Juremir Machado da Silva*
A felicidade para os gregos tinha nome: eudaimonia. Não se pode
filosofar sem alguma palavra em alemão e sem várias em grego. Faz parte de uma
espécie de ritual de legitimação, que é a maneira pela qual normalmente alguém
é aceito por outros já iniciados. A eudaimonia designa o sucesso ou a
prosperidade. Talvez o termo mais adequado nos tempos atuais seja êxito. O que
é ser feliz? Ter êxito. Alcançar o desejado. Cumprir a meta. Atingir o
objetivo. Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, ocupou-se da eudaimonia.
Ele foi o homem da ciência, da observação e da experiência. Inventou a biologia
e destacou-se como poucos em múltiplas disciplinas. Mesmo assim, cometeu alguns
equívocos: pensava que as mulheres possuíam menos dentes que os homens, os
quais teriam oito costelas de cada lado; achava que um objeto mais pesado
cairia mais rápido do que um mais leve; entendia que as crianças não podiam ser
felizes por inexperiência.
Aristóteles interessou-se por quase tudo. Escreveu sobre ética,
política, estética, biologia, astronomia e tudo mais. Sócrates era feio.
Platão, bonito. Aristóteles, nem uma coisa nem outra. Platão criou a sua
Academia. Aristóteles, o seu Liceu. Platão tentou influenciar reis da Sicília.
Aristóteles foi preceptor de Alexandre, que se tornaria “o grande”. Se para
Platão as ideias é que contavam, para Aristóteles o concreto era fascinante.
Ele pensava em termos práticos. O que fazer para ser bem-sucedido, ter sucesso,
alcançar a prosperidade? Para ter êxito?
A resposta de Aristóteles é de uma simplicidade assombrosa: preparar-se.
De que maneira? Buscando o caráter propício, temperando a personalidade,
domando os impulsos, aprendendo a não desejar muito nem pouco, treinando-se
para o equilíbrio, tendo como norte o meio termo, o justo meio, a ponderação.
Quem deseja demais, frustra-se ao não alcançar tudo que quer. Quem deseja de
menos, não sai do lugar. Excessos são toleráveis e “naturais” na juventude. Depois,
deve prevalecer a razão. A construção da felicidade é um trabalho permanente:
“o bem dos homens é a alma trabalhar no caminho da excelência uma vida
inteira”. A felicidade é aliada da amizade e da razão, não dos sentidos,
volúveis e insaciáveis.
Como aplicar as ideias ponderadas de Aristóteles ao nosso tempo
consumista no qual todo desejo deve ser satisfeito? O pensador peripatético
(refletia e ensinava caminhando) entendia que a felicidade é uma questão
interior, uma paz de espírito, uma harmonia que cada indivíduo pode alcançar
por autoconhecimento e lapidação. Não se pode ser feliz realmente sem levar em
consideração o outro, aqueles com quem convivemos. A felicidade tem valor em
si. Não é meio. É fim. Buscar a felicidade no prazer e na glória são bons meios
para se chegar à infelicidade. Ser feliz é estar bem consigo mesmo. Aristóteles
gozava intelectualmente. A satisfação maior para ele estava uso da mente. O que
é ser racional?
Do ponto de vista do êxito, ser racional é ser razoável. Aristóteles
alertava para os perigos e ilusões de se procurar a felicidade, por exemplo, na
política. Fica-se na dependência do povo, que é volúvel. Nada é mais importante
do que a felicidade. Pensar a eudaimonia como êxito não pode significar
que toda meta é legítima ou desejável. Ser razoável implica não se fixar
objetivos insanos, incomensuráveis, inalcançáveis, impossíveis? O êxito depende
das forças de quem o busca. Essas forças podem ser melhoradas, ampliadas,
adaptadas. Não podem, contudo, tudo obter.
Na “Ética a Nicômaco”, Aristóteles precisa: “A felicidade tem, por
conseguinte, as mesmas fronteiras que a contemplação, e os que estão na mais
plena posse desta última são os mais genuinamente felizes, não como simples
concomitante, mas em virtude da própria contemplação, pois que esta é preciosa
em si mesma. E assim, a felicidade deve ser alguma forma de contemplação”. Não
se assuste o leitor. O homem que precisa agir cotidianamente também pode ser
feliz. Aristóteles sabe que cada um precisa trabalhar e comer. Ele rejeita é o
excesso. Sustenta que a felicidade está no consumo comedido, “é suficiente que
tenhamos o necessário para isso, pois a vida do homem que age de acordo com a
virtude será feliz”.
Não cabe o espírito capitalista na filosofia de Aristóteles? Ou, ao
contrário, apenas para refrear a ansiedade capitalista é fundamental uma boa
pitada da racionalidade aristotélica? O mestre grego achava que a felicidade
não podia ser confundida com lazer e recreação. Considerava “infantil” sofrer
com o trabalho só para chegar ao prazer do divertimento. Já o contrário lhe
parecia razoável: “Mas divertir-nos a fim de poder esforçar-nos, como se
expressa Anacársis, parece certo; porque o divertimento é uma espécie de
relaxação, e necessitamos de relaxação porque não podemos trabalhar
constantemente”. Teria sido Aristóteles um moralista, no sentido hoje
pejorativo da palavra, e um produtivista, que submetia o homo ludens (o
homem que brinca) ao homo faber (o homem da produção)?
A felicidade é um mistério que nem os gregos decifraram.
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* Escritor. Jornalista. Prof. Universitário. Sociólogo.
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