando-se as contribuições federais incidentes em cascata,
veio o caos. As empresas são habitualmente multadas não por deliberada
sonegação, mas por ser difícil acompanhar e entender normas tão mutantes
e irracionais. Subiu muito o custo para a defesa de autuações fiscais.
Empresas exportadoras não recebem créditos do ICMS a que têm direito
pela legislação. O sistema tributário transformou-se no principal
entrave ao crescimento da economia e à competitividade dos produtos
brasileiros.
Constitucionalizou-se quase tudo, dos tipos de polícia à residência dos juízes e aos monopólios estatais de telecomunicações, petróleo, gás e energia. Passou-se a depender de emendas constitucionais para privatizar estatais e permitir a participação de capital privado nessas áreas. Medidas antes adotadas por lei ordinária demandaram penosas negociações políticas.
O principal aspecto negativo: o surgimento de um Estado
mais balofo do que em qualquer outro país de renda per capita semelhante
à do Brasil
Ao longo de trinta anos, a Constituição tornou-se fonte de distorções
na economia. Inibiu o crescimento da produtividade, que é o principal
motor do desenvolvimento. No seu texto, a palavra produtividade aparece
apenas uma vez; usuário e eficiência, duas vezes; garantia, 44 vezes;
direito, 76 vezes; dever, quatro vezes. Xenófoba, a Constituição criou
restrições ao capital externo. Para Roberto Campos, isso “discrimina o
investimento estrangeiro, marginalizando o Brasil na atração de
capitais. Na Constituição de 1988, a lógica econômica entrou de férias”.
A ideia de promover profundas transformações, sem considerar seus
efeitos econômicos, dominou os trabalhos. Além da elevação de gastos
sociais, concedeu-se anistia de dívidas bancárias a pequenos produtores,
uma violação explícita de contratos. Fixou-se a taxa de juros real
(sic) em 12% ao ano. Nenhuma Constituição no mundo oficializa calote ou
tabela os juros. Pouco se falou em empresa em sentido geral. Para
Gustavo Franco, “há muita atenção dedicada à empresa estatal e destaque
para o ‘tratamento favorecido’ à pequena empresa”. O incentivo,
prossegue ele, “passa a ser, curiosamente, para as empresas permanecerem
pequenas”.
Na área salarial, foram mantidas ou criadas regras inexistentes em
países bem-sucedidos. Os salários nominais não podem ser reduzidos, o
que dificulta a recuperação da economia e do emprego em casos de
recessão. A inflação tende a ser maior do que em outras partes do mundo.
São estáveis no emprego todos os servidores públicos, cuja remuneração é
hoje 67% superior à do setor privado em funções semelhantes. O salário
mínimo, indexado à inflação passada, virou piso das aposentadorias do
INSS. Nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma, seu valor
cresceu 113,4% acima da inflação. Vem daí o agigantamento do déficit do
INSS, pois os benefícios de um salário mínimo representam três quartos
da despesa previdenciária.
Os funcionários do setor público regidos pela legislação trabalhista
viraram, como assinala o economista Raul Velloso, “funcionários públicos
com todos os direitos e vantagens dessa categoria, especialmente
estabilidade e aposentadoria integral pelo último salário”. Só na União
foram cerca de 300 000 pessoas, acarretando aumentos de salários e novas
carreiras mais bem remuneradas. Até hoje, diz Velloso, “os estados
penam para obter da União uma ‘compensação previdenciária’, prevista em
lei, para enfrentar os gastos adicionais na sua esfera”.
A crise fiscal inibe ganhos de produtividade e limita nosso potencial
de crescimento. A principal origem dessa triste realidade são a
expansão de gastos e as normas insensatas da Constituição, que pioraram
posteriormente. No governo Dilma, para quem “gasto é vida”, a situação
se agravou por causa de maior expansão fiscal, incluindo a transferência
de 500 bilhões de reais do Tesouro para o BNDES, boa parte para
beneficiar grandes empresas e forjar “campeões nacionais”.
Deve-se reconhecer, todavia, que houve avanços sociais e políticos.
Delfim Netto, outro constituinte, diz que a Constituição é “o produto de
um momento de revolta da sociedade: uma reação às restrições que lhe
foram impostas nas duas décadas do regime autoritário”. Para ele, a
Constituição “incorporou o ideal de uma sociedade civilizada”, baseado
em “um sistema que combina amplas liberdades civis com a mitigação da
desigualdade de qualquer natureza”. Entusiasta da Carta, o ex-ministro
do STF Ayres Britto considera que em linhas gerais ela “é de muito boa
qualidade. Ela é cheia de princípios intrinsecamente meritórios”. Ele
lembra os princípios da dignidade da pessoa humana, da soberania popular
como primeiro fundamento da República, da cidadania como segundo
fundamento e do pluralismo como quinto. “Melhor impossível para
construir uma sociedade livre, justa e solidária”, conclui. A essa
análise, pode-se aduzir a atribuição do status de poder independente ao
Ministério Público, o qual, malgrado os excessos, tem investigado crimes
de corrupção de forma competente, contribuindo para sepultar a sensação
de que ricos e poderosos jamais seriam encarcerados.
Além dos aspectos negativos aqui evidenciados, há muitos outros. O
principal foi o surgimento de um Estado mais balofo do que em qualquer
outro país de renda per capita semelhante. A isso se acrescem a piora do
ambiente de negócios, o caos tributário, a queda da produtividade e a
expansão insustentável da dívida pública, que, se não revertida, pode
jogar o país no inferno inflacionário.
Existem três formas de melhorar a Carta. A primeira seria prosseguir
com emendas constitucionais, como feito até aqui. A segunda, defendida
por renomados juristas, seria convocar uma nova Constituinte. A
terceira, proposta pelo constituinte Nelson Jobim, seria uma
“lipoaspiração”, reduzindo os 250 artigos a apenas 25 que versem sobre
“princípios”. A primeira levaria décadas, prolongando a agonia. A
segunda incluiria o risco de piora, já que as corporações são hoje mais
fortes. A terceira parece a mais adequada.
A Constituição atrasou o Brasil. Sem reformá-la rápida e profundamente nos próximos anos, um futuro sombrio certamente nos espera.
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* Maílson da Nóbrega, colunista de VEJA, foi ministro da Fazenda de 1988 a 1990
Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2018, edição nº 2602
Fonte: https://veja.abril.com.br/economia/um-atraso-para-o-pais/
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