domingo, 23 de setembro de 2018

O PREÇO DA ALMA

Mário Corso*

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Altered Carbon é um seriado de ficção científica da Netflix. Fraco, mas com um mote ótimo: alcança- ríamos a imortalidade pela tecnologia. A ideia é simples, arquivaríamos todas as memórias do nosso cérebro e as descarregaríamos em outra "capa" que é assim que são chamados os corpos. Não conseguimos parar a decadência biológica, mas poderíamos trocar de "capas" infinitamente. 

Perde-se nos séculos nossa obsessão em no- mear um duplo - a alma - que serviria para driblar a finitude. Como constatamos a decadência física do corpo, criamos um ser em paralelo incorruptível. Assim nasceu o binômio corpo e alma, apropriado por quase todas as reli- giões. Está ideia é tão arraigada, que é difícil pensar desde fora dela, e nisso se embasa o seriado acima. 

Quando o mundo digital surgiu, começamos a usá-lo para mais uma metáfora dessa dualidade. Temos o hardware, a máquina, que é concreta, e as memórias e o sistema operacional, que, embora físicos, são sistemas impalpáveis e plásticos. Trocamos de computador levando os conteúdos. Logo, por que não poderíamos guardar nossas memórias e nosso "sistema operacional cerebral"? 

O problema é apenas um: em nós não existe essa duplicidade. O cérebro, como ele funciona, e nossas memórias são uma coisa só. Suporte e sistema são fusionados. Quando aprendemos algo, se produz uma mudança na arquitetura neuronal. Aliás, nossas memórias são guardadas de uma forma impensável. Arquivamos uma amostra e reconstruí- mos automaticamente o resto quando a evocamos. Por isso os relatos mudam com o tempo, além de os editarmos da maneira mais conveniente. Estranho sistema de compactação... Como fazer isso rodar em "outra máquina"? 

Antes que alguém fale em transplante de cérebro, lembre-se de que não há um suporte de conexão que o atarraxe à espinha dorsal. O cérebro é ligado a uma extensa rede de neurônios ramificada por todo o corpo. Por exemplo, nos intestinos estão milhões deles. Levaremos junto para o outro corpo? 

Pensamos desde e através de um corpo, que tem fome, sono, dores, medo, prazer, adoece, cansa, quer sexo, tem estranhos desejos, sofre de angústia e possui uma carga genética que nos faz ser tão diversos. Tantas vezes o corpo nos pesa, nos atrapalha; faz sentido o desejo de ser um pensamento incorpóreo, uma alma. Assim daria para desdenhar do corpo e até odiá-lo, maltratá-lo, quando o culpamos por nossas fraquezas, ou quando nos trai, envelhecendo. 

A ideia da alma é o triunfo da poética e da imaginação sobre todas as evidências. O recalque do corpo acalma nossa angústia de sermos mortais, mesmo que ao preço de um atrapalho cognitivo basilar sobre a condição humana. A ideia da alma serve para negar nossa insignificância e transitoriedade, mas turva a visão sobre como somos. O divórcio com o corpo pode custar caro. Faça sua escolha.
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* Psicanalista.
Fonte:  http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=655a17b8deca6746b08de68e71b463a8
Imagem da Internet  do seriado de TV Altered Carbon

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