O teólogo e sociólogo iraniano-americano Reza Aslan
Foto: Zahar
Autor iraniano-americano Reza Aslan demonstra o quanto Deus é a mais sofisticada criação humana
Quando Reza Aslan respondeu a esta entrevista sobre seu novo livro, Deus – Uma História Humana
(Zahar, trad. Marlene Suano), estava em plena Terra Santa. E não muito
satisfeito: o parlamento de Israel havia acabado de declarar o país “a
terra dos judeus” – excluindo o território, ao que parece, da presença
de muçulmanos, cristãos, ateus ou representantes de outras crenças.
“Israel vem se tornando cada vez mais radicalizado e menos democrático”,
afirmou Aslan, um iraniano-americano de 46 anos. “Esta lei é nada menos
do que uma declaração oficial de apartheid. É o prego que faltava para
colocar no caixão da democracia israelense”, detonou o teólogo e
sociólogo, presença constante na mídia dos EUA por conta de seu carisma e
suas formulações claras e nada partidárias a respeito de qualquer
religião. Autor de Zelota - A Vida e a Época de Jesus de Nazaré,
em seu novo livro Aslan tece, em linguagem elegante e bem-humorada, uma
complexa rede de conhecimentos para mostrar como a ideia de “alma” já
era acalentada antes do Homo sapiens, e como as religiões, na realidade, foram concebidas à imagem e à semelhança do ser humano.
Nascido em Teerã, em uma família muçulmana, Aslan converteu-se ao
cristianismo, depois ao sufismo – e hoje se assume como um panteísta:
professa a fé de que Deus é todo o universo. Nesta conversa com o Aliás,
o teólogo – que hoje realiza o fantástico projeto Volta ao Mundo em 80
Dias com a mulher e os três filhos, justamente para mostrar aos pequenos
a diversidade religiosa da Terra –, falou sobre como religião e
política se misturam desde sempre; comentou as disputas religiosas no
Rio de Janeiro do bispo Crivella e do evangelizado Comando Vermelho; e
afirmou que até mesmo as inteligências artificiais podem vir, um dia, a
acreditar em Deus. Em tempos de fundamentalismo religioso e político,
ouvir o livre-pensador Aslan é como ser ungido com um bálsamo – nem é
necessário ser crente para admirar seu profundo conhecimento em
religião, conforme atesta este jornalista ateu.
Por que, em pleno 2018, uma religião pretende ser monoteísta? É uma disputa mercadológica pela alma?
Esta é uma questão interessante. Talvez uma das maiores surpresas sobre
a qual escrevo neste livro é sobre quão impopular o monoteísmo foi ao
longo de toda a história das religiões. De fato, quando você olha os
milhares de anos na história da espiritualidade humana, o conceito de
deus único só esteve aí por uns 3 mil anos. A mente antiga simplesmente
não conseguia abraçar a ideia de que um deus único poderia ser
responsável pelo bem e pelo mal, pela escuridão e pela luz, pelo céu e
pela terra. Fazia mais sentido um deus separado para cada um dos nossos
diversos atributos – um deus para representar cada uma de nossas
emoções. Isso não quer dizer que o conceito de deus único não tenha
aparecido de tempos em tempos – no livro escrevo sobre as duas
tentativas de estabelecer o monoteísmo no Egito e no Irã. Foi só como
resultado da crise existencial da fé entre os antigos hebreus que a
ideia de monoteísmo começou a lançar raízes na religião judaica – foi o
resultado do que hoje se conhece do exílio babilônico em 586 a.C. Mesmo
os cristãos primitivos – cuja vasta maioria era de romanos – também
engoliam com dificuldade a ideia de deus único, e por isso eles
desenvolveram a ideia de Trindade. O que mais importava não era a
teologia do monoteísmo, mas suas práticas políticas. A identidade da
Igreja, com seu único bispado em Roma, com a autoridade do Império
Romano com seu imperador único, requeriam uma religião com um deus
único. Hoje, o monoteísmo é a forma dominante da espiritualidade humana.
Talvez seja por causa da história que acabei de traçar. De todo modo, é
importante notar que a ideia de deus único é um conceito totalmente
diverso do que aparenta ser.
Tudo bem misturar política e religião?
Se você acha que religião é uma experiência privada em que simplesmente
um ser humano tem uma conexão com o divino, então não faz sentido
misturar religião com política. O problema é que religião não é só isso.
Religião é principalmente uma questão de identidade, muito mais do que
de fé ou prática. Quando alguém diz “sou muçulmano” ou judeu ou cristão,
está formulando tanto uma definição de sua fé quanto uma definição de
sua identidade. Está falando sobre quem é, como vê o mundo, como
compreende seu lugar nele. Em questão de indentidade, religião é
profundamente entrelaçada com todos os outros aspectos da identidade de
uma pessoa: cultura, etnia, raça, gênero, orientação sexual, e, claro,
orientação política. Então simplesmente não faz sentido divorciar
religião da política. Fazer isso não é democrático. É obvio que podem
haver problemas, especialmente uma vez que religião diz muito respeito a
“mandamentos”, enquanto a política (pelo menos em teoria) supõe-se ser a
respeito de compromissos. Mas, se o Estado oferecer liberdade de culto,
então não se pode esperar que a religião se separe da política. De todo
modo, é preciso assegurar proteções para aqueles que não compartilham
da religião majoritária ou que não têm nenhuma religião.
O crime organizado brasileiro é muito próximo dos cultos
evangélicos, e existe uma guerra entre estes grupos e pessoas que seguem
religiões afrobrasileiras tradicionais, como a umbanda e o candomblé.
Estamos vendo uma guerra entre o monoteísmo e o politeísmo semelhante ao
que você descrebe em seu livro na história da perseguição do faraó
Akhenaton em relação a outros cultos politeístas, no Antigo Egito. Como
você vê este fenômeno hoje?
O que você está vendo, não
só no Brasil mas também em outros países de maioria cristã, é uma
revolta contra a profunda corrupção, manipulação e politização do
cristanismo ao prejudicar quem não segue a fé cristã. Nos EUA, o
cristianismo se tornou uma ferramenta do partido Republicano. Tornou-se
um instrumento para separar as minorias do acesso aos direitos humanos,
para proibir mulheres que sofrem e crianças refugiadas de receber asilo e
ajuda, para afastar os mais pobres das políticas de bem-estar e acesso à
saúde universal e outros serviços para os mais necessitados, e, em
lugar disso, empoderam a supremacia branca. Para muitas pessoas,
incluindo cristãos, isto é uma traição de tudo o que Jesus pregou, e por
isso muitos têm abandonado o cristianismo e procurado formas
alternativas de espiritualidade. É exatamente o que vem acontecendo no
Brasil. Não é só uma guerra entre monoteísmo e politeísmo. É uma batalha
entre o establishment cristão e os que se sentiram abandonados pela
igreja. É também uma tentativa de acobertar o que muitos acreditam ser
uma espiritualidade mais autêntica, radicada no solo do Brasil, mais do
que outras espiritualidades trazidas por estrangeiros e colonizadores.
O que você acha do ensino religioso nas escolas?
Funciona? Meu caso: fui criado em uma escola adventista, depois em um
colégio jesuíta, então em um colégio católico apostólico romano... e
agora você está conversando com este sujeito ateu. Por que não ensinar
filosofia às crianças? Ensinar creacionismo em pleno 2018 não seria
algum tipo de crime?
Esse é um assunto muito espinhoso,
porque ensinar religião para crianças pode facilmente se tornar um tipo
de doutrinação. Mas o fato é que a cultura religiosa é incrivelmente
importante em nosso mundo. Crianças precisam aprender sobre as religiões
do mundo do mesmo modo como precisam aprender sobre as culturas do
mundo. Não vejo como seria difícil ensinar religião sem ensinar alguma
teologia em particular (mas aqui não defendo ensinar o creacionismo nas
escolas, assim como não tem cabimento dar lugar a teorias do tipo "terra
plana"). O problema não está nos pais ateus que não querem que seus
filhos aprendam sobre religião. O problema são os pais religiosos que
sentem que, se seus filhos aprenderem sobre outras religiões, podem
questionar a sua própria (aliás é exatamente isso o que a maioria faz).
Assim que eles aprendem mais sobre outras concepções religiosas,
questionam o absolutismo sobre suas próprias ideias. Diria que é um
aspecto positivo, mas entendo por que pais religiosos não o apreciem. De
qualquer modo, se você quer criar um cidadão global, você precisa
ensinar a suas crianças as múltiplas maneiras que as pessoas têm para
pensar sobre Deus e a fé. Minha mulher e eu atualmente levamos nossos
três filhos em uma viagem de 80 dias pelo mundo (80-ish.com)
precisamente para fazê-los imergirem em diferentes tradições religiosas
pelo planeta. Porque não queremos criar só cidadãos dos EUA: queremos
criar cidadãos globais.
Acha possível um cruzamento entre o livre-pensar e a
aproximação religiosa da descrição da realidade objetiva? Em outras
palavras, cientistas têm alma?
Claro que sim! Rejeito
completamente a noção de que ciência e religião sejam coisas
incompatíveis. Ciência e religião respondem a duas questões
fundamentalmente diversas. Ciência trata do "como". Religião trata do
"porquê". Ciência e religião são duas maneiras diferentes de
conhecimento. E talvez enquanto começamos a mergulhar cada vez mais
fundo naquilo que verdadeiramente acreditamos ser humano, veremos
ciência e religião convergirem em uma só disciplina - uma que reconheça
que há mais na realidade objetiva do que aquilo que vivenciamos.
Você se define como um panteísta. É possível um
cruzamento entre panteísmo e ateísmo? E qual a sua opinião sobre
movimentos ateístas como Ateísmo 3.0 e Novos Ateístas?
Não sou o único que tem descrito os novos movimentos ateístas não como
um tipo de ateísmo, mas como um anti-teísmo, nem sou o único que
percebeu quão fluidamente o novo movimento ateísta tem se entregue ao
racismo e à misoginia. É só você ir a um desses sites e blogs dos novos
ateístas e ler os comentários e compreender que eles têm muito menos a
ver com uma ausência de crença em Deus do que um novo conceito de
fundamentalismo secular - do tipo, eu diria, que tem mais em comum com o
fundamentalismo religioso do que eles admitiriam. De todo modo, se
estamos falando sobre o ateísmo filosófico, claramente consigo enxergar
uma profunda conexão entre panteísmo e ateísmo, na medida em que ambos
rejeitam o autoritarismo das religiões estabelecidas e da supremacia dos
dogmas.
Já considerou a possibilidade de que a existência da alma seja uma ficção, uma ilusão?
Talvez. Mas é um fato fundamental de que a crença na existência na alma
é uma crença universal. É um fato da vida que pode ser encontrado em
qualquer cultura, em qualquer parte do mundo, e através de toda a
história humana. É nossa primeira crença. A pesquisa histórica tem
mostrado que as crianças nascem acreditando na substância dualista - a
ideia de que corpo e mente (ou alma) podem ser distintas. Na verdade,
conforme conto no livro, a crença em uma ala precede a existência do
homo sapiens em milhares de anos. Podemos encontrar evidências dessa
crença nos neandertais e mesmo no homo erectus. Assim, talvez toda a
humanidade, durante toda a história, tenha sofrido da mesma ilusão. Ou
talvez exista realmente algo nessa ideia de alma que a gente devesse
prestar atenção seriamente.
No livro A Era das Máquinas Espirituais, o futurista Ray
Kurzweil vê os seres humanos divididos entre corpo e alma em analogia
aos computadores (hardware e software), e propõe que o advento da
Singularidade aconteça quando um ser humano possa fazer um upload de
consciência, transferindo seu "software" para um "hardware" mais
desenvolvido. Do ponto de vista da alma, como você vê esta
possibilidade? Uma inteligência artificial pode evoluir para criar uma
alma?
Se podemos ensinar uma inteligência artificial a
mimetizar emoções humanas ao manipular um hardware neurológico, e se a
fé é o produto de conexões neurológicas, então uma máquina crente não me
parece uma ideia tão maluca assim. A verdade mais fundamental e simples
a respeito da experiência religiosa é que resulta de reações químicas
no cérebro. Em outras palavras, a religião é um fenômeno neurológico.
Isso não deslegitimiza a experiência religiosa. Toda experiência é o
resultado de reações quimicas cerebrais. Não existe razão para dizer que
a experiência religiosa seja diferente. Agora, se você está me
perguntando se algum dia poderemos recriar essas mesmas reações químicas
em uma inteligência artificial para produzir a experiência religiosa,
eu responderia: por que não?
------------Reportagem Ronaldo Bressane*, Especial para o Estado - 08 Setembro 2018
Fonte: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,religiao-e-politica-se-misturam-desde-sempre-afirma-teologo,70002491213
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