Yuval Harari, historiador
israelense: “A revolução tecnológica mais importante do século XXI é a
capacidade de hackear
seres humanos; isso significa compreender os seres
humanos melhor do que eles compreendem a si mesmos”
— Foto: Ciaran
McCrickard/WEF
Historiador e filósofo, Yuval Harari diz que tecnologia vai
provocar choques econômicos
Disrupção tecnológica é uma
preocupação central do historiador israelense Yuval Harari: a combinação do
rápido avanço da biotecnologia e da inteligência artificial pode ser desastrosa
para grande parte da humanidade, diz. É preciso que a sociedade pense
seriamente e com rapidez sobre o tema. As consequências da atual inércia em
relação ao futuro, afirma, vão desde o colapso completo de países que não
conseguirão acompanhar a corrida protagonizada por algoritmos até a criação de
uma classe de humanos simplesmente “dispensável”, irrelevante social e
economicamente.
“A menos que criemos redes de
segurança mundiais para proteger os humanos contra os choques econômicos que a
IA [inteligência artificial] deverá provocar, países inteiros poderiam
desmoronar e o caos, violência e ondas de migração resultantes desestabilizariam
o mundo inteiro”, diz Harari, em entrevista, por e-mail, ao Valor.
Essas perspectivas sombrias e as
questões que as acompanham tiveram, curiosamente, grande receptividade no ninho
da tecnologia, o Vale do Silício, que ajudou a catapultar Harari, que não
possui celular, à condição de escritor e filósofo futurista best-seller. Mark
Zuckerberg, fundador do Facebook, incluiu “Sapiens, Uma Breve História da
Humanidade”, o primeiro título assinado pelo historiador, em um projeto para
promoção de leitura que montou em 2015. Bill Gates e o ex-presidente americano
Barack Obama também recomendaram a obra.
Professor de história na
Universidade Hebraica de Jerusalém, ele contabiliza hoje 20 milhões de
exemplares vendidos, traduzidos para mais de 50 idiomas. Atualmente trabalha em
um livro infantil sobre a história da humanidade. Tem uma agenda intensa de
palestras em diferentes países e pela primeira vez o Brasil entrou em seu
circuito. Harari chega ao país no início de novembro com uma programação que
passa por São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. No dia 6 estará na capital
paulista para o evento Cidadão Global, parceria do Valor com o Banco Santander
, para trocar ideias com o geógrafo americano Jared Diamond, autor, entre
outros, de “Armas, Germes e Aço”, que ele considera sua grande inspiração.
Em resenha para o “New York Times
Book Review” sobre a mais recente obra do historiador, “21 Lições para o Século
21”, Gates afirma que “seus três livros trabalham profundamente alguma versão
da mesma pergunta: O que dará sentido à nossa vida nas próximas décadas e
séculos?”.
Para Harari, a meditação é um dos
caminhos para buscar respostas e aprofundar a visão sobre si mesmo, o mundo e a
vida. Dedica à prática duas horas diariamente e, todo ano, faz um retiro
espiritual de 30 a 60 dias.
O historiador identifica no fato
de ser gay uma influência significativa em seu trabalho. Considera que a
tecnologia é ao mesmo tempo uma benção para a comunidade LGTB, por permitir que
ela se conecte, quanto uma grande ameaça, justamente por reunir os dados desse
público. Foi a partir de um site que ele conheceu, há 17 anos, Itzik Yahav, com
quem está casado e que é seu gerente.
Atualmente, afirma, estão em
desenvolvimento ferramentas de IA que monitoram os indivíduos a serviço de
governos ou corporações. “Mas podemos optar por desenvolver um tipo muito
diferente de ferramentas de IA, que monitore governos e corporações a serviços
dos indivíduos.” Para ele, isso é algo que os cidadãos podem e devem demandar.
A seguir, a entrevista.
Valor: O senhor sintetizou recentemente em uma equação alguns problemas
com os quais o mundo se depara hoje: conhecimento biológico multiplicado pela
capacidade de computação multiplicada pelos dados é igual à capacidade de
hackear os humanos. O que isso representa?
Yuval Harari: A revolução tecnológica mais importante do século XXI
é a capacidade de hackear seres humanos. Hackear seres humanos significa
compreender os seres humanos melhor do que eles compreendem a si mesmos. Para
isso, você precisa de muito conhecimento biológico, de muitos dados e de muita
potência de computação. Até hoje, ninguém conseguiu fazer isso. Nem na Alemanha
nazista nem na União Soviética, o governo conseguiu saber o que cada pessoa
pensava ou sentia. Mas, em breve, alguns governos e empresas poderiam ter
conhecimento biológico suficiente, dados suficientes e potência de computação
suficiente para monitorar todas as pessoas, o tempo todo, e saber o que cada um
de nós pensa ou sente. Uma vez que um governo ou uma empresa nos entenda melhor
do que nós mesmos nos entendemos, vai poder prever nossos sentimentos e
decisões, manipular nossos sentimentos e decisões e, cada vez mais, tomar
decisões em nosso nome. A capacidade de hackear humanos, é claro, pode ser
usada para bons propósitos - por exemplo, para prover uma assistência médica
muito melhor e mais barata para bilhões de pessoas. Mas também pode ser usada
para criar o pior regime totalitário na história humana. O regime vai saber não
apenas tudo o que você faz, mas também tudo o que você sente. Quando você vir
um líder na TV e se sentir revoltado, o regime vai saber. Quando você ler uma
propaganda oficial e pensar que se trata de papo-furado - o regime vai saber. O
regime vai saber o que as pessoas escondem delas próprias. Por exemplo, o
regime vai saber que um garoto de 15 anos é homossexual antes mesmo que ele
saiba isso. Mesmo se evitarmos tais regimes autoritários, ainda vamos precisar
lidar com uma passagem gradual da autoridade dos humanos para os algoritmos. Hoje,
já contamos com o algoritmo do Facebook para nos dizer quais são as novidades e
o algoritmo do Google para nos dizer o que é verdade, enquanto a Amazon nos diz
o que comprar e o Netflix nos diz o que assistir. À medida que os algoritmos
passam a nos conhecer melhor do que nós mesmos, em algum momento eles vão nos
dizer o que estudar, onde trabalhar, com quem nos casar e em quem votar.
Valor: A ruptura provocada pela tecnologia vai favorecer algum tipo de
sistema político? Por que o senhor acha que a realidade possivelmente iria
superar a distopia imaginada por George Orwell como mencionou recentemente?
Harari: No século XX, a democracia derrotou a ditadura porque a
democracia era melhor no processamento de dados e na tomada de decisões. O
conflito entre a democracia e a ditadura não era apenas um conflito entre
sistemas éticos diferentes, mas um conflito entre métodos diferentes de
processamento de dados e de tomada de decisões. A democracia distribui
informações e o poder de tomar de decisões entre muitas pessoas e instituições,
enquanto a ditadura concentra as informações e o poder em um só lugar. Dada a
tecnologia do século XX, era ineficiente concentrar tanta informação e poder em
um só lugar. Ninguém tinha a capacidade de processar todas essas informações
com a rapidez suficiente e tomar as decisões certas. Isso é parte do motivo
pelo qual a União Soviética tomou decisões bem piores do que os Estados Unidos
e pelo qual a economia soviética ficou muito atrás da americana. Em breve, no
entanto, a inteligência artificial [IA] vai tornar possível administrar enormes
volumes de informações centralmente. Na verdade, a IA torna sistemas
centralizados mais eficientes do que sistemas difusos. Consequentemente, a
principal desvantagem dos regimes autoritários no século XX - a tentativa de
concentrar todas as informações em um só lugar - poderia se tornar uma grande vantagem
no século XXI. Naturalmente, a democracia ainda tem uma grande vantagem em
relação à ditadura, a saber, sua moderação e flexibilidade. Não importa até que
ponto a IA avance, nunca vai ser perfeita. Até os melhores sistemas podem
cometer erros. Quando um ditador comete um erro, ele normalmente se recusa a
admitir e a tentar algo diferente. Os ditadores reagem aos erros culpando os
demais e exigindo mais poder para si. Os sistemas democráticos estão muito mais
dispostos a admitir seus erros e a mudar de rumo. É por isso que no longo prazo
as democracias normalmente funcionam melhor do que as ditaduras. A esperança é
que a democracia seja flexível o suficiente para se adaptar às novas realidades
tecnológicas do século XXI.
Valor: De que forma o ambiente mundial, com o crescente populismo,
guerra comercial e conflitos políticos, influencia as decisões necessárias para
evitar a desigualdade cada vez maior decorrente da ruptura provocada pela
tecnologia?
Harari: Populismo, guerras comerciais e tensões internacionais vão,
infelizmente, diminuir a capacidade da humanidade de lidar com os choques da
revolução da IA. A automação provavelmente vai aumentar imensamente a
desigualdade mundial. Isso vai criar uma nova riqueza enorme em centros de alta
tecnologia, como o Vale do Silício, enquanto os piores impactos vão ser
sentidos em países em desenvolvimento como Honduras. Vão existir mais empregos
para engenheiros de software na Califórnia, mas menos empregos para motoristas
de caminhão e trabalhadores têxteis em Honduras. Será que os governos
americanos vão elevar os impostos sobre os gigantes da alta tecnologia no Vale
do Silício para ajudar ou para recapacitar os desempregados hondurenhos? É
extremamente improvável. Atualmente temos uma economia global, mas a política
ainda é muito nacional. A menos que criemos redes de segurança mundiais para
proteger os humanos contra os choques econômicos que a IA deverá provocar,
países inteiros poderiam desmoronar e o caos, violência e ondas de migração
resultantes desestabilizariam o mundo inteiro.
Valor: Como seria possível definir limites para o uso de dados? A
erosão da privacidade é inevitável para o progresso das tecnologias?
Harari: Não. A mesma tecnologia pode ser usada de diferentes
formas. Atualmente, criamos ferramentas de IA a serviço de governos e empresas
para monitorar indivíduos. Essas ferramentas corroem a privacidade individual e
dão poder às empresas e governos. Mas podemos decidir criar tipos bem
diferentes de ferramentas de IA a serviço dos indivíduos para monitorar
governos e empresas. Essas ferramentas vão proteger os indivíduos contra a
manipulação pelas empresas e vão garantir que autoridades governamentais não
sejam subornadas ou indiquem parentes para empregos lucrativos. Isso é algo que
os cidadãos podem e deveriam exigir.
Valor: Em “Sapiens”, o senhor atribui a cooperação flexível e coletiva
como um fator que distingue os humanos dos animais. Por que se tornou mais
difícil fazer isso hoje em escala mundial?
Harari: Apesar da recente onda de isolacionismo nacionalista, a
humanidade hoje ainda age de forma mais cooperativa do que nunca. Basta ver
nossa rede de comércio internacional. Não havia nada do tipo na época de
Colombo ou Jesus. Ou ver a Copa do Mundo de futebol. Há mil anos era
absolutamente impossível trazer pessoas de França, Brasil, Japão e Egito para
jogar partidas na Rússia - e, mesmo se você conseguisse de alguma forma
levá-las para lá, elas nunca concordariam em regras comuns. Então, sim, as diferentes
equipes ainda tentam superar umas às outras e alguns torcedores briguentos
algumas vezes recorrem à violência, mas, no cômputo geral, é uma exibição
impressionante de unidade e harmonia humana.
Valor: Como as pessoas vão sobreviver em um mundo no qual a IA esteja
disseminada e os algoritmos ditem as decisões? Que habilidades e conhecimento serão necessários?
Harari: As habilidades mais importantes vão ser o autoconhecimento
e a flexibilidade. Vamos precisar conhecer nossas próprias mentes muito bem
para não sermos manipulados pelas empresas e governos que tentam constantemente
nos hackear. E vamos precisar nos reinventar indefinidamente ao longo de nossas
vidas, para nos ajustar ao rápido progresso da tecnologia e às mudanças no
mercado de trabalho. Conhecer sua própria mente e treiná-la para ser flexível
são tarefas que você não pode terceirizar a ninguém. Isso exige muito tempo e
empenho. Há muitos métodos para fazer isso. Algumas pessoas fazem terapia,
outras vão escalar montanhas, algumas pintam, outras fazem tai chi. Eu, pessoalmente,
pratico a meditação vipassana (www.brdhamma.org/pt-br/ .), que tem foco em
perceber a natureza transitória de todos os fenômenos e a necessidade de
aceitar as mudanças inevitáveis. Medito duas horas por dia e todos os anos faço
um longo retiro de 30 ou 60 dias. Diferentes métodos podem funcionar melhor
para diferentes pessoas. Seja qual for o método que funcione para você, é
importante investir tempo e energia nele, porque estamos ficando sem tempo.
Enquanto você lê isto, muitas empresas e governos estão tentando hackear você
e, se eles conseguirem lhe conhecer melhor do que você mesmo, você vai perder o
controle sobre sua vida.
Valor: Há cenários que possam nos deixar mais otimistas?
Harari: Sim. Há muitos cenários otimistas. O melhor cenário é que a
IA e a biotecnologia liberem todos os humanos do fardo das doenças e do trabalho
extenuante e permitam que todos explorem e desenvolvam seu potencial pleno. A
inteligência artificial de fato vai eliminar muitos empregos, mas os lucros
resultantes seriam usados para proporcionar serviços básicos gratuitos a todos
e para permitir a todos a oportunidade de seguir seus sonhos, seja no campo das
artes, dos esportes, da religião ou do aperfeiçoamento ou criação de
comunidades. A tecnologia de vigilância de ponta seria usada para espionar não
os cidadãos, mas o governo, de forma a garantir que não houvesse corrupção.
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