Mário Corso*
Altered Carbon é um seriado de
ficção científica da Netflix. Fraco, mas com um mote ótimo: alcança-
ríamos a imortalidade pela tecnologia. A ideia é simples, arquivaríamos
todas as memórias do nosso cérebro e as descarregaríamos em outra "capa"
que é assim que são chamados os corpos. Não conseguimos parar a
decadência biológica, mas poderíamos trocar de "capas" infinitamente.
Perde-se nos séculos nossa obsessão em no- mear um duplo - a alma - que
serviria para driblar a finitude. Como constatamos a decadência física
do corpo, criamos um ser em paralelo incorruptível. Assim nasceu o
binômio corpo e alma, apropriado por quase todas as reli- giões. Está
ideia é tão arraigada, que é difícil pensar desde fora dela, e nisso se
embasa o seriado acima.
Quando o mundo digital surgiu, começamos
a usá-lo para mais uma metáfora dessa dualidade. Temos o hardware, a
máquina, que é concreta, e as memórias e o sistema operacional, que,
embora físicos, são sistemas impalpáveis e plásticos. Trocamos de
computador levando os conteúdos. Logo, por que não poderíamos guardar
nossas memórias e nosso "sistema operacional cerebral"?
O
problema é apenas um: em nós não existe essa duplicidade. O cérebro,
como ele funciona, e nossas memórias são uma coisa só. Suporte e sistema
são fusionados. Quando aprendemos algo, se produz uma mudança na
arquitetura neuronal. Aliás, nossas memórias são guardadas de uma forma
impensável. Arquivamos uma amostra e reconstruí- mos automaticamente o
resto quando a evocamos. Por isso os relatos mudam com o tempo, além de
os editarmos da maneira mais conveniente. Estranho sistema de
compactação... Como fazer isso rodar em "outra máquina"?
Antes
que alguém fale em transplante de cérebro, lembre-se de que não há um
suporte de conexão que o atarraxe à espinha dorsal. O cérebro é ligado a
uma extensa rede de neurônios ramificada por todo o corpo. Por exemplo,
nos intestinos estão milhões deles. Levaremos junto para o outro corpo?
Pensamos desde e através de um corpo, que tem fome, sono,
dores, medo, prazer, adoece, cansa, quer sexo, tem estranhos desejos,
sofre de angústia e possui uma carga genética que nos faz ser tão
diversos. Tantas vezes o corpo nos pesa, nos atrapalha; faz sentido o
desejo de ser um pensamento incorpóreo, uma alma. Assim daria para
desdenhar do corpo e até odiá-lo, maltratá-lo, quando o culpamos por
nossas fraquezas, ou quando nos trai, envelhecendo.
A ideia da
alma é o triunfo da poética e da imaginação sobre todas as evidências. O
recalque do corpo acalma nossa angústia de sermos mortais, mesmo que ao
preço de um atrapalho cognitivo basilar sobre a condição humana. A
ideia da alma serve para negar nossa insignificância e transitoriedade,
mas turva a visão sobre como somos. O divórcio com o corpo pode custar
caro. Faça sua escolha.
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* Psicanalista.
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=655a17b8deca6746b08de68e71b463a8
Imagem da Internet do seriado de TV Altered Carbon
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