O
cosmo e o corpo, distantes e jungidos
Ronald
Augusto[1]
Pound cita um estudioso
da Odisseia que teria demonstrado que
a geografia do poema é correta, ou seja, que ela seria produto da experiência
de um sujeito conhecedor de navegação e que tivesse feito de fato o périplo.
Dante conjuga em sua Commedia os
saberes da ciência, da teologia e da filosofia da Idade Média. Sousândrade no
poema em muitas vozes Inferno de Wall
Street, se antecipando a Pound, incorpora o assunto econômico à aventura do
poema.
Lanço mão dessas referências
recuperadas à tradição para dizer que, desde a primeira leitura, O cochilo do céu despertou meu interesse
porque seu autor, Marcel Fernandes, à exemplo desses grandes poetas, também se
compromete com um conjunto de signos que em alguma medida não parecem típicos
do gênero. Sem prejuízo de outros temas e campos semânticos, O cochilo do céu reúne muitos poemas nos
quais são transfigurados tópicos da física e da astrofísica contemporâneas. Graças
à sua condição de poeta, Marcel Fernandes faz, obviamente, um investimento
antes de linguagem e de estruturas poéticas do que de divulgação científica
diluída em versos. Seu apetite, de cunho estético, por estes assuntos vai até o
ponto em que a precisão das informações das ciências em causa não emperrem a
economia compositiva dos poemas.
Já em outras camadas de
sentido, descubro na metáfora que dá título ao livro uma espécie de tensão ou
oximoro. Um enlace-desenlace entre o cosmo e o corpo, distantes e jungidos. Às
vezes o cosmo se metonimiza em humores e amores. O cochilo que é do corpo. O
acaso dos desejos e da morte ao arrepio da indiferença celeste. Como se a nossa
condição se plasmara a contragosto do cosmo.
A par desses traços
exorbitantes (para usar uma imagem cosmonáutica) e inovadores da poesia de
Marcel Fernandes, admiro também seu relacionamento sério com a poesia. O
sentido apurado da cadência dos versos. A força anafórica como vetor de ritmos
inumeráveis. A tradição como valor que se transfigura aqui e agora. O cochilo do céu não sucumbe à tirada
espirituosa nem à concepção da poesia como jogo autocentrado que há tempos,
entre os seus praticantes, vem resultando em mero virtuosismo metalinguístico.
O respeito e a seriedade que o poeta dispensa à arte da poesia e que nos dá a
ver em seu O cochilo do céu nada tem
daquela gravidade retórica e afetada que as convenções literárias associam ao
gênero. Seu apetite e seu amor críticos pelo poema mantêm sob controle essa
disposição quase inescapável à ironia e ao cinismo a que estamos sujeitos –
poetas e leitores – contemporaneamente.
Segue, de lambuja, um
poema de O cochilo do céu para a
fruição do leitor.
TEORIA
X
a
cosmologia pode explicar o nascimento do universo do mesmo
[jeito que explica o controle da
gravidade sobre nossos corpos
até
o ponto de colidirem
a
partir da colisão
nada
se explica
o
fenômeno ainda é desconhecido pelos cientistas
quando
dois corações colidem propagam tsunamis gravitacionais
nem
beuys previu em terremoto no palácio tamanha energia propagada
os
padrões vibratórios são frenéticos
astros
se formam a partir da agitação das partículas
oscilações
de luz ocorrem nos olhares com muita
[frequência e
o movimento dos corpos no espaço se tornam imprevisíveis
[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente em http://www.sul21.com.br/jornal/
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