NÍLSON SOUZA*
Acompanhei com atenção o noticiário em
torno da canonização da freira baiana Maria Rita de Sousa Brito Lopes
Pontes, agora Santa Dulce dos Pobres, a primeira mulher nascida no
Brasil com tal reconhecimento depois que dois relatos de milagres a ela
atribuídos passaram pelo rigoroso exame do Vaticano. São dois casos de
cura de pacientes desenganados: o de uma mãe sergipana com forte
hemorragia e o de um maestro baiano com glaucoma irreversível. Ambos
estão vivos e recuperados para dar o seu testemunho de fé. Ainda assim, a
Igreja submeteu os episódios a três etapas de avaliação: uma análise de
peritos médicos, um parecer de teólogos e, finalmente, a aprovação
final do colégio de cardeais.
Critérios são critérios. É compreensível que, diante da
fragilidade física do ser humano, curas que desafiam a ciência sejam
valorizadas como providência divina. Mas penso que a freirinha
soteropolitana merecia a auréola muito mais por seu ativismo humanitário
do que propriamente pela recuperação dos enfermos referidos. Foram
milhares as pessoas atendidas por ela. Desde jovem, acolhia doentes
pobres na casa de seus pais e empenhava-se para que tivessem tratamento
adequado, para atenuar-lhes o sofrimento, mesmo que fosse apenas para
assegurar-lhes uma morte digna. Fez isso a vida toda. Liderou causas
filantrópicas, construiu hospitais, tornou-se uma referência de caridade
e amor desinteressado ao próximo. Renunciou a tudo para se dedicar aos
mais necessitados.
O milagre humano - considerando os seres instáveis que somos - me impressiona mais do que eventuais intervenções divinas.
E o termo eventual, no caso, não significa descrença.
Significa, apenas, que não tenho certeza se ocorreram ou não. Já as
ações virtuosas de irmã Dulce estão fartamente documentadas, sem
necessidade de peritagem. Milagres, na maioria dos casos, resultam muito
mais da nossa necessidade visceral de acreditar no que não entendemos
do que propriamente da ação de uma força superior. O poeta Mario
Quintana tratou do assunto com sua ironia contundente: "O milagre não é
dar vida ao corpo extinto,/ ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo.../
nem mudar água pura em vinho tinto.../ milagre é acreditarem nisso
tudo!"
O humor, a poesia e a tolerância também são milagres humanos.
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* Colunista da ZH
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=7fc7c1e98f349da4316fb93f0534aef8 17/10/2019
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