Ivone Gebara*
Nem uma nem outra se sustentam isoladas. Tudo está ao mesmo tempo no
espaço público e privado e tem necessidade
de conversa aberta
O contexto histórico atual na sua diversidade tem revelado o inegável poder da Religião na esfera pública
e a inegável fraqueza da Política oficial. Parece que a Política sai
enfraquecida com a intromissão do discurso religioso e a religião na sua
pretensão universalista se torna muitas vezes sectária e até
banalizada.
Mas essa perigosa guerra de poderes querendo dominar a
esfera pública é algo contraditório e exige clarificações em vista do
bem comum. O que é mesmo o público e o que é o privado? Seria a Política
pública e a Religião privada? Creio que precisamos nos entender melhor
para não acentuar divisões inúteis e até danosas.
Temos muitas vezes a tentação de limitar a política e a
construção da democracia à esfera pública e a religião à esfera
privada. Não percebemos que esta radical separação é um enorme equívoco
que limita a percepção da intrincada relação entre ambas na vida dos
indivíduos e na coletividade ao longo de nossa História. Dentro de um
mundo cada vez mais pluralista e autoritário, porém fantasiado de
democracia, uma abordagem diferente se faz necessária.
Comumente falamos de políticas públicas, de homens
públicos e nos referimos a eles e a elas a partir dos governos e
partidos políticos. Onde situamos as religiões? Não estariam os líderes
religiosos também na esfera pública? Não seriam eles formadores de
opinião mesmo quando se isentam de apoiar publicamente um ou outro
candidato ou partido? E os fiéis onde se situariam?
Muitas vezes ao defender o Estado laico,
ou seja, a não influencia e a não interferência das religiões na esfera
pública corremos o risco de separar a realidade das idéias da realidade
de nossa vida cotidiana, de nossas emoções, de nossos medos e crenças
as mais diversas. A questão me parece ser a de deixar claro que um
Estado laico não é um Estado onde a religião é excluída do setor
público. E, que nenhuma religião pode em seu próprio nome excluir as
outras assim como opiniões não religiosas e impô-las como diretivas ao
Estado.
Sabemos bem que em muitos lugares e tempos as
religiões tiveram um papel supletivo em relação ao Estado. O que o
Estado nas suas diferentes instâncias não garantia aos cidadãos, algumas
religiões ofereceram como se elas detivessem um poder maior do que o do
Estado.
Independentemente da aceitação ou não das doutrinas
religiosas é preciso admitir o quanto em diferentes partes do mundo, em
diferentes espaços e tempos, as religiões tiveram e têm ainda um poder
nefasto e opressor, assim como um poder benéfico e libertador.
Não podemos esquecer o quanto contribuíram para a
dominação dos escravos e o quanto também contribuíram para sua
libertação, o quanto apoiaram ditaduras e o quanto fizeram parte de
grupos contra as ditaduras, o quanto oprimiram os povos nativos e o
quanto se esmeraram em libertá-los. A ambiguidade e as contradições das
religiões acompanham as ambiguidades e contradições das políticas e da
própria vida humana. Não podemos esquecer da mistura que somos.
Hoje, o povo carente de soluções muitas vezes se deixa
entorpecer e passa a esperar mais das promessas da religião do que da
responsabilidade política dos políticos. Estas situações constatáveis a
olho nu nos convidam a, uma vez mais, refletir sobre o sempre atual
problema das relações entre religiões e políticas num Estado,
incluindo-se aqui também o papel dos políticos.
Tanto as religiões quanto o Estado guardam suas
dimensões públicas e privadas. Por isso, gostaria de convidar-nos a
observarmos que o que chamamos público se refere antes de tudo a toda a
sociedade civil plural, lugar de atuação das diferentes crenças
religiosas e anti-religiosas e das políticas conservadoras ou
progressistas. É também a partir desse lugar público que fazemos uma
política talvez bem mais ampla do que a política dos políticos.
E é igualmente fora das igrejas e templos que talvez
vivamos uma forma religiosa que nos irmana mais do que imaginamos. Ao
dizer isso, estou simplesmente nos convidando a olhar algo mais da
realidade em que vivemos para além dos clichês habituais. Trata-se de um
olhar que muitas vezes escapa de nossa atenção porque estamos obcecados
por nossas paixões políticas, religiosas ou anti-religiosas.
Creio que há uma sensação generalizada no Brasil de
frustração com os políticos identificados à Política. Por exemplo, a
dúvida em relação ao 'em quem votar’ é grande. De repente o caos
parece ter se instalado e a incerteza em relação às antigas promessas
políticas também. Há em muitas pessoas, além da compreensível
insegurança, uma repulsa em relação aos discursos e programas políticos.
Então, ou os ignoram ou se refugiam na religião.
Por sua vez os intelectuais ou políticos teóricos
criticam a religião como fonte de alienação e opressão, sobretudo quando
se trata das mulheres. Entretanto, ouso dizer que é ela que ainda
mantém de forma misturada e limitada um discurso imediato sobre a
esperança. Sei que muitos dirão que se trata de utopia fundada em
promessas divinas irrealizáveis.
Ah! Promessas divinas! Não seria ridículo falar de
promessas nesse momento em que Deus está sendo tão dilapidado,
banalizado, desprezado? Nós, intelectuais que passamos a Religião na
peneira do racionalismo moderno, que buscamos a implacável coerência em
nossas ideias de esquerda ou de direita, que afirmamos a ciência
econômica, a ciência política e social ousamos ainda falar de esperança
religiosa?
Nós tão sábios ousamos lembrar promessas divinas? Que
seriam essas promessas? Quem as proclamou? Não seríamos nós humanos a
origem de sua aparição? Não seriam elas ‘suspiros’ e ‘saudades’ da
bondade habitando em nós mesmos? Que promessas ou esperanças religiosas
podem ainda animar a vida de tanta gente? Quem ainda acreditaria nelas
quando nos sentimos submergidos em lama espessa ou quando nos arrastamos
em busca do pão cotidiano?
As esperanças religiosas afirmadas por algumas
tradições proféticas da Bíblia, tradições nascidas em tempos
tumultuados, são clamores por justiça e também recortes poéticos, junção
de palavras que tocam o coração, brotos de beleza que nascem da alma,
pirilampos que atravessam as trevas e relativizam sua espessura... “Caminhante avisa-me quando chegarem os sinais da aurora”!
Querer ‘curar feridas, fazer habitar o lobo com o
cordeiro, imaginar crianças brincando com serpentes, velhas estéreis
parindo, mortos ressuscitando, pão abundante saciando famintos, gestos
curando os estropiados, lágrimas enxugadas por ternas mãos’... Este
futuro só pode ser garantido pelo inefável, pelo inominável, pelo
mistério infinito, pela transcendência que nos precede, atravessa e
antecede não como um plano de governo ou um catecismo, mas como um
alento de vida.
Em muitos lugares e tempos as religiões tiveram um papel supletivo em relação ao Estado
Alento em que a beleza frágil pode sustentar-nos como
um ramo verde nascido entre as pedras sustenta a possibilidade de vencer
a seca. O mistério inefável habita os seres humanos como o ar que
respiramos. Tem muitos nomes e formas chamando-nos não a uma fé em
dogmas rígidos, mas a uma verdade que nossos corpos podem sentir.
A verdade das múltiplas carências que ceifam vidas e as possibilidades de um presente e um futuro, melhores. E então, ‘vimos um novo céu e uma nova terra’, ‘todos os pobres serão saciados’, ‘os cativos voltarão às suas casas’... Palavras
de Deus em nós... De Deus como lugar contrário à nossa ganância e
egoísmo, como expressão da vida digna ao coletivo que somos.
Essa paixão pela vida exige que desenvolvamos o que teóricos como Jürgen Habermas chamaram de “razão pública”, ou
seja, a capacidade de olharmos a realidade de nosso contexto e
reconhecer nela os reais clamores do povo de forma múltipla. Reconhecer é
conhecer, não fechar os olhos e não virar as costas.
A Religião em suas múltiplas manifestações pode
fornecer elementos capazes de afinar nossos ouvidos, aguçar nosso olhar,
reconhecer os caídos nas estradas da vida, sentir a fome do outro,
reconhecê-lo como outro eu, reconhecer-me nele. A Religião profética
pode inspirar a “razão pública”, o pensar a cidade coletivamente! Seria
isso só Poesia! Poesia ineficaz! Creio que essa aparente ineficácia
torna a vida mais suportável, não mascara a dor e não ilude porque nasce
de nós...
Mas tem mais, muito mais que a profecia religiosa que
nossos corpos sentem e vivem! Hoje é dia de samba na Avenida! Hoje o
morro está em festa! Hoje lá no bar do Zé tem serenata! Hoje vai ter
sarau no Tijolo! Hoje nasceu minha menina! Poesia só poesia! Poesia
crível, real! Poesia com caipirinha para levantar o astral com
tira-gosto de queijo de coalho, amendoim e azeitona!
E ainda tem a ciranda na beira da praia a lua cheia e o
céu estrelado, tem as baianas vestidas de renda branca lavando a
escadaria do Senhor do Bonfim com água de cheiro. Tem... Tem... Seria
religiosidade estéril! Fantasia de alguns inocentes e incultos! É antes
de tudo religiosidade vital que conecta a vida com a vida no imediato,
no cotidiano, que faz bem e possibilita o nascimento de coisas novas até
na política.
Nada termina o sofrimento alojado no peito e nem faz
desaparecer as contas para pagar. Mas, o samba alivia, dá trégua para a
dor como a profecia visibiliza publicamente a dor do outro/a, dor que
precisa ser sanada. A Razão política sozinha é incapaz de aliviar as
dores cotidianas. Seus planos são lentos demais, suas promessas áridas
demais, sua realização é para um futuro distante e incerto, sua ética
pouco festiva. Minha dor é agora... Minha lágrima e meu sangue escorrem
nesse instante... As algemas me ferem nessa hora…
A Razão política nos serve para construir sentidos
amplos para uma situação futura provavelmente melhor, mas não garante a
esperança imediata, aquela luz ou aquele embevecimento do momento que me
faz sentir a bondade da vida agora, a solidariedade que nos sustenta. É
pouco talvez, mas é alguma coisa para os que têm ‘fome e sede de justiça’.
Nem religiões nem políticas se sustentam isoladas e em
guerra. Tudo está ao mesmo tempo no espaço público e privado e tem
necessidade de conversa aberta. Sem festa, sem reza, sem companheirismo,
amizade, caipirinha e tira-gosto nada se sustenta. Tudo isso é pela
vida, nossa frágil vida... E ela é bonita, é bonita e é bonita.
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* Ivone Gebara é uma freira católica, filósofa e teóloga feminista
brasileira.
Nascida em São Paulo, de ascendência sírio-libanesa, ingressou na
Congregação das Irmãs de Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho em
1967, aos vinte e dois anos, depois de graduar-se em filosofia.
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/politica-e-religiao-elucubracoes-sobre-a-mistura-de-poderes
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