sábado, 26 de outubro de 2019

Francis Fukuyama: políticos conservadores à la Trump não sabem governar


O cientista político Francis Fukuyama: 'Estou bastante preocupado com a política na América Latina porque, em geral, ela se tornou muito incoerente' (Djurdja Padejski/.)

Por este motivo, diz o cientista político em entrevista, líderes populistas como Jair Bolsonaro geralmente acabam sendo abandonados por seus eleitores

O americano Francis Fukuyama tornou-se uma celebridade acadêmica mundial quando publicou, há trinta anos, um artigo intitulado “O fim da história?”. A sua tese, que proclamou a derrota do comunismo e a supremacia da democracia liberal capitalista, virou um best-seller na década de 90. Na época, ele mencionou o então empresário Donald Trump como exemplo de pessoa que combinava ambição com desejo de reconhecimento social — o dínamo desse modelo. Mal suspeitava que a ambição de Trump um dia o levaria muito além. Foi por essa razão, aliás, que Fukuyama decidiu escrever o seu mais recente livro, Identidade: a Demanda por Dignidade e a Política do Ressentimento (em tradução livre do inglês), ainda sem previsão de lançamento no Brasil. Nele, o mentor de personalidades como a ex-­primeira-ministra britânica Margaret Thatcher e o ex-presidente americano Ronald Reagan afirma que a ascensão de líderes nacionalistas de direita como Trump está relacionada ao rancor de grupos que se consideram prejudicados pelo establishment. O livro foi publicado em setembro do ano passado, antes do desfecho das eleições no Brasil. Se ele fosse editado hoje, diz Fukuyama, o presidente Jair Bolsonaro estaria na lista dos populistas que têm em comum o perigoso estilo de liderança que desmerece as instituições. Em entrevista a VEJA de seu escritório na Universidade Stanford, na Califórnia, o cientista político também analisa a situação da América Latina e fala do aparente arrefecimento da onda de direita liberal.

O senhor incluiria Jair Bolsonaro nessa lista de líderes populistas? Bolsonaro é muito parecido com um europeu populista branco de direita, que se dirige a quem se sente desrespeitado. Ele fala sobre raça muito abertamente, sobre o Bolsa Família, que seria usado para beneficiar pessoas que não merecem, e daí por diante. Então, nesse sentido, está muito em linha com os novos populistas europeus. Todos eles têm em comum um estilo de liderança que rejeita as instituições. Bolsonaro também ataca as instituições para tentar deslegitimá-las, ataca a imprensa. Isso é muito ruim para a democracia. Dessa forma, Bolsonaro é muito parecido com Trump.

O que explica a ascensão desses líderes populistas em várias partes do mundo? Penso que muito do apoio ao populismo se baseia na crença de que as elites não respeitam pessoas comuns, de que as elites são corruptas e estão seguindo agendas próprias. Acho que essas são algumas das causas do ressentimento de parte das pessoas que não integram a elite. Os líderes populistas atraíram a atenção de grupos que sentiram que a sua dignidade estava sendo afrontada e depreciada. Na Hungria, por exemplo, o primeiro-ministro Viktor Orbán disse que o seu retorno ao poder marcava o sentimento da população de recuperar o país, a autoestima e o futuro. Muitos dos que votaram em Trump acreditavam que seria possível tornar os Estados Unidos um país “grande de novo”.

“A ascensão de Bolsonaro foi motivada por forças similares às que atuaram na Europa e nos Estados Unidos, mas também teve muito a ver com a corrupção e a desilusão em relação 
à classe política”

Como o senhor define “direita”? Não acho que exista um único princípio organizado. Uma das coisas que vêm acontecendo é que o conceito de conservador tem mudado, passando de uma definição baseada na ideologia econômica para uma que é crescentemente estabelecida pela identidade nacional. No século XXI, a lei estava a favor da economia de mercado, da liberdade individual, da desconfiança em relação às intervenções governamentais, mas cresce agora a ascensão da base de identidade dos movimentos conservadores. É o que temos testemunhado nos Estados Unidos, com a eleição do presidente Trump, e no Reino Unido, com o Brexit. No Brasil, é um pouco mais complicado, porque a ascensão do presidente Jair Bolsonaro foi motivada em parte por forças similares às que atuaram na Europa e nos Estados Unidos, mas também teve muito a ver com a corrupção e a desilusão em relação à classe política e, particularmente, com os escândalos de corrupção do PT.

Isso significa que eleitores que votam na direita hoje podem votar na esquerda amanhã? O problema para os políticos anti-establishment é que eles frequentemente não sabem como governar de maneira eficiente. As pessoas descobrem isso e rapidamente perdem o interesse neles. É o que pode acontecer com Bolsonaro.

Com o aumento da desigualdade social nos últimos anos, a esquerda, que sempre teve um discurso mais alinhado com essa causa, não deveria ganhar força? O aumento da desigualdade levou à perda de status social da classe trabalhadora em países desenvolvidos. Muitos perderam os postos de trabalho para a terceirização ou para a competição estrangeira. Isso tem se revelado num ressentimento em relação aos estrangeiros, mais do que em relação ao capitalismo, razão pela qual o populismo de direita em muitos lugares vem se saindo melhor que o populismo de esquerda. Se o problema fosse só sobre desigualdades econômicas, haveria uma grande guinada para a esquerda. Ocorre que há uma busca pela direita porque ela responde de um jeito mais claro que a esquerda.

Isso explica a queda da esquerda e a ascensão da direita em muitos países? Depende de qual país você está falando. Acredito que na Europa, e em alguma medida nos Estados Unidos, no início de 1960, a esquerda começou a focar grupos identitários específicos, como negros, mulheres, gays, lésbicas, deficientes, refugiados, e passou a se afastar da sua base tradicional, a classe trabalhadora, nesses países predominantemente branca, com membros do grupo étnico dominante. Penso que isso levou à percepção de que a esquerda não estava mais interessada nos trabalhadores brancos, não estava mais prestando atenção neles, o que contribuiu para que o populista de direita capitalizasse esse sentimento.

A democracia liberal, que preza as liberdades dos indivíduos, e a política identitária, que prioriza os direitos de grupos, são compatíveis? O problema é a política identitária baseada, por exemplo, em religião, raça e etnia. Não há como se comprometer com ela, porque tende a excluir pessoas que não são membros do grupo étnico ou religioso dominante. Mas há outras formas de identidade que são compatíveis com a democracia. Em particular, essa pode ter o que eu chamo de identidade cívica nacional, que é baseada em princípios democráticos em geral. Isso não só é compatível com a democracia como é de fato necessário para que ela funcione bem.

Em seu livro, o senhor diz que a esquerda populista sofreu um retrocesso na América Latina com a queda de Lula e dos Kirchner. No entanto, vemos partidos de esquerda, como ocorre na Argentina, ensaiar a volta ao poder. Por que isso está acontecendo? Estou bastante preocupado com a política na América Latina porque, em geral, ela se tornou muito incoerente. Houve uma ascensão da esquerda ao poder, com o PT, de Lula, e os Kirchner, seguidos por outros populistas como o boliviano Evo Morales, o equatoriano Rafael Correa e os venezuelanos Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Depois, ocorreu uma mudança, com pessoas mais conservadoras sendo eleitas, como Enrique Peña Nieto, no México, e Mauricio Macri, na Argentina. Mas agora essas pessoas estão tendo problemas. Macri parece que vai perder para um partido peronista revivido. Lenín Moreno, no Equador, está sendo atacado. Evo Morales pode ser reeleito na Bolívia. Então, a política na América Latina é muito confusa, muito perturbadora, porque não há direção clara sobre a região como um todo.

“A América Latina precisa de uma certa dose de estabilidade para ter crescimento econômico e uma coesão social. E isso não está acontecendo neste momento”

Como o senhor analisa os levantes populares na Venezuela, no Chile, no Peru, no Equador? Parece ser uma crise geral de legitimidade para muitos regimes diferentes, em que líderes eleitos são rapidamente atacados muitas vezes por fazer coisas que são necessárias, mas não necessariamente populares. A América Latina precisa de uma certa dose de estabilidade para ter crescimento econômico e uma coesão social. E isso não está acontecendo neste momento. A corrupção ainda é um grande problema. Na maior parte da América Latina, há pouca independência judiciária. E essa é uma das razões pelas quais existe corrupção. O Brasil é uma exceção, porque vem tendo um Judiciário bastante independente. Um fato positivo é que os cidadãos parecem estar revidando. Eles não estão dispostos a tolerar o mesmo nível de corrupção de vinte ou trinta anos atrás. E esse é o começo da solução.

Se as pessoas pudessem fazer uma escolha entre um bem-estar social sem democracia e uma democracia sem bem-estar social, o que elas escolheriam? Acho que em uma democracia viável tem de existir um Estado de bem-estar social e, virtualmente, em toda democracia moderna há isso em alguma medida. Nos Estados Unidos, o Estado de bem-estar social é menor do que em outras democracias, mas, apesar disso, é extenso. Não é possível tolerar formas extremas de desigualdade e ainda ter uma sociedade democrática. Então não se trata de Estado de bem­-estar social ou não. A questão é sobre quão extenso ele é, se é estável e se é possível ser bancado. Essas são as principais questões, e não tê-lo ou não.

A onda liberal de direita está se enfraquecendo? Existe uma reação em relação ao populismo. Você vê isso no Reino Unido, onde hoje há crescente apoio a um segundo referendo para o Brexit. Nos Estados Unidos, os democratas podem ir muito bem nas eleições no próximo ano, ganhar a Presidência de volta e talvez a Câmara dos Deputados. Acho que muito disso ainda está no ar. A questão é que vários desses populistas não sabem governar muito bem. Além disso, um bom grupo de países, incluindo os Estados Unidos, está realmente falando sobre a possibilidade de uma recessão global por causa da guerra comercial de Donald Trump.

Neste ano, seu artigo “O fim da história?” completou três décadas. Nesse período, o senhor proclamou a derrota do comunismo e a vitória da democracia liberal. Se pudesse reescrever esse artigo hoje, o que acrescentaria a ele? Essa é uma pergunta a que não posso responder de um modo simples. Tem sido um esforço reescrever “O fim da história?”. Quando usei a palavra “fim” no meu artigo, significava não um “desfecho”, mas um “objetivo”, porque Karl Marx havia sugerido que o fim da história seria o comunismo utópico. Mas sugeri, baseado em Friedrich Hegel, que o desenvolvimento resultou em um estado liberal. Muitas das críticas que recebi se fundamentaram nessa incompreensão. Nos últimos anos, escrevi um volume de séries chamado As Origens da Ordem Política e Ordem e Decadência Política. Esses livros introduzem esse conceito novo em que as democracias podem de fato andar para trás em termos de desenvolvimento de suas instituições.
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Publicado em VEJA de 30 de outubro de 2019, edição nº 2658

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