Fernando Henrique Cardoso*
Há que se colocar um ponto final na dinâmica de polarização que tomou conta do país. Até o STF se deixou enredar nela: os juízes discutem e brigam pelo adjetivo
Há
dias nos quais escrever é um prazer. Nem sempre: hoje, por exemplo,
este artigo me custou bastante. Por quê? Cansaço de uma noite mal
dormida me fez sentir a velhice, o que em mim é raro. Mas há também
motivos que nada têm a ver comigo. Dá certo desalento voltar aos temas
que têm dominado o noticiário do cotidiano nacional: os enganos
repetitivos (na verdade as crenças) do governo atual; a morte absurda de crianças alvejadas à bala ; as árvores que queimam na Amazônia
e alhures, tanto por motivos cíclicos, como pela devastação criminosa
em busca de discutível lucro... E por aí vamos, de pequenas e grandes
tragédias à estagnação das ideias.
Por trás do “mesmismo”
do dia-a-dia, vão se formando nuvens um tanto menos habituais e que
podem trazer-nos maiores aborrecimentos. A mais difusa e também a mais
ameaçadora delas diz respeito ao “estado do mundo”. Desde que Kissinger
convenceu Nixon a normalizar a relação dos Estados Unidos
com a China e os chineses, levados por Deng Xiao-Ping, se dedicaram a
construir o “socialismo harmonioso “ (seja lá o que isso signifique), as
apreensões de uma nova guerra mundial sumiram do mapa. A antiga União
Soviética desabara, Cuba estava contida, a Coreia do Norte ameaçava mais
a do Sul do que o mundo, a guerra entre a índia e o Paquistão se
acalmara. Restava apenas o “Oriente Médio” e o norte da África como
palcos de guerra, com os americanos bombardeando e conquistando o
Iraque, a Europa fazendo o mesmo na Líbia. Crises que pareciam muito
longínquas de nós, brasileiros.
Dava a impressão de que a
“nova a ordem mundial”, por certo assimétrica, conteria suas desavenças
nos limites das Nações Unidas, com uma ou outra ação militar
“corretora”, sem abalar as estruturas internacionais de diálogo. São
elas que começam a se romper no atual decênio. As ideias representadas
por Trump
encontram eco na realidade de uma China que de “copiadora” passou a
criadora de novas tecnologias e até mesmo de uma Coreia do Norte, cujos
mísseis ameaçam chegar à costa do Pacífico da América do Norte. Sem
falar no renascimento da Rússia como potência militar que cobra seus
“direitos” de vassalagem, incorpora a Criméia, invade terras da Ucrânia e
produz temor nos nórdicos.
Neste novo quadro assistimos,
ao mesmo tempo, a uma verdadeira revolução nas técnicas e nas relações
produtivas. O mundo contemporâneo emprega cada vez mais tecnologias
poupadoras de mão de obra e criadoras de grandes volumes de bens e
serviços que se transformam em lucros nas mãos de poucos (inteligência
artificial, robôs, revoluções na microbiologia, novas técnicas agrícolas
e assim por diante). Em conjunto, elas permitem o prolongamento das
vidas humanas, oferecem pouco emprego e, dado o regime social
prevalecente, criam não mais “exércitos de reserva”, mas excedentes de
mão de obra dispensáveis para o aumento da produção. Em suma um mundo
bem diferente do sonho tanto dos liberais quanto dos marxistas.
Provavelmente é isso que, subconscientemente, está por trás a da reação “irracional” dos coletes amarelos na França,
da desconfiança generalizada quanto à democracia representativa, da
vontade de voltar ao isolamento, com o Brexit ou com a guerra comercial
de Trump. Enfim com a ascensão de novos pretensos “homens fortes” que,
pulando as instituições, voltariam a fazer o “bem do povo”.
Fossem
só razões ideológicas e já seria um momento tenso. Mas há mais: os
mercados financeiros mundiais começam a dar sinais preocupantes,
refletindo a inquietação política e, sobretudo, a diminuição da
produção, com a demanda fraca. Para responder à prolongada e profunda
crise de 2008, os bancos centrais dos países desenvolvidos reduziram os
juros dramaticamente e inventaram o “quantitative easing” (com injeções
maciças de dinheiro nas economias). Que fazer agora se uma nova crise se
apresentar, ainda que não tão grave como a anterior? Ora, os juros já
estão baixos (em muitos lugares, são negativos). E a situação fiscal dos
governos ricos não é de folga, limitando o arsenal de medidas para
estimular a economia. No Brasil, ainda é possível reduzir os juros, mas o
desaguisado das contas públicas deixa o Estado exaurido e sem
capacidade para “puxar” os investimentos. Os sinais de nova crise lá
fora se somam às dificuldades de sair dela aqui dentro.
É
neste contexto que se torna imperioso, como eu costumava dizer quando
exerci o governo, definir rumos. Mais do que isso: convencer o povo de
que os rumos propostos são bons para o país e para as massas, sobretudo,
para os mais pobres.
De uma coisa estou convencido: há que se colocar um ponto final na dinâmica de polarização que tomou conta do país. Até o STF
se deixou enredar nela: os juízes discutem e brigam pelo adjetivo,
dando ao país a impressão de que, uma vez mais, o formalismo vai se
impor à substância. Quando não parecem não se dar conta das repercussões
mais amplas das decisões tomadas.
Não nos esqueçamos de
que os presidentes que marcaram nossa história recente (falando só dos
que já estão mortos) agregaram, não dissolveram. Juscelino, mesmo
enfrentando duas sublevações militares (as revoltas de Jacareacanga e
Aragarças), pacificou o país e modernizou o setor produtivo e a
infraestrutura do Brasil, somando capital nacional e estrangeiro.
E
mesmo Vargas, apesar de ter chefiado um governo forte, repressivo
mesmo, e que teve seus momentos de tensão, soube incorporar as massas
urbanas e definir um rumo para a economia, nas condições da época.
Percebeu que a guerra se aproximava e, embora houvesse negociado com o
Eixo, terminou por juntar-se aos Aliados. Cobrou preço, entretanto: a
siderúrgica foi feita com empréstimos dos americanos..
Será
que estaremos condenados nas próximas eleições presidenciais a votar em
polos agarrados a ideologias mofadas? Ou teremos capacidade para unir o
centro democrático e progressista para retomar, com a vitória nas
urnas, o rumo de grandeza que o país necessita e merece.
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*Também conhecido como FHC, é um sociólogo, cientista político,
professor universitário, escritor e político brasileiro. Foi o 34º
presidente da República Federativa do Brasil entre 1995 e 2003.
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/06/opinion/1570319696_547480.html
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