Elisabeth Roudinesco lança o livro “Dicionário
Amoroso”: 89 verbetes que contam
a cultura da psicanálise em sua idade de ouro
— Foto: Divulgação
Para aclamada biógrafa de Freud, a psicanálise
manteve-se numa torre de marfim e perdeu terreno para outras terapias,
mas vai
sobreviver
Elisabeth Roudinesco agora fala de amor, de
cinema e de literatura, de Marilyn Monroe e de Sherlock Holmes, das grandes
capitais do mundo e até de sua infância. Ela continua a mesma historiadora da
psicanálise de sempre, celebrada pelas biografias de Sigmund Freud (1856-1939)
e Jacques Lacan (1901-1981), traduzidas em diversos países. Mas, no “Dicionário
Amoroso da Psicanálise” (tradução de André Telles, Zahar, 360 págs., R$ 89,90),
ela apresenta sua versão mais light de ser: livre, leve e solta, faz a volta ao
mundo em 89 verbetes que contam a cultura criada pela psicanálise em sua idade
de ouro.
Passeia por Londres, Paris, Budapeste, Zurique
e Nova York, seguindo os passos dos filhos rebeldes do pai da psicanálise, o
vienense Freud, morto há 80 anos. Viaja pelas correntes e interpretações da
psicanálise, tomando vários atalhos para percorrer filmes e livros que
transformaram a “revolução da vida íntima” em entretenimento, arte e
literatura.
“Optei por fazer a psicanálise circular em
todos os verbetes do livro. Como a psicanálise é um fenômeno urbano, a sua
cultura está por toda a parte nas cidades”, diz a professora na École Pratique
des Hautes Études em Paris.
Mas a geolocalização da psicanálise já não é
mais a mesma dos tempos em que Freud e Sándor Ferenczi (1873-1933), um dos seus
mais próximos colaboradores, queriam fazer de Budapeste a capital do movimento
depois da Primeira Guerra. “Um era um cientista, inventor de uma teoria; o
outro, um terapeuta a serviço do paciente.” Paris chegou a ser a capital
mundial da psicanálise, cabendo a Buenos Aires o rótulo de “primeira potência
psicanalítica do continente americano”.
Elisabeth escreve um verbete sobre cidades
brasileiras como o Rio (foto) no livro: citação de Stefan Zweig
e o que disse
sobre o entendimento entre pessoas de classes, raças, religiões e opiniões
diferentes
— Foto: Marcelo Regua/Agência O Globo
“Nunca vi um psicanalista dançar tango”,
comenta num dos verbetes, sempre escritos na primeira pessoa. Mas ela vê uma
relação bizarra entre Marilyn Monroe e seu estranho psicanalista, Ralph Greenson,
que jamais se recuperou do suposto suicídio da paciente.
Tudo isso é história, reconhece. Hoje a
psicanálise perdeu prestígio, especialmente na Europa, onde as grandes editoras
nem editam mais os seus teóricos. Por quê? “Para resumir, é nossa época, o
triunfo dos psicotrópicos e as outras ofertas terapêuticas”, diz a escritora de
75 anos.
Valor: No livro, a senhora fala de uma época de ouro, mas o prestígio da
psicanálise está em declínio há décadas. Tem a ver com a exigência social da
performance e a exibição da intimidade nas redes sociais?
Elisabeth
Roudinesco: É mais complexo. A primeira causa é o
declínio da psiquiatria dinâmica, quer dizer, a psiquiatria de hoje é dominada
exclusivamente pela química, pelos psicotrópicos que fizeram grandes
progressos. Há também uma enorme oferta de psicoterapias múltiplas, mais
rápidas, centradas sobre o consciente, sobre o bem-estar, sobre a felicidade. Em
terceiro lugar, uma parte dos psicanalistas, especialmente na França,
desertaram a batalha pela defesa da disciplina. Não renovaram a cura como
poderiam ter feito e como as outras terapias fizeram. Na França,
principalmente, mantiveram-se numa espécie de torre de marfim.
Valor: O declínio da psicanálise é mais acentuado na França?
Elisabeth: De uma maneira geral é mais forte na Europa, nos países onde ela foi
mais sólida. Acho que os psicanalistas não compreenderam a evolução dos
comportamentos, foram hostis à transformação da família, aos homossexuais e,
com frequência, tornaram-se conservadores. Os psicanalistas não acompanharam a
grande virada da vida contemporânea. Na França, especialmente, são clínicos da
saúde mental, perderam o poder intelectual, não são mais publicados pelas
grandes editoras. O modo de acesso à psicanálise é pelos departamentos de
psicologia, e eles estão perdendo o poder nesses departamentos acadêmicos. Para
resumir, é nossa época, o triunfo dos psicotrópicos e as outras ofertas terapêuticas.
Valor: A senhora acha que as mudanças de comportamento ligadas à cultura
digital afetaram a psicanálise?
Elisabeth: Não creio. As redes sociais afetam todo o modo de pensar, não somente
a psicanálise. É a cultura da velocidade, do julgamento pessoal permanente, é
um problema para todo o saber.
Valor: O avanço da inteligência artificial e os algoritmos dão a
possibilidade de um controle de populações inteiras com a concordância das
pessoas. Como a psicanálise pode navegar nesse universo?
Elisabeth: Sou cética em relação a isso, a esse tipo de análise. Não acho que
muda tanto assim. Acho que há uma ilusão da tecnologia de querer controlar
tudo. Na realidade, não é assim. As pessoas expressam-se livremente nas redes
sociais, mas não acho que isso guia o mundo. Não acho que a tecnologia seja
ligada ao controle das populações. Acho que nós vivemos em sociedades
ocidentais muito despolitizadas, em que as reivindicações identitárias de
feministas, dos antigos colonizados, dos povos autóctones, todas legítimas,
tomaram a frente de reivindicações econômicas e sociais. Isso é um fenômeno
mundial, mas acho que não vai durar. Não creio que a tecnologia vá dominar o
mundo, as pessoas não são tão estúpidas para se deixar dominar assim.
“Os psicanalistas foram hostis à transformação da família, aos
homossexuais, e (...) tornaram-se conservadores”
Valor: Mas já vimos manipulação de eleições, disseminação de “fake news”...
Elisabeth: É verdade que no momento temos o populismo, e quando os povos elegem
presidentes como [Jair] Bolsonaro e [Donaldo] Trump podemos nos desesperar. É
verdade que as massas elegem malucos, ditadores, mas isso não pode durar, é uma
conjuntura particular, com o aumento das desigualdades. Existe o desgosto do
mundo com a classe política. Isso dá a impressão de que o povo quer um poder
forte, como na Rússia, na China, nos EUA, mas é uma ilusão, isso não pode
durar. No Brasil, não creio que vamos voltar ao período da ditadura. O grande
perigo são as derivas na Amazônia, o fogo. Atualmente, com a globalização do poder,
não é possível a volta ao tempo da ditadura.
Valor: A senhora escreveu sobre as cidades brasileiras e destacou os 136 tons
de pele dos brasileiros. Cita Stefan Zweig e o que ele disse sobre o bom
entendimento entre pessoas de classes, raças, religiões e opiniões diferentes.
Acha isso mesmo depois da última eleição presidencial?
Elisabeth: Creio que escreveria a mesma coisa após Bolsonaro eleito, mesmo que
ele seja um presidente apavorante. Foi eleito com uma maioria muito pequena
[Bolsonaro venceu com 55,13% dos votos válidos em relação a Fernando Haddad,
que teve 44,87%]. O mesmo aconteceu com Trump nos EUA. Portanto, também há
contrapoderes. Eu senti vir a eleição de Bolsonaro, ela está ligada à
despolitização de toda a esquerda brasileira. Para comparar com a França: eu
sou de esquerda e votei em [Emmanuel] Macron. Voto sempre pelos que serão
hostis à extrema-direita, na vida é preciso saber votar em candidatos com os
quais não estamos de acordo, mas é um voto contra coisas importantes. Acho que
os brasileiros não viram o perigo, os candidatos hostis a Bolsonaro deveriam
ter se reagrupados. Na Itália, uma aliança improvável contra [Matteo] Salvini
foi uma boa coisa., mesmo se não durar. Claro que a Europa não vai bem, Brexit
e coisas assim. Mas o pior é a despolitização.
Valor: O discurso do ódio é um subproduto das redes sociais e também da
política atual. Repito o título de um texto seu: Por que tanto ódio?
Elisabeth:
No “Dicionário Amoroso”, não fiz um verbete sobre o
ódio, mas fiz sobre os insultos. Acho que não podemos proibir as pessoas de se
expressarem, não é com a proibição que as coisas vão melhorar. Está em todo
lugar esse ódio, é um ódio aos políticos, à psicanálise, aos intelectuais, o
ódio às elites. Este é o ódio dos populistas.
Valor: Como a psicanálise pode navegar nesse mundo em que a cultura da
interioridade psicológica está em franco declínio?
Elisabeth: Existe uma interioridade exposta nas redes sociais. Acho que a
psicanálise vai sobreviver. Ela não terá o aspecto dominante e triunfante que
já teve, mas vai sobreviver. Não vai mais ter a posição dominante mas, em
revanche, os estudos históricos sobre Freud e a psicanálise estão em plena
expansão. Os psicanalistas ficam exasperados, porque quando alguma coisa vira
objeto da história é porque mais ou menos acabou. Mas eu tenho muito futuro.
Valor: Um dos verbetes do seu livro é sobre as mulheres. A França lançou uma
campanha contra assassinatos de mulheres que batem recordes em pleno 2019. Acha
que está no bom caminho?
Elisabeth: Nós entramos no século das mulheres. Elas vão conquistar, como os
homens, todos os poderes e vamos lutar cada vez mais contra o assassinato
delas, contra o assédio sexual. A única coisa que me incomoda no Me Too, é que
as confissões públicas não são a solução. Num primeiro momento, sim, exposição
da intimidade pode ser necessário mas tem de parar. Se não, os testemunhos vão
acusar não importa quem. A liberação da palavra foi importante, mas não pode
ser transformada em campanhas puritanas, que vão visar os homens escritores ou
tirar quadros de museus. Essas são derivas inaceitáveis.
Valor: Apesar de todas as críticas, o que ama na psicanálise neste momento?
Elisabeth: A cultura, a liberdade, a inteligência, a maneira como ela torna as
coisas mais inteligíveis. A cultura psicanalítica, a riqueza das cidades na
maneira como se apropriaram da psicanálise. Não gosto muito da psicanálise
atual na França, mas amo muito sua história.
Valor: A senhora faz uma geolocalização da psicanálise pelas cidades do
mundo, mas refere-se sempre ao passado. Paris ainda é a sua capital mundial?
Elisabeth: Era, mas não é mais. Não e não. Mas ela continua a ser a capital
mundial do debate de ideias, existe enorme interesse pela Revolução Francesa,
pelos grandes pensadores, mas os psicanalistas não têm posição dominante. A
Argentina, que era a capital da psicanálise para a América Latina, também não é
mais, acabo de vir do México, onde há muito interesse, acho que a psicanálise
no Brasil superou a da Argentina, existe estudo dessa disciplina em todas as
universidades brasileiras. A psicanálise hoje é multipolar, e a América Latina
ocupa um lugar importante.
Valor: Como a psicanálise pode se mover no universo atual de forma a se
manter como discurso e prática críticos?
Elisabeth:É preciso mudar tudo, todo o curso. É preciso fazer análises bem menos
longas, sessões bem mais longas, curas menos longas, ocupar todos os espaços
dominados pela psicoterapia, fazer curas face a face, curtas. É preciso mudar a
representação do mundo, parar de falar com jargões, se abrir e não ser tão
conservador em relação aos comportamentos.
Valor: E do ponto de vista do pensamento? Existe alguém que destacaria?
Elisabeth: Não, acabou isso. As pessoas que trabalham melhor sobre a psicanálise
não são psicanalistas, não há um pensador da psicanálise que ocupe uma posição
dominante e também não há muitos jovens nesse campo. Existe a Julia Kristeva,
mas ela faz literatura, tem [Slavoj] Zizek, mas ele é filósofo. Tem eu, que sou
historiadora. Não vejo uma expansão de grandes clínicos. Mas isso virá.
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Reportagem Por Helena Celestino — Para o Valor, do Rio
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