Dunker: "Depois de se
bater tanto nas instituições (...), surgiu um discurso que diz: 'Tudo isso que
está aí é uma droga, eu não faço parte disso'. Mas, então, onde é que essas
pessoas vivem?"
Às
vésperas da mais imprevisível eleição presidencial deste século, o brasileiro
tenta lidar com fraturas públicas e privadas que se tornaram parte do cotidiano
desde junho de 2013. Os políticos e seus marqueteiros, por sua vez, tentam
antecipar quais serão os "afetos mobilizadores" de quem irá às urnas.
"Embora o cansaço seja evidente, os afetos que darão a geografia dessa eleição ainda não estão claros", afirma o psicanalista Christian Dunker, de 52 anos, um caso pouco convencional de intelectual prestigiado entre seus pares (ele leciona na Universidade de São Paulo) e pop entre diletantes e estudantes, com quem se comunica por meio de vídeos no YouTube.
Ele
também é um dos coordenadores do Laboratório de Estudos em Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise da USP. Nesta entrevista ao Valor, o autor de
"Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: Uma Psicopatologia do Brasil Entre
Muros" (Boitempo, 2015) e "Reinvenção da Intimidade" (Ubu
Editora, 2017), entre outros, fala sobre traumas da polarização política, embates
na nova arena digital e sua visão do que chama de neoliberalismo.
Valor: Por que a
convivência com quem pensa diferente se tornou tão complexa? Christian Dunker: A imagem que a gente tem
de uma conversa polarizada está hiperinflacionada. Ela tem distorções, pois
confia que as pessoas estão aguerridas, falando de política dia e noite. Mas isso
não é verdade. Pelo o que eu ouço no meu observatório do divã, não é esse mais
o tom. Vejo silenciamento, recuo, luto, ressentimento e cansaço, que são afetos
mais frios. As pessoas se queixam de que a vida está pior, estão se sentindo
mais sozinhas. E, hoje, "mais sozinho" significa menos pancadaria.
Valor: Estão fugindo do
"inimigo"...
Dunker: Acontece que o inimigo é superimportante subjetivamente, ele dá sentido à sua vida. Mas, quando está representado como "morto" ou alguém realmente perigoso, de quem não se deve chegar perto - seja ele um petista, seja um coxinha ou do MBL -, isso distancia as pessoas, gerando um sofrimento muito pior. Agora é que estamos pagando a conta.
Dunker: Acontece que o inimigo é superimportante subjetivamente, ele dá sentido à sua vida. Mas, quando está representado como "morto" ou alguém realmente perigoso, de quem não se deve chegar perto - seja ele um petista, seja um coxinha ou do MBL -, isso distancia as pessoas, gerando um sofrimento muito pior. Agora é que estamos pagando a conta.
Vejo silenciamento, recuo, luto, ressentimento e cansaço,
que são afetos
mais frios. As pessoas se queixam de que a vida está pior, estão se sentindo
mais sozinhas. E, hoje, "mais sozinho" significa menos pancadaria.
Valor: O que mais pode se
esperar dessa conta?
Dunker: Eu tenho ido a escolas e
empresas e vejo que a questão do suicídio é muito preocupante. Onde estavam
esses jovens há três, quatro anos? De repente isso se tornou visível
socialmente, é um problema de outra magnitude. Vive-se muita solidão, com o
privado para lá e o privado para cá, sem intimidade. É desamor demais, algo que
mói a alma das pessoas. Daí, nessa hora, quando os partidos nos chamam para a
campanha, não há mais forças. As pessoas não conseguem ir para outra guerra.
Valor: Como ficam diante disso?
Dunker: Depois de se bater tanto
nas instituições, nos partidos, nas autoridades e no poder, surgiu um discurso
que diz: "Tudo isso que está aí é uma droga, eu não faço parte
disso". Mas, então, onde é que essas pessoas vivem? Na sua bolha mental,
numa paisagem de Rivotril artificialmente criada, com retoques de Prozac, uma
ajuda da tecnologia e uma Cannabis com álcool para dar uma modulada. Isso tem
limites.
Vive-se muita solidão, com o
privado para lá e o privado
para cá, sem intimidade. É desamor demais,
algo que
mói a alma das pessoas.
Valor: Vivemos mais um ano
com fatos que deixarão marcas profundas na vida pública (em 2018 houve o
assassinato de Marielle Franco, a prisão do ex-presidente Lula, o atentado a
Jair Bolsonaro) e, logo mais, haverá uma eleição turbulenta. Como isso nos
afeta?
Dunker: Ninguém aguenta uma vida
de revoluções. A vida não suporta o vazio, mas também não suporta períodos
extensos de anomia. Atualmente, uma das formas de criticar o neoliberalismo
passa por reconhecer que ele cria anomia para depois administrá-la. Primeiro
causa o caos - desarma, desmantela e desmonta instituições -, para em seguida
reorganizar os escombros, reaparelhar as ruínas e remontar as coisas.
Valor: Como sua crítica ao
neoliberalismo se relaciona com a psicanálise?
Dunker: A ideia da ordem e da
desordem foi intrinsecamente perturbada por uma retórica com efeitos reais,
segundo a qual a vida precisa estar em permanente renovação e numa
hipermodernidade. Isso também tem a ver com um dos processos fundamentais do
neoliberalismo, que é a intensificação das experiências. O ideal é que a vida
tenha uma estrutura de viagem e que o sujeito esteja sempre viajando. Da viagem
se extrai o máximo, com a promessa de uma vida em estágio de
extraordinariedade.
Ninguém aguenta uma vida
de revoluções. A vida não
suporta o vazio, mas também não
suporta períodos
extensos de anomia.
Valor: Qual a ligação disso
com a crise atual?
Dunker: Essa promessa de algo extraordinário cria vidas decepcionadas, nas quais, ao menos para uma minoria, os "sucessos" não são nada mais que a prescrição de um destino. Por isso está faltando algo mais, há um déficit de extraordinariedade e de confirmação de certa excepcionalidade. Isso parece ter formado um clima em que era preciso fazer alguma coisa - tanto para a direita como para a esquerda, para o bem e para o mal. Levou a um apossamento da ideia de que é possível mudar. E isso é muito importante.
Dunker: Essa promessa de algo extraordinário cria vidas decepcionadas, nas quais, ao menos para uma minoria, os "sucessos" não são nada mais que a prescrição de um destino. Por isso está faltando algo mais, há um déficit de extraordinariedade e de confirmação de certa excepcionalidade. Isso parece ter formado um clima em que era preciso fazer alguma coisa - tanto para a direita como para a esquerda, para o bem e para o mal. Levou a um apossamento da ideia de que é possível mudar. E isso é muito importante.
Valor: Qual a consequência
disso?
Dunker: O que a gente teve nesse
período de turbulência foi uma intensificação, uma saída do armário dos
demônios. É como se a mãe de cada um dissesse que todos somos incríveis e
podemos falar qualquer coisa, avacalhar, soltar os cachorros, agredir os
outros. Assim foram os processos de identificação grupal que fragmentaram o
país.
Mas eu acredito que
estamos em um momento que
deveríamos valorizar mais, que é extremamente
democrático, de ampliação da palavra.
Tem mais gente na conversa.
Valor: O que pensa sobre a
nossa dificuldade em debater nos espaços virtuais?
Dunker: Com o advento digital,
houve a inclusão no universo da palavra, no sentido de opinar sobre assuntos de
interesse público, de 40 milhões de pessoas. É como se 40 milhões de pessoas
entrassem numa festa sem formação política específica e com muita insatisfação.
Um fala X, o outro fala Y e o terceiro sai gritando. Mas eu acredito que
estamos em um momento que deveríamos valorizar mais, que é extremamente
democrático, de ampliação da palavra. Tem mais gente na conversa.
Valor: O que pode surgir agora?
Valor: O que pode surgir agora?
Dunker: As políticas são
"corpos em disputa", e cada corpo se define por uma gramática básica.
Isso tem a ver com narrativas de sofrimento, mas também com afetos hegemônicos.
Mais ou menos assim: "Vamos conversar. Mas qual será o tom da conversa?
Qual o afeto de base? Será medo, inveja, ressentimento ou desamparo?". Essa
não é uma disputa em que se vota. A gente não chega lá e decide que será o
medo.
Valor: Qual deve ser o
afeto preponderante nesta eleição?
Dunker: Os afetos sempre andam em
pares, pelo menos dois. E se alimentam, como o ódio e o medo, o ódio e a
inveja, ou medo e inveja. Nessa eleição isso ainda não se formou. Não sabemos
qual a dinâmica de afetos que darão a geografia da conversa.
Valor: Os marqueteiros são
bons em identificar os afetos mobilizadores?
Dunker: Eles são impressionantes.
Vários vêm da psicologia, com background em psicanálise, e podem virar uma
eleição com pequenas indicações. Parece mágica. Uma eleição é um processo que
exige leitura de subjetividade. Os dados são importantes, mas cada vez mais a
teoria da ação racional não está dando certo na economia, nem na psicologia
científica e na política. O que o marqueteiro faz é a leitura de subjetividade.
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Reportagem por Por Robson Viturino | Para o Valor, de São Paulo
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Reportagem por Por Robson Viturino | Para o Valor, de São Paulo
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5839215/eleicoes-das-patologias
14/09/2018
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