quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Eleição democrática do terror

Frei Betto*

Ele nada en­tendia da si­tu­ação real do país. Nem de­mons­trava in­te­resse por ela, em­bora atu­asse ati­va­mente na po­lí­tica. Por isso não gos­tava de ser ques­ti­o­nado, ir­ri­tava-se di­ante das per­guntas como se fossem armas apon­tadas em sua di­reção. Não queria que a sua ig­no­rância se tor­nasse ex­plí­cita.
      
Ser es­tranho, ele tinha olhos alu­ci­nados afun­dados nas ór­bitas, lá­bios es­pre­midos, gestos cor­tantes. Todo o seu corpo era rí­gido, como se mol­dado em ar­ma­dura. Ao ficar na de­fen­siva, pa­recia uma fera acuada. Ao passar à ofen­siva, a fera exibia garras afi­adas e de suas man­dí­bulas pin­gava sangue.
     
Sua fala exa­lava ódio, rancor, pre­con­ceito. Aliás, não fa­lava, gri­tava. Não sabia sorrir, tratar al­guém com de­li­ca­deza, ter um gesto de cor­tesia ou hu­mil­dade. Evi­tava ao má­ximo os re­pór­teres. Jul­gava suas per­guntas in­va­sivas. E temia que a sua ver­da­deira face an­ti­de­mo­crá­tica trans­pa­re­cesse em suas res­postas.
     
Edu­cado em fi­leiras mi­li­tares, apren­dera apenas a dar e cum­prir or­dens, en­qua­drar quem o cer­cava e ul­trajar quem se opunha às suas opi­niões. Ja­mais acei­tava o con­tra­di­tório ou pra­ti­cava um mí­nimo de to­le­rância. Con­si­de­rava-se o se­nhor da razão.
     
A nação es­tava em fran­ga­lhos, mer­gu­lhada em crise ética, po­lí­tica e econô­mica, e o ho­ri­zonte da es­pe­rança es­pe­lhado em trevas. Pelo país afora havia mi­lhares de de­sem­pre­gados, cri­mi­na­li­dade ge­ne­ra­li­zada, cor­rupção em todas as ins­tân­cias de poder. O câmbio dis­pa­rara, a moeda na­ci­onal perdia valor, o des­con­ten­ta­mento era geral. O go­verno ca­recia de cre­di­bi­li­dade e se via cada vez mais fra­gi­li­zado. O povo cla­mava por um sal­vador da pá­tria.
     
Jo­vens de­ses­pe­ran­çados viam nele um avatar capaz de inau­gurar a idade de ouro. Era ele o cara, sur­fando na des­crença ge­ne­ra­li­zada na po­lí­tica e nos po­lí­ticos. O Exe­cu­tivo se de­bi­li­tara por cor­rupção e in­com­pe­tência, o Le­gis­la­tivo mais pa­recia um ninho de ratos, o Ju­di­ciário se par­ti­da­ri­zara sub­misso a in­te­resses es­cusos.
     
Ele se dizia cristão, e se con­si­de­rava un­gido por Deus para li­vrar o país de todos os males. Ad­vo­gava so­lu­ções mi­li­tares para pro­blemas po­lí­ticos. Mo­vido pela am­bição des­me­dida, se apre­sentou como can­di­dato à eleição de­mo­crá­tica para ocupar o mais alto posto da Re­pú­blica, em­bora os­ten­tasse a pa­tente de sim­ples ofi­cial de baixo es­calão do Exér­cito.
     
De sua ora­tória rai­vosa res­soava o dis­curso agres­sivo, bé­lico, in­sano. Ha­veria de mo­di­ficar todas as leis para im­plantar uma ordem mar­cial que poria fim a todas as ma­zelas do país. Eleito, seria ele o co­man­dante-em-chefe, e todos os ci­da­dãos pas­sa­riam a ser tra­tados como meros re­crutas obri­gados a cum­prir es­tri­ta­mente as suas or­dens.
     
Pro­metia for­ta­lecer o apa­rato po­li­cial e as Forças Ar­madas. Sua noção de jus­tiça se re­sumia a uma bala de re­vólver ou a um tiro de fuzil. Eleito, ex­cluiria da vida so­cial um enorme con­tin­gente de pes­soas con­si­de­radas por ele sub-hu­manos e in­de­se­já­veis, mu­lheres, ho­mos­se­xuais, tra­ba­lha­dores em luta por seus di­reitos e co­mu­nistas. Todos que se opu­nham às suas opi­niões eram por ele apon­tados como bodes ex­pi­a­tó­rios da des­graça na­ci­onal.
     
Seu man­dato pre­si­den­cial ha­veria de trazer a era de far­tura e pros­pe­ri­dade. Re­er­gueria a eco­nomia e as­se­gu­raria opor­tu­ni­dades de tra­balho a todos. Exal­taria os pri­vi­lé­gios do ca­pital sobre os di­reitos dos tra­ba­lha­dores. Aqueles que o se­guissem se­riam fe­lizes, e li­vres para so­brepor a ló­gica das armas ao es­pí­rito das leis. Os de­mais, ex­cluídos su­ma­ri­a­mente do con­vívio so­cial.
     
Enfim, após uma série de ma­no­bras po­lí­ticas e forte re­pressão às forças ad­ver­sá­rias, ele foi eleito chefe de Es­tado. A nação en­trou em jú­bilo. O sal­vador havia des­cido dos céus! Ou me­lhor, bro­tado das urnas.
     
Tudo isso acon­teceu há 85 anos, em 1933. Na Ale­manha al­que­brada pela der­rota na Pri­meira Grande Guerra. O nome dele era Adolf Hi­tler.
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* Frade Dominicano. Escritor.
Fonte:  http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/13469-eleicao-democratica-do-terror 19/09/2018

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