“O senhor também utilizou alguma lei geral que une natureza e arte em seus trabalhos de crítica?”
Esta
foi a primeira pergunta que fiz a Harold Bloom, crítico literário morto
este mês aos 89 anos, e que entrevistei durante uma bolsa de estudos em
1991. Ele ficou alguns instantes perplexo e, em vez de responder, quis
saber o porquê de tal pergunta e o porquê do “também”.
Expliquei-lhe
que estivera pesquisando a obra do cineasta Serguei Eisenstein
(1898-1948) o qual tinha inserido no tempo e no espaço de seus filmes
conceitos que provinham de leis da natureza, como fez, por exemplo, com a
famosa cena da escadaria de Odessa em O Encouraçado Potemkin
(1925), utilizando uma aplicação temporal do segmento áureo, que,
conforme os gregos haviam descoberto, vem da projeção da espiral do
crescimento visível, por exemplo, nas seções dos troncos das árvores ou
na casca dos caracóis.
Ele olhou-me fixo e depois respondeu: “Não, eu não usei nenhuma lei natural”.
Eu disse-lhe que havia encontrado em seu livro Cabala e Crítica
(1975) algumas dessas correspondências. Uma das mais surpreendentes era
que, segundo a primeira parte do livro, dedicada à Cabala, era dito que
Deus havia criado o mundo num momento de vazio, de “expiração”, e isso
coincidia com o fato – como salientava em suas aulas a psicanalista
Regina Schnaiderman – que a natureza humana é tal que as grandes
criações são precedidas, também, por uma fase de grande depressão.
“Sim”,
disse ele, “no livro há muitos paralelos entre a Cabala judaica, que é
tradição, e a crítica literária, da poesia, principalmente. Mas a
questão da expiração de Deus e da criação do mundo, na Cabala, é muito
mais complexa”.
Os paralelos e as afinidades (como Eisenstein,
Bloom era filho de judeus russos) abriram caminho para que a entrevista
se transformasse numa conversa, de modo que pedi a ele que me
esclarecesse certos conceitos, alguns deles já tornados famosos em
publicações anteriores como A Angústia da Influência e A Necessidade da Desleitura, ambos de 1973.
“A
crítica ou é estética ou não é nada”, disse Bloom ao ser perguntado
sobre o que seria a crítica literária para ele, e me apontou um trecho
de um ensaio de Walter Pater (1813): “O que são esta música, este
quadro, este poema esta personalidade atraente que me é apresentada por
um livro, para mim? Que efeito produzem? Me dão prazer? Se sim, que
espécie de prazer? Como pode minha natureza ser modificada por eles?”
As respostas a essas questões são os fatos originais com os quais o crítico estético deve lidar, de acordo com Bloom.
De fato, entre os 26 autores “que dão prazer” e que mereceram longos ensaios em seu livro O Cânone Ocidental
(1994), apenas Samuel Beckett está lá por ter sabido – como diz Bloom –
“expressar a incapacidade de expressar”. Isso explica também os ataques
a certos reducionismos linguísticos e semióticos da história da
literatura.
Entre os outros paralelos que Bloom apontou está o da
“Emanação dos Sefirot”, da Cabala, que podem ser chamados poemas da
criação, pois cada um deles vela e revela uma diferença no poder
criativo de Deus, e o da influência em literatura.
A influência
poética, essencialmente, pouco tem a ver com empréstimo de imagens,
ideias, ritmos, etc. de um poema. Veja a explicação do cabalista Gershom
Scholem (1897-1982), fundador dos modernos estudos da Cabala: “Certos
Sefirot específicos estão em particulares relações de radiação com
outros Sefirot (embora não necessariamente com todos eles). A face de um
Sefirah está voltada para a face de outro Sefirah, de modo que, entre
eles, se desenvolve um ‘canal’ ou influência que não é idêntica à
emanação real. Esses canais são caminhos de influência recíproca entre
diferentes Sefirot”.
Como se vê, a ideia de influência é bem mais
complexa do que pareceria à primeira vista, mas vale, para simplificar,
a conclusão de Valery, que Bloom colocou como prefácio à Necessidade da Desleitura (terceira e última parte de Cabala e Crítica):
“Há obras que se parecem muito umas com as outras, e há obras que são o
oposto de outras, mas há também obras em que sua relação com as
precedentes é tão intrincada que nos deixa confusos a ponto de
atribui-las à intervenção direta dos deuses”.
Leia um trecho dessa entrevista com Harold Bloom de 1991:
Passando da teosofia à poesia,qual seria o equivalente dessa contração criativa?
A imagem da limitação está centrada na ausência, vazio e exterioridade,
enquanto todo poema preferiria gozar de plenitude, presença e
interioridade. No movimento seguinte, de restituição, após todas as
limitações inaugurais, a substituição é o processo real no qual trabalha
o poema, por e com imagens de inteiridade, altura e precocidade que
trabalham para representar o desejo e a restituição. Mas a leitura de
qualquer leitor, em relação a qualquer texto, é uma relação posterior,
tardia. Segue daí que interpretar é revisar, é problematizar a
influência.
Como o senhor explica o conceito de desleitura?
O leitor está para o poema como o poeta está para o precursor, de modo
que cada leitor é um efebo, cada poema é um precursor e cada leitura é
um ato de influência: cada leitor é influenciado pela leitura e
influencia qualquer outro leitor a quem sua leitura é comunicada. Cada
leitura é, portanto, uma desleitura, porque um texto é necessariamente
leitura de um inteiro sistema de textos e o significado é sempre um
vaguear entre os textos.
Isso significa intertextualidade?
Poesia são poemas falando a um poema e este poema respondendo com seu
discurso de defesa e poemas são litanias apotropaicas, sistemas de
tropos defensivos e de defesas em tropos. Não há poemas per se, como não
há poetas per se. Um poeta é forte quando poetas, depois dele,
trabalham para fugir dele. Um crítico é forte se sua leitura provoca
leituras outras. O que alia poeta e crítico fortes é que em sua
respectiva desleitura há um elemento de necessidade.
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*AURORA BERNARDINI É PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE LITERATURA RUSSA NA USP
Fonte: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,a-critica-ou-e-estetica-ou-nao-e-nada-disse-harold-bloom-em-uma-entrevista-de-1991,70003061247
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