José de Souza Martins*
Deus está
sendo arrastado pelo íngreme calvário das conveniências eleitorais dos
ambiciosos
No Brasil
eleitoral, o próprio Deus foi raptado e instrumentalizado. Vários candidatos e
partidos, hereticamente, converteram Deus em reles cabo eleitoral e patrono da
antipolítica do fanatismo. Está pressuposto no gesto do dedo no gatilho e na
afirmação daquilo que nega Deus, o justiçamento, a negação dos humanos direitos
de todos. Pelotão de fuzilamento não é Justiça. Esfregar a Bíblia na cara dos
outros é pedrada, não é argumento de fé.
Deus está
sendo arrastado pelo íngreme calvário das conveniências eleitorais dos
ambiciosos que se colocaram em seu lugar e lhe puseram nos ombros a pesada cruz
em que será crucificado de novo e esquecido.
Deus é
nisso "fake news" pós-moderno, um ser banal e descartável, feito para
enganar, ludibriar os simples e crédulos. Os pobres, a classe média, os
abonados e assustados. É que, na teologia popular brasileira, o verdadeiro Deus
é negação da negação. Há que admitir e vencer antes a negação reveladora,
Satanás e a função religiosa e política do mal que é própria dele.
Na
concepção popular, a usurpação levará para as profundezas os atrevidos. A beira
do caminho do nosso oportunismo político está cheia de descartes dos que
usurparam o nome de Deus para enganar o povo. A tecnologia publicitária não tem
como evitar o banimento, da memória coletiva, do nome e dos abusos daqueles que
conspurcaram o território do sagrado. Fé autoindulgente não é fé. É coisa de
outra coisa.
Na
cultura popular, Satanás é o ente antagônico e desconstrutivo cuja malignidade
e mediação nega, e nisso revela, a deidade de Deus e a importância do sagrado
na vida humana. Não importa qual a confissão religiosa em torno da qual as
pessoas se agrupam para comungar sua fé, para compartilhar o pão da esperança.
O deus eleitoral não é o Deus que sacia, mas o deus que nega a diversidade
emancipadora do homem, pune, açoita, segrega, confisca direitos e liberdades.
Não é o Deus dos que têm fome e sede de Justiça.
O crônico
oportunismo político daqui, não raro com a cumplicidade de igrejas, descobriu o
tesouro diabólico da manipulação das religiões para angariar votos para os
famintos de poder. Satanás gosta de poder e de dinheiro, especialmente quando o
poder manipulado pode ser fonte de riqueza. Opõe-se ao Deus do povo que é o
Deus dos profetas, não o deus de tronos e palácios, não o deus do poder.
Em nossa
literatura de cordel o inferno é um grande mercado, onde tudo tem preço, até a
alma e a consciência. Nessas crenças, Satã é o mercador que oferece o paraíso
do poder e da riqueza em troca da alma dos ambiciosos. É bíblico.
Na região
amazônica e no Centro-Oeste conheci sertanejos que, na soma dos diferentes
valores numéricos da meia dúzia de cédulas do dinheiro de então, chegavam ao
666, o número apocalíptico da Besta-fera, o satanás do fim dos tempos.
Especialistas que decodificaram o número enigmático concluíram que é o nome em
código do imperador Nero, a figuração política do mal, assassino da própria
mãe. O dinheiro popular não é esse da Casa da Moeda.
Estou, é
claro, me referindo às disseminadas concepções populares polarizadas entre o
bem e o mal. Tratam do pêndulo regulador de nossa consciência social, a matriz
profunda de nossas concepções e das nossas decisões, seja na vida pessoal, seja
na vida política. Os que raptaram Deus, portanto, trouxeram para a política
brasileira o maligno que o nega. O cheiro de incenso impregnado do de enxofre.
É inacreditável a facilidade abusiva com que os oportunistas da política brasileira se apossam das crenças para nos enganar, para violar a própria lei neste país em que, desde a proclamação da República e desde antes da primeira Constituição republicana, o Estado se separou da igreja e assegurou a liberdade civil das diferentes confissões religiosas. Religião, no Brasil, em vez de ser praticada e respeitada como afirmação do direito à fé e do respeito aos direitos do outro, é praticada como instrumento de coerção e de dominação. De fato, o uso antidemocrático da religião é, no Brasil, um crime, uma violação dos direitos políticos dos cidadãos.
É inacreditável a facilidade abusiva com que os oportunistas da política brasileira se apossam das crenças para nos enganar, para violar a própria lei neste país em que, desde a proclamação da República e desde antes da primeira Constituição republicana, o Estado se separou da igreja e assegurou a liberdade civil das diferentes confissões religiosas. Religião, no Brasil, em vez de ser praticada e respeitada como afirmação do direito à fé e do respeito aos direitos do outro, é praticada como instrumento de coerção e de dominação. De fato, o uso antidemocrático da religião é, no Brasil, um crime, uma violação dos direitos políticos dos cidadãos.
Aqui,
diferentes grupos populares falam e compreendem a língua do espírito que
humaniza, não a do que coisifica. Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas,
contou, certa vez, que quando começou sua militância política, ligada aos
direitos dos trabalhadores rurais, descobriu que tinha que ler a Bíblia para
poder conversar com eles. Era a chave do imaginário dos pobres da terra. Os
direitos eram bíblicos, passavam pelo respeito ao sagrado. Hoje, aqui, é a
violação dos direitos sociais e os de convicção que passa pela
instrumentalização político-partidária do sagrado. O próprio Deus está em
perigo.
-------------------------- * José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Sociologia como Aventura (Contexto).
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5866739/deus-eleitor 21/09/2018
-------------------------- * José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Sociologia como Aventura (Contexto).
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5866739/deus-eleitor 21/09/2018
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