“Até hoje não entendi como conseguiram ir tão
longe e fizeram tanto sucesso sem sofrer nas mãos da ditadura”, diz Peter Fry
sobre o grupo musical Secos & Molhados — Foto: Agência O Globo
Para antropólogo Peter Fry, é necessário
imergir em comunidades para entender o país real, e não o imaginado
Por Laura Greenhalgh — Para o Valor, de São
Paulo
18/10/2019
Peter Fry nasceu em tempos de guerra, na
Inglaterra dos anos 40. Cresceu em uma sociedade conservadora que criminalizava
as relações homossexuais até 1967 e onde a palavra “queer” era usada para
rotular, de forma pejorativa, gente fora dos padrões. Por sua orientação sexual
e pelos códigos ingleses da época, Fry era um criminoso aos 26 anos. Não chegou
a usufruir dos benefícios da nova lei porque logo fez as malas rumo ao Brasil,
onde vive ainda hoje, já naturalizado e reconhecido como um dos grandes nomes
da antropologia nacional. Aqui assumiu a homossexualidade. Quanto ao seu país
de origem, o Parlamento britânico trabalha para eliminar os registros criminais
imputados aos “indecentes” e exigir o perdão oficial a eles.
Convidado a analisar por que tantas vozes
bradam contra os perigos da “ideologia de gênero”, eis que Fry, prestes a
completar 78 anos, invoca o seu lado mais sereno ao falar como permanente
pesquisador. Não se insurge contra o discurso inflamado dos que creditam o que
há de ruim no país - da crise na família às queimadas amazônicas - a essa ideologia.
Com percepção aguçada e algum senso de humor, procura decifrar que discurso é
esse, dizendo saber de onde o vozerio parte: “Emana dos palácios de Brasília”.
Já a sua análise emana da longa experiência.
Nos anos 60, agitados tempos da contracultura, Fry formava-se em antropologia
na tradicional Universidade de Cambridge. Pouco depois, partiria para a antiga
Rodésia, hoje Zimbábue, a fim de estudar as relações entre religiosidade e
resistência política. Voltou da imersão africana apto a defender o doutorado na
Universidade de Londres - sua tese deu origem ao livro “Spirits of Protest”
(Espíritos de Protesto), sem edição no Brasil. Até que, em 1969, já decretado o
AI-5 no país, atendeu ao convite da Universidade Estadual de Campinas para dar
aulas e estruturar o departamento de antropologia.
Os rigores da ditadura fizeram dele alvo da polícia
política da época, por ter sido fundador do jornal “Lampião da Esquina”.
Contestador e ousado, o tabloide circulou entre 1978 e 1981, reunindo
intelectuais homossexuais que marcaram a cultura brasileira - entre eles, o
artista plástico Darcy Penteado (1926-1987), o escritor João Silvério Trevisan,
o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, o dramaturgo Aguinaldo Silva e o
próprio Fry. Uma intelligentsia que acabaria azucrinando o então ministro da
Justiça, Armando Falcão (1919-2010), para quem o pasquim de capas provocadoras
atentava contra a moral.
Nesta entrevista, o antropólogo volta aos
tempos do “Lampião”, assim como dos grupos Dzi Croquettes e Secos &
Molhados, mostrando como todo aquele ativismo libertário levou a manifestações
artísticas fortes, ao mesmo tempo em que grupos de direita saíam às ruas. “As
contradições são mesmo a cara do Brasil”, diz. Entre o ministro do passado, que
perseguiu o jornal dos homossexuais, e o prefeito de hoje, que manda recolher
revista com beijo gay, Fry prefere seguir a trilha do conhecimento. Pede aos
institutos de opinião que incorporem a pauta de costumes em suas pesquisas,
anima os antropólogos a voltarem aos trabalhos de campo e preconiza: o Brasil,
país tão tolerante, não pode ter se transformado, de repente, num grande templo
puritano.
Valor:
Existe o conceito “ideologia de gênero”?
Peter
Fry: Existe o conceito, em inglês, “gender ideology”.
Não é invenção brasileira. Em 1997, publicou-se um livro chamado “The Gender
Agenda”, da jornalista americana Dale O’Leary, que tratava desse tema na
perspectiva conservadora. O mais correto seria dizer que ideologia de gênero é
um conceito importado, hoje em voga no Brasil. Talvez porque a flexibilidade de
gênero, que cresce na sociedade, ainda assuste muita gente. Como reação,
tenta-se trabalhar com esse conceito em tom negativo.
Valor:
Em qual termo recai o tom negativo: em ideologia ou gênero?
Fry: Em ideologia, no sentido de que serviria para enganar as pessoas.
Comumente ouvimos críticas a alguma coisa inconsistente, ou questionável, como
sendo “pura ideologia”. Daí junta-se a ideia de gênero para reforçar que toda
discussão nesse campo é enganação. Esse é um fenômeno muito interessante de ser
analisado.
Valor:
Por quê?
Fry: Porque o mundo mudou dramaticamente. Vou contar um caso que se passou
comigo: em 1968, antes de chegar ao Brasil, conheci amigos em Lisboa e juntos
subimos num barco para navegar o rio Tejo. No meio do rio, um desses amigos
anunciou que iria mudar de sexo. Fiquei chocado, nunca tinha ouvido tal
afirmação. Perguntei: “Por que você não vive como homossexual, sem ter que
passar por uma cirurgia?”. Na época, ainda nem se usava o termo gay. “Porque
não sou homossexual. Sou mulher e vou viver como mulher”, ele reagiu. Ao voltar
para a Inglaterra, esse amigo me deu um daqueles pratos portugueses de
porcelana. Mais tarde, escrevi com meu português uma carta de agradecimento “pela
linda prata”. E tive como resposta: “Se você vai chamar o seu prato de ‘linda
prata’, então posso mudar o meu sexo”. Conto essa história porque, nos anos
1960, ainda era rara a mudança de sexo, embora travestis existissem há muito
tempo, como homens vestidos de mulher, presentes no teatro de Shakespeare. De
lá para cá, muita coisa mudou.
“Eu me pergunto como manifestações que hoje
seriam rotuladas de ‘ideologia de gênero’ [como o grupo Dzi Croquettes]
aconteceram na ditadura”, diz Fry — Foto: Agência O Globo
Valor:
Naquele momento, como a antropologia via essa questão?
Fry: A antropologia já vinha fazendo a distinção entre sexo biológico e os
papéis sociais relacionados ao sexo. Ao começar a escrever sobre esse tema, no
início dos anos 1980, eu usava a expressão papéis sexuais. Só mais tarde
incorporamos a ideia de gênero, passando a distinguir os dois níveis, um
biológico, outro social. A coisa complicou quando as pessoas passaram a
questionar a existência de apenas dois sexos. O binarismo sexual foi colocado
em xeque, tornando esse campo mais complexo. Hoje um jovem olha para o mundo e
entende que teve um sexo ao nascer, mas não necessariamente precisa se sentir
bem dentro de determinado gênero. Na minha adolescência na Inglaterra, havia
três opções: ser heterossexual, homossexual vivendo no armário ou me tornar uma
“b... louca” marginalizada. Hoje o jovem pode recusar a visão binária, pode não
querer ser hétero, pode misturar masculino e feminino, enfim, tudo isso não
existia há 50, 60 anos.
Valor:
Como foi descobrir-se homossexual na Inglaterra?
Fry: Até 1967, atos homossexuais eram crime em meu país. Ou seja, aos 26
anos, eu era um criminoso por definição legal. Pouco depois vim para o Brasil
com sentimento de alívio, afinal não tinha leis restritivas. Aqui assumi minha
orientação sexual. Toda a luta na Inglaterra se deu pela descriminalização,
conseguida parcialmente - a lei passou a tolerar atos homossexuais consentidos
entre pessoas acima de 21 anos. Meus amigos ingleses, gays como eu, viviam num
mundo paralelo - nossos guetos, nossas boates etc. E havia no meio
universitário um etos crítico ao mundo heterossexual, colocando em xeque aquela
família-modelo, chata e puritana. Nós nos assumíamos como pessoas diferentes,
mas nem por isso inferiores. No Brasil, meus amigos gays eram quase sempre
socialistas que falavam mal da propriedade privada, vivendo em lugares onde não
havia sofás, tudo era deixado no chão e comia-se muito arroz integral. A gente
ria disso. Creio que o sarcasmo era nossa sobrevivência, nossa saúde mental.
Valor:
Foi complicado ser militante gay na ditadura militar no Brasil?
Fry: Fácil não foi, mas houve situações curiosas. Quando “Lampião”, nosso
jornalzinho gay, começou a circular, em 1978, a mensagem que passávamos para a
sociedade era: “Deixem-nos em paz”. Queríamos que as pessoas saíssem do armário
sem ter vergonha da sua sexualidade. Queríamos desfrutar de cidadania plena.
Nossa luta era contra o preconceito, e a palavra homofobia não havia entrado em
cena. Foi um tempo de manifestações artísticas interessantíssimas, como a trupe
de teatro Dzi Croquettes, liderada pelo [coreógrafo americano] Lennie Dale
[1934-1994]. No palco, eram homens barbudos vestidos de forma ousada,
misturando gêneros. A peça começava assim: “Nós não somos homens. Tampouco
mulheres. Somos gente computada. Iguais a vocês”. Além de temperar com malícia
o termo “computada”, invocava essa ideia de tecnologia quando nem havia os PCs!
Vídeo
https://www.youtube.com/watch?v=hJ3Ib_XGXOc
- Dzi Croquettes
Valor:
“Lampião” reforçou a imprensa contrária ao regime com seu time de intelectuais
gays, gente de grande força intelectual. Vocês ficaram no gueto ou permearam a
sociedade?
Fry: Para ser franco, nem “Lampião”, nem as Dzi Croquettes permearam a
sociedade. Quem permeou, de fato, foram os Secos & Molhados, grupo musical
estrelado por Ney Matogrosso. Até hoje não entendi como conseguiram ir tão
longe e como fizeram tanto sucesso sem sofrer nas mãos da ditadura.
“Os
pesquisadores não estão ouvindo. Fala-se em ‘lugar da fala’, mas o que está
faltando à antropologia é o ‘lugar da escuta’”, afirma Peter Fry
Valor:
Mas Lennie Dale chegou a dançar no programa da apresentadora Hebe Camargo
(1929-2012). Nada mais família do que isso.
Fry: Lennie dançava no programa da Hebe, e o Brasil se deleitava! Eu me
pergunto como manifestações que hoje seriam rotuladas de “ideologia de gênero”
aconteceram na ditadura, contando com a simpatia de amplas camadas da
sociedade. A meu ver, por alguma razão que ainda precisamos investigar, a
ditadura deixou rolar as Dzi Croquettes e os Secos & Molhados. Mas quis
enquadrar o “Lampião”, talvez porque nos visse como subversivos. Esta foi uma
operação que partiu do então ministro da Justiça do governo Geisel [1974-1979],
Armando Falcão, sob a alegação de que o jornal violava a moral e os bons
costumes. Fomos fichados, depois envolvidos num inquérito que acabou engavetado
pelo próprio regime. Naqueles mesmos anos 1970, se de um lado havia Dzi
Croquettes, de outro havia a TFP - Tradição, Família e Propriedade -,
organização ultraconservadora, que saía às ruas com estandartes. Foi um período
contrastado.
Valor:
Na sua opinião, a ditadura militar fez vistas grossas para aquele ativismo
libertário?
Fry: Pode até ser, mas, de fato, contradições são a cara do Brasil. Quando
me mudei para cá, sabia que iria viver num país muito católico. Em conversas,
as pessoas manifestavam curiosidade por homens que tinham sinais afeminados.
Perguntavam se era ou não era. Descobri que a região dos gays ficava no centro
de São Paulo, nos arredores da avenida São Luís. E me impressionei com a
tranquilidade da área. Caminhava por lá, não tinha medo. Na Unicamp, já com
“Lampião” nas bancas, senti que ser gay oferecia mais vantagem do que
desvantagem. As pessoas poderiam até falar mal de mim pelas costas, mas nunca
me afrontaram. Aquele ativismo me possibilitou uma forma de atuação política,
porque, como estrangeiro, não entendia as várias facções de oposição ao regime
e o que elas representavam. Tudo para dizer que o Brasil dos anos 60, 70, me
surpreendeu. Parecia bem menos machista e convencional do que a minha velha
Inglaterra. Havia menos puritanismo por um lado, mas muita hipocrisia por
outro, pois as pessoas casadas levavam a vida com seus amantes. Eu tinha amigas
que me diziam: “Peter, não é fácil ter um namorado fora do casamento, temos
culpa...”. E eu ria: aquilo era nada perto da culpa protestante inglesa.
Valor:
Como vocês, primeiros ativistas gays, eram vistos pelos militantes marxistas?
Fry: Tanto os gays, quanto as feministas e as lideranças negras, acabamos
mostrando aos marxistas que as nossas causas não eram menores e nem tudo se
limitava à luta de classes. Também não éramos diversionistas ou burgueses. O
movimento gay queria acabar com o preconceito e deixar as pessoas confortáveis
em sua sexualidade. O movimento feminista lutava pela emancipação das mulheres,
tanto que precisou remover obstáculos legais, contando com formidáveis
advogadas. E o movimento negro veio com ênfase no racismo, na discriminação, na
injustiça. Esses três movimentos se aproximaram no combate à inferiorização social.
Tanto que “Lampião” era muito lido fora da comunidade gay. Mais adiante, isso
tudo ficaria explícito com o livro do [Fernando] Gabeira.
Vídeo
https://www.youtube.com/watch?v=vDvjecJOpa4
- Secos e Molhados – O vira
Valor:
O senhor fala de “O que É Isso, Companheiro?” (1979). Foi um divisor de águas?
Fry: Foi um livro importante. Revelou as dificuldades internas da esquerda
em lidar com questões identitárias, no campo da sexualidade. O que vejo hoje é
um processo inverso: agora as pessoas prestam mais atenção à pauta identitária
do que aos problemas de classe tout court, como a terrível desigualdade
brasileira. No Rio estamos convivendo com uma polícia que se diz disposta a
eliminar o tráfico. Mas o tráfico mora onde? Nas favelas. Quem mora nas
favelas? Pessoas pobres, em geral, trabalhadores. Virou moda falar em genocídio
negro e até entendo o movimento negro abraçar essa ideia, mas algo precisa ser esclarecido.
Genocídio é luta contra um “genos”, um povo, uma raça, uma tribo, uma etnia.
Hitler foi atrás dos judeus, de seus filhos, netos, ricos ou pobres, atrás de
todos. Foi um genocídio. Em Ruanda, os tutsis foram atacados pelos hutus em
tudo quanto era lugar. Foi um genocídio. Aqui se trata de ações policiais
focalizadas nas áreas de maior pobreza, onde a grande maioria é negra.
Valor:
De toda forma, estamos diante de uma necropolítica. Concorda?
Fry: Sem dúvida. Isso acontece porque o Brasil não legaliza a maconha. Se
legalizasse, não haveria esse tráfico, nem essa matança, e a polícia poderia se
envolver com a segurança dos cidadãos sem precisar invadir favelas. Inclusive a
polícia morreria menos.
Valor: O senhor acredita que o discurso oficial
contra a “ideologia de gênero” está ganhando força no seio da sociedade?
Fry: O que está sendo dito emana dos palácios de Brasília. Lá as pessoas
pregam a volta a um mundo que não existe mais. Não sei, de fato, quanto apoio a
população brasileira dá a esse tipo de discurso. Gostaria, ou melhor, pediria
que institutos de opinião pública incorporem perguntas dessa natureza em suas
pesquisas. Inclusive porque parece haver uma desconexão entre o mundo em que
vivemos e o que ecoa dos palácios de Brasília. Tomo por mim: não vivo me
deparando com homofóbicos. Nem os encontro. Me sento na praia e fico me perguntando
se toda aquela gente é contra mim porque sou gay. Claro que não! Não posso
imaginar que o Brasil, que sempre foi tolerante, de repente tenha se convertido
em templo puritano.
Valor:
Qual o melhor caminho para o país: seguir travando batalhas no campo moral ou
assegurar direitos já conquistados?
Fry: Essa resposta não é simples. Volto à Inglaterra: foi David Cameron,
primeiro-ministro conservador, quem colocou na pauta do Parlamento uma lei
autorizando o casamento entre pessoas do mesmo sexo, depois aprovada por ampla
maioria. Quer dizer, o país que criminalizara a homossexualidade até a década
de 1960, meio século depois legalizava o “same-sex marriage”. Esse processo
passou pelo Parlamento, dando à lei legitimidade. Com ela a Inglaterra mudou da
água para o vinho. Eu mesmo, que criticara a luta pelo casamento gay por achar
que reproduzia modelos antigos, mudei ao ver que meus amigos ingleses
casaram-se e se sentiam bem. A Inglaterra é um dos lugares mais tolerantes que
conheço, onde a homossexualidade deixou de ser assunto! No Brasil o casamento
gay não passou pelo Congresso. Houve decisão ex cathedra do Supremo Tribunal
Federal em 2011, assim como para a criminalização da homofobia em 2019. Nas
duas situações, a Suprema Corte, cuja missão é defender a Constituição,
precisou legislar. Isso faz diferença! Esses temas deveriam passar por amplo
debate no país, ao longo do qual cada deputado teria que falar com eleitores do
seu reduto, depois voltar ao parlamento e, ao
final do processo, a decisão teria uma legitimidade e uma adesão muito mais
explícitas. São questões importantes demais para ficar circunscritas a
movimentos sociais em geral pequenos, redes de advogados e um grupo de 11
ministros. Por isso, espero que um dia o Brasil venha a ter o voto distrital.
Valor:
A guinada conservadora no Brasil é essencialmente religiosa?
Fry: Não diria isso. A Igreja Anglicana no Brasil desde o ano passado
celebra o casamento de pessoas do mesmo sexo. Precisamos saber o que vêm
fazendo os batistas, os metodistas, enfim, conhecer as diferentes denominações.
Mesmo entre os pentecostais há igrejas inclusivas, acolhendo gays. Claro, as
vozes mais estridentes desse mundo são as de líderes de igrejas evangélicas.
Mas não sei se as visões desses senhores refletem o sentimento da maior parte
da sociedade. Insisto: precisamos analisar melhor os dados. Ataques aos
terreiros de umbanda e candomblé, onde gays sempre tiveram espaço, não são
todos de responsabilidade dos pentecostais. Claro, os homofóbicos devem estar
se sentindo mais fortes, afinal, hoje nem é preciso arquitetar grandes
protestos. Basta ouvir as falas que emanam dos palácios de Brasília para que as
pessoas liberem seus velhos ódios. O enfrentamento no campo político-religioso,
no Brasil, não deverá ser contra o mundo LGBT, mas contra o aborto.
Valor:
Por quê?
Fry: Há um ponto de intersecção das religiões cristãs nesse tema, e as
feministas não conseguiram encontrar as palavras certas para ampliar o debate.
Elas se dizem “a favor do aborto”, mas são palavras erradas, porque ninguém é a
favor do aborto. Ele é um último recurso. Enquanto isso, mulheres pobres
continuam abortando de forma insegura e continuam morrendo.
Valor:
A crítica à ideologia de gênero tem a ver com o avanço do fundamentalismo no
mundo?
Fry: O problema no plano internacional chama-se populismo. Ele deságua
nessa onda ultranacionalista, fazendo com que os países se fechem e não queiram
construir projetos comuns. É a Inglaterra do Brexit. Sintomático que o governo
brasileiro tenha se aproximado não dos EUA, mas de Trump. Uma aproximação
direta, quase em caráter pessoal. Trump é um hipernacionalista. Suas batalhas
maiores serão contra os imigrantes e também contra o aborto.
Valor:
O senhor repete que é preciso estudar mais. Vêm novos desafios para a antropologia?
Fry: A antropologia precisa saber o que acontece. Pesquisadores devem
imergir em comunidades, viver dentro delas, como fazia a velha antropologia,
pois não adianta só colher dados em pequenas entrevistas. A questão é que os
pesquisadores não estão ouvindo. Fala-se em “lugar da fala”, mas o que está
faltando à antropologia é o “lugar da escuta”. Há anos, Vincent Crapanzano,
antropólogo americano, fez pesquisa numa aldeia de bôeres na África do Sul. Os
bôeres eram descendentes de colonos brancos calvinistas e formaram a base
social do apartheid. Crapanzano fez um livro fantástico chamado “Waiting”, onde
explicou a vida daquelas pessoas, ideias, costumes, cotidiano. Foi criticado,
afinal, por que ouvir gente que alimenta o apartheid? Graças a trabalhos como o
dele foi possível saber como aquele sistema terrível funcionava. Hoje
precisamos mergulhar nos bolsões do bolsonarismo, é fundamental para entender o
que se passa no Brasil. Quando cheguei aqui tive o prazer e a honra de me
tornar amigo de duas antropólogas da USP, as professoras Ruth Cardoso
[1930-2008] e Eunice Durham. Elas me influenciaram muito. E me diziam: “Peter,
a nossa esquerda leu mal o Brasil”. Verdade. Agora precisamos entender o Brasil
real, não o imaginado. Em vez de ficar discordando e lamentando, hora de sair
em campo.
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