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As
posições pró-Sérvia de Peter Handke voltaram à baila com a atribuição do Nobel
da Literatura ao escritor austríaco JULIEN DE ROSA/EPA
Vários escritores vêm questionando a escolha da Academia Sueca e corre
já uma petição para que seja revogada a atribuição do prémio ao autor
austríaco.
O romancista bósnio-alemão Saša Stanišić, que recebeu na segunda-feira o
prestigiado prémio literário Deutsches Buchpreis pelo seu romance Herkunft
(Origem), usou o discurso de agradecimento para juntar a sua voz ao coro
de indignação que a
atribuição do Nobel da Literatura a Peter Handke, acusado de apoiar
a posição da Sérvia e do regime de Slobodan Milošević na guerra civil jugoslava,
está a levantar um pouco por todo o mundo. “Handke estragou o meu próprio
prémio”, lamentou o escritor, citado pela revista Der Spiegel, ao
público que assistia, em Frankfurt, à cerimónia de entrega deste galardão.
A “realidade” que Handke reivindica “é composta apenas por mentiras”,
acusa Stanišić, que nasceu em Višegrad, na Bósnia-Herzegovina, em 1978, e
chegou à Alemanha aos 14 anos, em 1992, como refugiado da guerra da Bósnia.
Descrevendo o seu romance agora premiado como representativo de “uma literatura
que não é cínica, nem falsa, e que não toma os seus leitores por estúpidos,
vendendo-lhes uma poética recoberta pela mentira”, o autor argumenta que Handke
“pretende não saber a verdade para servir uma falsidade, inventando contra os
factos, mas apresentando a a invenção como se fora um facto”.
No seu romance de estreia (2006), que foi publicado pela Quetzal em
2009, cujo título é Como o Soldado Conserta o Gramofone, Stanišić
aborda os massacres de civis e as violações perpetradas por milícias sérvias na
sua cidade natal. Uma realidade à qual aludiu na segunda-feira: “Tive a sorte
de escapar àquilo que Peter Handke não descreve nos seus textos.”
A escolha da Academia Sueca já motivou entretanto o lançamento de uma
petição no site change.org a exigir que seja revogada a
atribuição ao escritor austríaco do Nobel da Literatura de 2019. Assinada até
ao momento por cerca de 33 mil subscritores, a petição acusa Handke de ser “um
apologista” do dirigente
sérvio Slobodan Milošević, a quem o texto se refere como “o carniceiro dos
Balcãs”, e “responsável pela morte de centenas de milhares de pessoas inocentes
e pela violação de dezenas de milhares de mulheres e homens”.
O primeiro-ministro e líder socialista albanês Edi Rama publicou no site
Politico um texto intitulado Um gosto ignóbil em literatura, no
qual considera a escolha de Handke “um gesto chocante que deve perturbar tanto
o mundo político como o literário”. Lembrando que mesmo depois de terem
“surgido provas claríssimas dos crimes” do regime de Milošević, Handke “foi ao
ponto de acompanhar o
julgamento do ditador em Haia e de comparecer, mais tarde, no seu funeral”,
o governante albanês criticou a posição da Academia Sueca de pretender separar
as posições políticas do escritor da sua “qualidade artística” e das suas
“contribuições para a literatura”, argumentando que o apoio do dramaturgo ao
dirigente sérvio e a sua indiferença pelas “vítimas de limpeza étnica e
tortura” surgem na própria obra, tornando-a “profundamente política”.
E referindo especificamente a obra Uma viagem de Inverno aos rios
Danúbio, Save, Morawa e Drina ou Justiça para a Sérvia, de 1996, Rama
observa que “os sérvios que aparecem no livro são pessoas vulgares, pobres,
almas inocentes que dormem em caves sem aquecimento” e “comem couve e queijo
fresco”, defendendo que, ao focar-se no quotidiano destes sérvios, Handke, cuja
mãe era eslovena, “ignora a tragédia de outros grupos étnicos da região”,
reforçando a tese de Milošević de que “os cidadãos sérvios eram as vítimas, que
tinham de erguer-se em defesa da sua liberdade e dignidade”.
No seu artigo, o dirigente albanês censura ainda “o espantoso silêncio”
do novo Nobel da Literatura acerca do massacre
de Srebrenica, onde se estima que tenham sido assassinados, em Julho de 1995,
mais de oito mil bósnios muçulmanos. Críticas que não impedem Rama de
defender que Handke “deve ser lido, estudado e discutido”, mas que, diz,
justificariam que os académicos suecos não tivessem cometido “o erro
descuidado” de lhe atribuir o Nobel.
Entre os que têm vindo a exprimir o seu desagrado com esta escolha
contam-se também muitos escritores, quer a título pessoal, quer através de
organismos representativos, como o PEN America, que, citando a declaração
do júri sueco, afirmou rejeitar a ideia de que “um escritor que
persistentemente questionou [a veracidade] de crimes de guerra rigorosamente
documentados mereça ser celebrado pelo seu ‘engenho linguístico’”.
O ficcionista e jornalista anglo-indiano Hari Kunzru descreve
Handke como “um excelente escritor, que combina uma grande percepção com uma
chocante cegueira ética”. E acrescenta: “Mais do que nunca, precisamos
de intelectuais que promovam uma defesa robusta dos direitos humanos contra a
indiferença e o cinismo dos nossos líderes políticos, e Handke não é essa
pessoa.”
Já Salman Rushdie limitou-se a precisar que mantém o que escreveu
em 1999, quando elegeu Handke como um bom candidato a “imbecil do ano”. E o
filósofo esloveno Slavoj Žižek, crítico de longa data das posições do dramaturgo,
começa por lembrar que este pediu em 2014 o fim do Nobel da Literatura, a
pretexto de que seria “uma falsa canonização”, para depois sugerir que este
Nobel de 2019 lhe veio afinal dar razão. “A Suécia hoje é isto: um apologista
de crimes de guerra ganha um prémio Nobel enquanto o país participa no
assassinato de carácter de um verdadeiro herói dos nossos tempos, Julian
Assange”, defendeu Žižek, numa posição em que talvez já não seja seguido por
todos os que partilham as suas reservas a Handke.
Particularmente emotiva foi a reacção da autora eslovena Miha Mazzini.
“Alguns artistas vendem a sua alma humana por ideologias, como Hamsun e o
nazismo [Nobel da Literatura de 1920, o escritor norueguês Knut Hamsun veio a
apoiar o III Reich durante a Segunda Guerra Mundial], alguns por ódio, como
[Louis-Ferdinand] Céline e o seu raivoso anti-semitismo, alguns por dinheiro e
poder, como [Emir] Kusturica, mas aquele que mais me ofendeu foi Handke com a
sua ingenuidade perante o regime de Milošević”, defendeu. E acrescenta que
sentiu essa “naiveté” do escritor como um insulto pessoal. “Nunca
esquecerei esse Inverno quando a Jugoslávia estava a cair aos pedaços e não
havia nada nas prateleiras das lojas. Éramos uma família jovem, a minha filha
era bebé e estava muito frio: gastava o dia inteiro na bicha para o óleo para
aquecimento e à noite, quase gelada, lia o ensaio de Handke sobre a Jugoslávia,
onde ele dizia como me invejava: enquanto esses austríacos e alemães, esses
ocidentais, tinham sucumbido ao consumismo, nós, jugoslavos, tínhamos de fazer
bicha e lutar por tudo. Oh!, como estávamos próximos da natureza, quão menos
materialistas e mais espiritualizados éramos. Já nessa altura o achei total e
cruelmente absorvido na sua ingenuidade.”
Um rol de acusações às quais Handke vem há muito retorquindo que não
nega os crimes ocorridos durante os conflitos que sucederam à desagregação da
Jugoslávia, mas que procurou apenas inteirar-se do que acontecera sem se deixar
influenciar pelo que considera ser uma conspiração política e mediática para
atribuir aos sérvios toda a responsabilidade pelos horrores da guerra civil.
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Reportagem Por Luís Miguel
Queirós
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