sábado, 15 de setembro de 2018

Política e Religião: elucubrações sobre a mistura de poderes

Ivone Gebara*
 
STF
Nem uma nem outra se sustentam isoladas. Tudo está ao mesmo tempo no espaço público e privado e tem necessidade 
de conversa aberta
 
O contexto histórico atual na sua diversidade tem revelado o inegável poder da Religião na esfera pública e a inegável fraqueza da Política oficial. Parece que a Política sai enfraquecida com a intromissão do discurso religioso e a religião na sua pretensão universalista se torna muitas vezes sectária e até banalizada.

Mas essa perigosa guerra de poderes querendo dominar a esfera pública é algo contraditório e exige clarificações em vista do bem comum. O que é mesmo o público e o que é o privado? Seria a Política pública e a Religião privada? Creio que precisamos nos entender melhor para não acentuar divisões inúteis e até danosas.

Temos muitas vezes a tentação de limitar a política e a construção da democracia à esfera pública e a religião à esfera privada. Não percebemos que esta radical separação é um enorme equívoco que limita a percepção da intrincada relação entre ambas na vida dos indivíduos e na coletividade ao longo de nossa História. Dentro de um mundo cada vez mais pluralista e autoritário, porém fantasiado de democracia, uma abordagem diferente se faz necessária.

Comumente falamos de políticas públicas, de homens públicos e nos referimos a eles e a elas a partir dos governos e partidos políticos. Onde situamos as religiões? Não estariam os líderes religiosos também na esfera pública? Não seriam eles formadores de opinião mesmo quando se isentam de apoiar publicamente um ou outro candidato ou partido? E os fiéis onde se situariam?

Muitas vezes ao defender o Estado laico, ou seja, a não influencia e a não interferência das religiões na esfera pública corremos o risco de separar a realidade das idéias da realidade de nossa vida cotidiana, de nossas emoções, de nossos medos e crenças as mais diversas. A questão me parece ser a de deixar claro que um Estado laico não é um Estado onde a religião é excluída do setor público. E, que nenhuma religião pode em seu próprio nome excluir as outras assim como opiniões não religiosas e impô-las como diretivas ao Estado.

Sabemos bem que em muitos lugares e tempos as religiões tiveram um papel supletivo em relação ao Estado. O que o Estado nas suas diferentes instâncias não garantia aos cidadãos, algumas religiões ofereceram como se elas detivessem um poder maior do que o do Estado.

Independentemente da aceitação ou não das doutrinas religiosas é preciso admitir o quanto em diferentes partes do mundo, em diferentes espaços e tempos, as religiões tiveram e têm ainda um poder nefasto e opressor, assim como um poder benéfico e libertador.

Não podemos esquecer o quanto contribuíram para a dominação dos escravos e o quanto também contribuíram para sua libertação, o quanto apoiaram ditaduras e o quanto fizeram parte de grupos contra as ditaduras, o quanto oprimiram os povos nativos e o quanto se esmeraram em libertá-los. A ambiguidade e as contradições das religiões acompanham as ambiguidades e contradições das políticas e da própria vida humana. Não podemos esquecer da mistura que somos.

Hoje, o povo carente de soluções muitas vezes se deixa entorpecer e passa a esperar mais das promessas da religião do que da responsabilidade política dos políticos. Estas situações constatáveis a olho nu nos convidam a, uma vez mais, refletir sobre o sempre atual problema das relações entre religiões e políticas num Estado, incluindo-se aqui também o papel dos políticos.

Tanto as religiões quanto o Estado guardam suas dimensões públicas e privadas. Por isso, gostaria de convidar-nos a observarmos que o que chamamos público se refere antes de tudo a toda a sociedade civil plural, lugar de atuação das diferentes crenças religiosas e anti-religiosas e das políticas conservadoras ou progressistas. É também a partir desse lugar público que fazemos uma política talvez bem mais ampla do que a política dos políticos.

E é igualmente fora das igrejas e templos que talvez vivamos uma forma religiosa que nos irmana mais do que imaginamos. Ao dizer isso, estou simplesmente nos convidando a olhar algo mais da realidade em que vivemos para além dos clichês habituais. Trata-se de um olhar que muitas vezes escapa de nossa atenção porque estamos obcecados por nossas paixões políticas, religiosas ou anti-religiosas.

Creio que há uma sensação generalizada no Brasil de frustração com os políticos identificados à Política. Por exemplo, a dúvida em relação ao 'em quem votar’ é grande. De repente o caos parece ter se instalado e a incerteza em relação às antigas promessas políticas também. Há em muitas pessoas, além da compreensível insegurança, uma repulsa em relação aos discursos e programas políticos. Então, ou os ignoram ou se refugiam na religião.

Por sua vez os intelectuais ou políticos teóricos criticam a religião como fonte de alienação e opressão, sobretudo quando se trata das mulheres. Entretanto, ouso dizer que é ela que ainda mantém de forma misturada e limitada um discurso imediato sobre a esperança. Sei que muitos dirão que se trata de utopia fundada em promessas divinas irrealizáveis.

Ah! Promessas divinas! Não seria ridículo falar de promessas nesse momento em que Deus está sendo tão dilapidado, banalizado, desprezado? Nós, intelectuais que passamos a Religião na peneira do racionalismo moderno, que buscamos a implacável coerência em nossas ideias de esquerda ou de direita, que afirmamos a ciência econômica, a ciência política e social ousamos ainda falar de esperança religiosa?

Nós tão sábios ousamos lembrar promessas divinas? Que seriam essas promessas? Quem as proclamou? Não seríamos nós humanos a origem de sua aparição? Não seriam elas ‘suspiros’ e ‘saudades’ da bondade habitando em nós mesmos? Que promessas ou esperanças religiosas podem ainda animar a vida de tanta gente? Quem ainda acreditaria nelas quando nos sentimos submergidos em lama espessa ou quando nos arrastamos em busca do pão cotidiano?

As esperanças religiosas afirmadas por algumas tradições proféticas da Bíblia, tradições nascidas em tempos tumultuados, são clamores por justiça e também recortes poéticos, junção de palavras que tocam o coração, brotos de beleza que nascem da alma, pirilampos que atravessam as trevas e relativizam sua espessura... “Caminhante avisa-me quando chegarem os sinais da aurora”!

Querer ‘curar feridas, fazer habitar o lobo com o cordeiro, imaginar crianças brincando com serpentes, velhas estéreis parindo, mortos ressuscitando, pão abundante saciando famintos, gestos curando os estropiados, lágrimas enxugadas por ternas mãos’... Este futuro só pode ser garantido pelo inefável, pelo inominável, pelo mistério infinito, pela transcendência que nos precede, atravessa e antecede não como um plano de governo ou um catecismo, mas como um alento de vida.

 Em muitos lugares e tempos as religiões tiveram um papel supletivo em relação ao Estado

Alento em que a beleza frágil pode sustentar-nos como um ramo verde nascido entre as pedras sustenta a possibilidade de vencer a seca. O mistério inefável habita os seres humanos como o ar que respiramos. Tem muitos nomes e formas chamando-nos não a uma fé em dogmas rígidos, mas a uma verdade que nossos corpos podem sentir.

A verdade das múltiplas carências que ceifam vidas e as possibilidades de um presente e um futuro, melhores. E então, ‘vimos um novo céu e uma nova terra’, ‘todos os pobres serão saciados’, ‘os cativos voltarão às suas casas’... Palavras de Deus em nós... De Deus como lugar contrário à nossa ganância e egoísmo, como expressão da vida digna ao coletivo que somos.

Essa paixão pela vida exige que desenvolvamos o que teóricos como Jürgen Habermas chamaram de “razão pública”, ou seja, a capacidade de olharmos a realidade de nosso contexto e reconhecer nela os reais clamores do povo de forma múltipla. Reconhecer é conhecer, não fechar os olhos e não virar as costas.

A Religião em suas múltiplas manifestações pode fornecer elementos capazes de afinar nossos ouvidos, aguçar nosso olhar, reconhecer os caídos nas estradas da vida, sentir a fome do outro, reconhecê-lo como outro eu, reconhecer-me nele. A Religião profética pode inspirar a “razão pública”, o pensar a cidade coletivamente! Seria isso só Poesia! Poesia ineficaz! Creio que essa aparente ineficácia torna a vida mais suportável, não mascara a dor e não ilude porque nasce de nós...
Mas tem mais, muito mais que a profecia religiosa que nossos corpos sentem e vivem! Hoje é dia de samba na Avenida! Hoje o morro está em festa! Hoje lá no bar do Zé tem serenata! Hoje vai ter sarau no Tijolo! Hoje nasceu minha menina! Poesia só poesia! Poesia crível, real! Poesia com caipirinha para levantar o astral com tira-gosto de queijo de coalho, amendoim e azeitona! 

E ainda tem a ciranda na beira da praia a lua cheia e o céu estrelado, tem as baianas vestidas de renda branca lavando a escadaria do Senhor do Bonfim com água de cheiro. Tem... Tem... Seria religiosidade estéril! Fantasia de alguns inocentes e incultos! É antes de tudo religiosidade vital que conecta a vida com a vida no imediato, no cotidiano, que faz bem e possibilita o nascimento de coisas novas até na política.

Nada termina o sofrimento alojado no peito e nem faz desaparecer as contas para pagar. Mas, o samba alivia, dá trégua para a dor como a profecia visibiliza publicamente a dor do outro/a, dor que precisa ser sanada. A Razão política sozinha é incapaz de aliviar as dores cotidianas. Seus planos são lentos demais, suas promessas áridas demais, sua realização é para um futuro distante e incerto, sua ética pouco festiva. Minha dor é agora... Minha lágrima e meu sangue escorrem nesse instante... As algemas me ferem nessa hora…

A Razão política nos serve para construir sentidos amplos para uma situação futura provavelmente melhor, mas não garante a esperança imediata, aquela luz ou aquele embevecimento do momento que me faz sentir a bondade da vida agora, a solidariedade que nos sustenta. É pouco talvez, mas é alguma coisa para os que têm ‘fome e sede de justiça’.

Nem religiões nem políticas se sustentam isoladas e em guerra. Tudo está ao mesmo tempo no espaço público e privado e tem necessidade de conversa aberta. Sem festa, sem reza, sem companheirismo, amizade, caipirinha e tira-gosto nada se sustenta. Tudo isso é pela vida, nossa frágil vida... E ela é bonita, é bonita e é bonita.
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 * Ivone Gebara é uma freira católica, filósofa e teóloga feminista brasileira. Nascida em São Paulo, de ascendência sírio-libanesa, ingressou na Congregação das Irmãs de Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho em 1967, aos vinte e dois anos, depois de graduar-se em filosofia.
Fonte:  https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/politica-e-religiao-elucubracoes-sobre-a-mistura-de-poderes

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