Fernando Gabeira*
É com a realidade que está aí que teremos de construir nossos sonhos, ainda que modestos
Ando muito pelo Brasil, mas não faço pesquisas. Nem pergunto em quem o
interlocutor vai votar. Apenas converso. E com isso vou formando um
quadro que, às vezes, é confirmado pelas pesquisas que dizem ter
estreita margem de erro.
Faz
algum tempo que tento me acostumar com a realidade que vem pela frente,
um confronto polarizado entre dois líderes populares, Lula e Bolsonaro.
Como um está na cadeia e o outro no hospital, a eleição ganha um tom de
realismo fantástico. É preciso abstrair a dimensão romanesca e cair na
realidade: um dos dois será vitorioso, com todas as consequências que
isso implica.
Senti no Nordeste que Lula tem muita força. Na Bahia, sobretudo,
um sentimento de gratidão a Lula e a popularidade do governo local
indicam uma supremacia da esquerda. No Norte, Sudeste e Sul, ouço muito o
nome de Bolsonaro. Se o que vi tem o valor de uma pesquisa espontânea,
minha inclinação é supor que a aspiração de mudança está encarnando
nele.
Às vezes tendo a
imaginar se essa imensa resistência ao governo de esquerda não se parece
com o susto que os franceses tiveram com o Maio de 1968, optando pela
volta de De Gaulle.
Não vejo o momento que virá pela óptica dos anos 60 no Brasil,
pelo menos não o descreveria como Roberto Campos ao analisar a queda de
Goulart e a tomada do poder pelos militares. Para ele, a alternativa
eram anos de chumbo ou rios de sangue. E também não é, como às vezes
dizemos brincando, um dilema entre Venezuela e Filipinas. O presidente
das Filipinas é um peso-pesado no gênero. E um destino venezuelano é
altamente improvável. Maduro não se aguentaria tanto tempo se não
tivesse cooptado as Forças Armadas com empregos que rendem muito aos
generais. No Brasil isso seria diferente.
Ainda assim, descartando modelos mais assustadores, viveremos uma
situação delicada. As duas forças em presença são dificilmente
conciliáveis.
Nos Estados Unidos, apesar da rivalidade, em alguns e raríssimos
momentos democratas e republicanos reconhecem o interesse nacional. Já a
polarização brasileira, de uma certa forma, reduziu as chances de um
esboço de projeto nacional para enfrentar a crise e reconstruir o País.
Certamente cada uma das partes tem o seu. Mas ele dificilmente atravessa
os limites dos seus entusiasmados seguidores.
O estímulo ao equilíbrio deve vir da sociedade, mas isso não é
fácil quando a maioria dos eleitores pende para uma visão mais radical. O
discurso do equilíbrio é sentido como uma das formas de manter o
sistema político-eleitoral. As expectativas são muito maiores.
Num posto de gasolina da estrada, um homem com um longo chapéu de
palha me disse: “Voto no Bolsonaro porque é preciso virar a mesa”.
Nesses momentos sinto a fragilidade dos instrumentos com que deveríamos
contar quando o presidente assumir: Congresso e Supremo Tribunal.
O Congresso, na verdade, é a força sobre a qual a sociedade ainda
pode exercer uma influência maior. Ainda assim, com discretíssimas
mudanças será sentido mais como parte do problema do que como solução.
O Supremo... Bem, o Supremo todos sabemos que está parcialmente
empenhado em neutralizar a Lava Jato. Cada vez que concede um habeas
corpus, liberta um condenado, desmembra um processo para tirá-lo de
Curitiba, está alimentando o desejo de uma renovação pela direita.
Vejo um amplo jogo de grandes forças sociais e, diante dele,
poucas as chances da intervenção individual. Reconheço que vivemos num
país com alto nível de imprevisibilidade. Mas, com os dados que tenho,
creio que a tarefa será cada vez mais pensar os próximos passos,
estabelecer um roteiro de redução de danos. É uma tarefa para todos os
que querem sair do atraso, incluídos os eleitores mais moderados dos
dois líderes.
Ultimamente têm surgido alguns livros no Brasil sobre a
decadência da democracia, que não sofre mais golpes de Estado, mas
simplesmente transita para regimes autoritários. Os livros são ótimos,
porém o cenário dos últimos anos no Brasil é um livro aberto. Várias
vezes o Congresso votou projetos absurdos sabendo que estava cavando um
abismo maior entre os políticos e a sociedade. Os escândalos de
corrupção, que levaram um grupo para a cadeia e deixaram seu principal
aliado agonizando diante da pressão policial, tudo isso contribui para
um desencanto geral com o sistema político-partidário.
Não se trata de um “bem que avisei” ou de caça aos culpados,
apenas uma constatação importante de como será difícil a nova fase.
Se uma visão mais moderada perder a batalha eleitoral, e isso me
parece provável no momento, não terá perdido com isso a sua importância.
Ela pode ser um fio de esperança para que surja um projeto de
reconstrução mais consensual. E ser uma espécie de algodão entre
cristais, lembrando que a guerra fria acabou e é necessário superar os
grandes dilemas ideológicos para recuperar o tempo perdido.
A polarização entre dois líderes populares de certa forma
simplifica e torna o processo mais caloroso ainda. Mas revela como
surgem os líderes nacionais no Brasil democrático. Eles simbolizam
também a força da comunicação oral. São capazes de transmitir a mensagem
que a forma literária dos intelectuais não consegue.
Claro que seu discurso também é lido, perpassa os jornais e
revistas. No entanto, é a linguagem oral, com seus erros, hesitações e
exageros, que consegue chegar ao coração dos eleitores em escala
nacional. Outros podem usá-la sem êxito. Entra aí um outro fator
importante: o papel do indivíduo, sua trajetória e personalidade.
Poderia divagar muito sobre o dilema brasileiro. Poderia até
desejar que não fosse assim. Mas seria perda de tempo. Se não estou
muito equivocado, essa é a realidade que está aí. E é com ela que
teremos de construir incessantemente nossos sonhos, ainda que modestos.
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*JORNALISTA
Fonte: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,pao-pao-queijo-queijo,70002511977 21/09/2018
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