José de Souza Martins*
É um erro analisar o crescimento numérico dos
evangélicos em comparação com o decréscimo dos católicos como uma disputa
futebolística entre igrejas e motivação do Sínodo
As prováveis implicações sociais e religiosas
do Sínodo Pan-Amazônico, inaugurado pelo papa Francisco neste mês, em Roma,
pedem análises sociológicas apropriadas para compreender o que está
acontecendo. Não só e nem principalmente na Igreja Católica, mas na sociedade
subdesenvolvida que somos.
Há um conflito no âmago do Sínodo que se situa
no cenário relativamente novo das conflitividades sociais que já não são,
essencialmente, as das classes sociais, mas dos valores sociais.
O mundo conhecido se desmantela. Lucrar sem
contrapartida social e sem respeito pelo outro está no cerne das pobrezas do
mundo. O capitalismo deixou de existir na sua matriz clássica, a da ética do
lucro no marco da responsabilidade social de quem lucra. É hoje uma economia de
jogatina, que reúne executivos e ricaços na voracidade do ganho pelo ganho, com
a cumplicidade dos que usurparam a democracia de seus legítimos protagonistas.
O mundo que o Sínodo se propõe a decifrar e
vencer é o mundo da alienação contemporânea, a do homem desfigurado por essa
economia coisificadora de todos. O mundo em que, cada vez mais, a idolatria da
coisificação toma o lugar da fé. A Amazônia é o lugar do mundo em que o homem
criado à imagem e à semelhança de Deus, na concepção judaico-cristã, está mais
ameaçado. É onde o bem comum da natureza mediadora da revitalização da vida
virou propriedade e mercadoria para o bem de alguns e danação de todos.
É, pois, um imenso erro analisar o crescimento
numérico dos evangélicos nominais em comparação com o decréscimo numérico dos
católicos nominais como se fosse uma disputa futebolística entre igrejas e
fosse a motivação do Sínodo.
Pensamos o mundo em que vivemos sem a
consciência social de que, de fato, nele não vivemos. Tornamo-nos seres
adjetivos de um mundo que já não nos pertence. Um mundo em que as pessoas são
tratadas como seres descartáveis. Em que até mesmo cresce a degradação da
escravidão contemporânea: 25 milhões de trabalhadores em cativeiro, em 2016,
segundo a Organização Internacional do Trabalho. Um mundo de imensos
retrocessos em relação às grandes promessas e possibilidades do capitalismo que
emergiu da Segunda Guerra Mundial.
Estamos em face de uma grande disputa entre a
religiosidade e a forma da fé, de um lado, e a indiferença religiosa própria da
consciência coisificada e sem alternativa da sociedade moderna, a sociedade do
lucro pelo lucro. Uma questão em relação à qual a Igreja Católica é muito
consciente e autora de ação crítica desde, ao menos, o Concílio Vaticano II,
convocado por João XXII no final de 1961, há quase 60 anos.
A suposta disputa numérica entre católicos e
evangélicos só existe na mentalidade linear e viesada da cultura da
coisificação. A Igreja Católica de verdade cresceu qualitativamente no Brasil
inteiro e, também, na Amazônia, até pela conversão de católicos nominais ao
catolicismo encarnado e de doutrina, o catolicismo consciente.
Para compreender o catolicismo amazônico, suas
características e suas dificuldades, é essencial tomar em conta que a maior
celebração religiosa, católica, do país é a Festa do Círio de Nazaré, imensa,
popular e comovente. Tive oportunidade de participar dela há alguns anos. Desde
então, o número de participantes da Festa do Círio só tem crescido. Mais de 2
milhões de participantes na procissão principal, a de condução da berlinda da
santa de volta da catedral a sua basílica, em Belém, um rito sacrificial de
restituição e de reencontro.
Uma procissão que dura cerca de 12 horas, sob
sol inclemente, como se diz. Sem contar a procissão naval, de que também
participei num pequeno barco em que foi celebrada missa, como em vários outros
que acompanhavam a embarcação da Marinha que conduzia a santa num dos dias de procissão
da festa que se estende por mais de uma semana.
O aspecto principal do Sínodo é, portanto,
completamente outro. Desde o Concílio Vaticano II, o ecumenismo e a unidade dos
cristãos têm sido um norte de igrejas como a Católica, a Anglicana, a
Metodista, a Luterana. A unidade na diferença, como sublinhou o próprio papa na
abertura do Sínodo, a universalidade da fé encarnada. Uma volta à concepção libertadora
e emancipadora do Evangelho, a recusa de uma religiosidade de escravidão.
Essa causa é a do combate religioso e ético
contra a coisificação do ser humano na sociedade moderna, cujos ídolos são hoje
a mercadoria e o dinheiro. O catolicismo renovado pelo Concílio em nome de uma
revalorização cristã do ser humano e de uma humanização do homem no marco dos
valores evangélicos do reconhecimento do amor ao próximo e no respeito às
mediações que recolhem a gratuidade da natureza como dom.
------------------------
* José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros,
autor de "A Sociabilidade do Homem Simples" (Contexto).
Nenhum comentário:
Postar um comentário