Mesa com Lucas Volpatto e Cêça Guimaraens, mediada por Oritz Campos, do CAU/RS. Foto: Maia Rubim/Sul21
Renata Cardoso
A história de uma sociedade pode ser contada de diversas formas. Muitas vezes, o que não se percebe é que a arquitetura é uma delas. Os ornamentos, estilos e formas dos prédios de uma cidade falam sobre o processo de urbanização e as mudanças que ocorreram no local. Mas os prédios também contam histórias de pessoas, fazem parte de uma herança cultural que, juntamente com muitos outros bem materiais e imateriais, ajudam a montar o quebra-cabeça das civilizações.
De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Constituição estabelece que o poder público e as comunidades devem agir em conjunto para a promoção e proteção do Patrimônio Cultural Brasileiro. Mas, infelizmente, não é isso que acontece na prática. De acordo com Lucas Volpatto, arquiteto que participou de diversas restaurações em Porto Alegre, como a da Igreja das Dores, no centro da Capital, pessoas compram casas antigas achando que vão poder demolir para realizar algum empreendimento no local. Quando são impedidas, acabam encarando de forma negativa. “Existem diversos tipos de proprietários de bens culturais, alguns querem e podem investir e outros, não. Eu sempre falo que restaurar não é mais caro que construir, o que acontece é que muitas vezes o imóvel ficou anos sem manutenção e, na hora de restaurar, o valor fica alto, mas, na verdade, isso é fruto do descuido e da ação do tempo”, explica o profissional, que esteve presente no Seminário Exercício Profissional, promovido pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS), quinta e sexta-feira (14), na Fundação Iberê Camargo.
Para Volpatto, o arquiteto tem que mostrar os caminhos para que as pessoas queiram preservar ou restaurar imóveis tombados. “Nós arquitetos e urbanistas temos o compromisso social de mostrar a importância e o que é o patrimônio cultural. É preciso educar sobre isso, que é uma herança que conta a história das gerações anteriores, assim como o que produzimos contemporaneamente pode agregar valor cultural às nossas gerações e às próximas. É uma questão de cidadania e autoestima: o edifício não preservado reflete quem somos, a sociedade que nós construímos”, frisa. Ele também salienta a importância de preservar a essência do patrimônio, que é a memória do local.
Ceça Guimaraens, arquiteta carioca e conselheira consultiva do Iphan, órgão que zela pelo cumprimento dos marcos legais, efetivando a gestão do Patrimônio Cultural Brasileiro e dos bens reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como Patrimônio da Humanidade, também esteve presente no evento. Ela falou sobre o recente incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro e sobre como o patrimônio histórico ajuda a guardar as memórias e identidades de uma população.
Confira a entrevista:
Sul21: O que significa para a cultura e arquitetura do país o incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro e o que isso revela sobre a nossa sociedade?
Ceça Guimaraens: A perda dos objetos, das peças é incalculável, inacreditável. Imagina você ter aqueles objetos representativos da história de outros países, de outros povos que formam a nossa civilização, o nacional brasileiro, que estava ali guardado, a ação de defesa de guarda de tratamento e exposição daqueles objetos era uma ação que era histórica para nós. Em relação ao edifício também, o edifício passou por intervenções, a originalidade do edifício talvez seja menos importante que a autenticidade e antiguidade das peças em si e também dos sistemas de exposição que estavam ali representados através dos objetos. Como um museu morre, da maneira como morreu o Museu Nacional Brasileiro, de uma maneira inesperada e inexplicável? Eu não acho que só o fato de não receber vistorias do corpo de bombeiros explique isso. Não sei se chamo de acidente ou catástrofe, é um fato realmente avassalador. O que explica isso é a soma de fatores. Mas acredito que o principal seja a nossa pobreza material, que gera a deseducação, a falta de entendimento do acervo. Um museu como aquele tem não somente uma ação de guarda desses itens, mas uma ação de exposição, de ensino e de pesquisa sobre os objetos. Um museu não é somente um passeio. Um museu é um lugar de comunicação e o incêndio comunicou ao público a nossa pobreza de não ter o básico, como uma brigada de incêndio.
Sul21: O patrimônio histórico arquitetônico também guarda um pouco da história e identidade das cidades, correto?
Ceça Guimaraens: O patrimônio arquitetônico é a cidade, é a história da cidade que está representada nessas diversas camadas físicas que a compõem: as ruas, os becos, as fachadas, os telhados. Enfim, tudo isso faz a história da cidade. O fato de um prédio, por exemplo, não ser mais usado, é que faz com que ele entre em um processo de deterioração. A casa que servia no começo do século XX não serve mais hoje, esse local precisa ser adaptado. A família que herdou aquela casa não quer morar ali. E, acima de tudo e de todos, tem a ideologia do novo. Nós sempre estamos interessados no que é novo e isso é ideológico. Todo mundo quer morar em um apartamento no 45º andar. Nós não damos conta de proteger o que construímos há 150 anos porque não nos interessa usar o antigo.
Sul21: Qual o papel do Iphan na preservação desse patrimônio?
Ceça Guimaraens: O papel do Iphan começa numa ação de gestão importantíssima, que é o tombamento. Cabe ao Iphan eleger e registrar e inscrever no livro do tombo os bens que têm interesse nacional. Os estados e municípios reproduzem esses mesmos procedimentos. Pelo decreto de lei 25, o proprietário tem o dever de zelar pela integridade de seu bem. Ora, alguns proprietários têm interesse em cuidar desse bem, outros não, então ao Iphan cabe denunciar isso. Mas sempre que a gente denuncia, sempre que a gente convoca uma ação do proprietário com base na lei, a gente tem que saber que a sociedade, em sua totalidade, deveria também prover essa preservação.
Então, temos os instrumentos de incentivos fiscais para quem é proprietário e aplica no seu bem. Acontece que cada vez aumenta mais a mudança da sociedade, as famílias são diferentes. Você tem toda uma complexidade sociológica e antropológica que mudam o sentido das coisas. Se você não usa, o edifício colapsa, então a transformação da sociedade e a falta de recursos materiais dos proprietários ou das famílias que herdaram esses bens é um fator determinante. Muitas famílias preferem viajar do que restaurar um telhado. Há a mudança de interesse e há o abandono. É do ideológico preferir o novo e a cidade vai perdendo sua função, seu uso. Costumo dizer que ‘casa vazia ruína anuncia’, então o mundo está pronto, é preciso conservá-lo.
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Fonte: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2018/09/e-do-ideologico-preferir-o-novo-e-a-cidade-vai-perdendo-sua-funcao-seu-uso-diz-conselheira-do-iphan/
A história de uma sociedade pode ser contada de diversas formas. Muitas vezes, o que não se percebe é que a arquitetura é uma delas. Os ornamentos, estilos e formas dos prédios de uma cidade falam sobre o processo de urbanização e as mudanças que ocorreram no local. Mas os prédios também contam histórias de pessoas, fazem parte de uma herança cultural que, juntamente com muitos outros bem materiais e imateriais, ajudam a montar o quebra-cabeça das civilizações.
De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Constituição estabelece que o poder público e as comunidades devem agir em conjunto para a promoção e proteção do Patrimônio Cultural Brasileiro. Mas, infelizmente, não é isso que acontece na prática. De acordo com Lucas Volpatto, arquiteto que participou de diversas restaurações em Porto Alegre, como a da Igreja das Dores, no centro da Capital, pessoas compram casas antigas achando que vão poder demolir para realizar algum empreendimento no local. Quando são impedidas, acabam encarando de forma negativa. “Existem diversos tipos de proprietários de bens culturais, alguns querem e podem investir e outros, não. Eu sempre falo que restaurar não é mais caro que construir, o que acontece é que muitas vezes o imóvel ficou anos sem manutenção e, na hora de restaurar, o valor fica alto, mas, na verdade, isso é fruto do descuido e da ação do tempo”, explica o profissional, que esteve presente no Seminário Exercício Profissional, promovido pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS), quinta e sexta-feira (14), na Fundação Iberê Camargo.
Para Volpatto, o arquiteto tem que mostrar os caminhos para que as pessoas queiram preservar ou restaurar imóveis tombados. “Nós arquitetos e urbanistas temos o compromisso social de mostrar a importância e o que é o patrimônio cultural. É preciso educar sobre isso, que é uma herança que conta a história das gerações anteriores, assim como o que produzimos contemporaneamente pode agregar valor cultural às nossas gerações e às próximas. É uma questão de cidadania e autoestima: o edifício não preservado reflete quem somos, a sociedade que nós construímos”, frisa. Ele também salienta a importância de preservar a essência do patrimônio, que é a memória do local.
Ceça Guimaraens, arquiteta carioca e conselheira consultiva do Iphan, órgão que zela pelo cumprimento dos marcos legais, efetivando a gestão do Patrimônio Cultural Brasileiro e dos bens reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como Patrimônio da Humanidade, também esteve presente no evento. Ela falou sobre o recente incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro e sobre como o patrimônio histórico ajuda a guardar as memórias e identidades de uma população.
Sul21: O que significa para a cultura e arquitetura do país o incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro e o que isso revela sobre a nossa sociedade?
Ceça Guimaraens: A perda dos objetos, das peças é incalculável, inacreditável. Imagina você ter aqueles objetos representativos da história de outros países, de outros povos que formam a nossa civilização, o nacional brasileiro, que estava ali guardado, a ação de defesa de guarda de tratamento e exposição daqueles objetos era uma ação que era histórica para nós. Em relação ao edifício também, o edifício passou por intervenções, a originalidade do edifício talvez seja menos importante que a autenticidade e antiguidade das peças em si e também dos sistemas de exposição que estavam ali representados através dos objetos. Como um museu morre, da maneira como morreu o Museu Nacional Brasileiro, de uma maneira inesperada e inexplicável? Eu não acho que só o fato de não receber vistorias do corpo de bombeiros explique isso. Não sei se chamo de acidente ou catástrofe, é um fato realmente avassalador. O que explica isso é a soma de fatores. Mas acredito que o principal seja a nossa pobreza material, que gera a deseducação, a falta de entendimento do acervo. Um museu como aquele tem não somente uma ação de guarda desses itens, mas uma ação de exposição, de ensino e de pesquisa sobre os objetos. Um museu não é somente um passeio. Um museu é um lugar de comunicação e o incêndio comunicou ao público a nossa pobreza de não ter o básico, como uma brigada de incêndio.
Ceça Guimaraens: O patrimônio arquitetônico é a cidade, é a história da cidade que está representada nessas diversas camadas físicas que a compõem: as ruas, os becos, as fachadas, os telhados. Enfim, tudo isso faz a história da cidade. O fato de um prédio, por exemplo, não ser mais usado, é que faz com que ele entre em um processo de deterioração. A casa que servia no começo do século XX não serve mais hoje, esse local precisa ser adaptado. A família que herdou aquela casa não quer morar ali. E, acima de tudo e de todos, tem a ideologia do novo. Nós sempre estamos interessados no que é novo e isso é ideológico. Todo mundo quer morar em um apartamento no 45º andar. Nós não damos conta de proteger o que construímos há 150 anos porque não nos interessa usar o antigo.
Sul21: Qual o papel do Iphan na preservação desse patrimônio?
Ceça Guimaraens: O papel do Iphan começa numa ação de gestão importantíssima, que é o tombamento. Cabe ao Iphan eleger e registrar e inscrever no livro do tombo os bens que têm interesse nacional. Os estados e municípios reproduzem esses mesmos procedimentos. Pelo decreto de lei 25, o proprietário tem o dever de zelar pela integridade de seu bem. Ora, alguns proprietários têm interesse em cuidar desse bem, outros não, então ao Iphan cabe denunciar isso. Mas sempre que a gente denuncia, sempre que a gente convoca uma ação do proprietário com base na lei, a gente tem que saber que a sociedade, em sua totalidade, deveria também prover essa preservação.
Então, temos os instrumentos de incentivos fiscais para quem é proprietário e aplica no seu bem. Acontece que cada vez aumenta mais a mudança da sociedade, as famílias são diferentes. Você tem toda uma complexidade sociológica e antropológica que mudam o sentido das coisas. Se você não usa, o edifício colapsa, então a transformação da sociedade e a falta de recursos materiais dos proprietários ou das famílias que herdaram esses bens é um fator determinante. Muitas famílias preferem viajar do que restaurar um telhado. Há a mudança de interesse e há o abandono. É do ideológico preferir o novo e a cidade vai perdendo sua função, seu uso. Costumo dizer que ‘casa vazia ruína anuncia’, então o mundo está pronto, é preciso conservá-lo.
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Fonte: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2018/09/e-do-ideologico-preferir-o-novo-e-a-cidade-vai-perdendo-sua-funcao-seu-uso-diz-conselheira-do-iphan/
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