Para
presidente da GM na América do Sul, novas tecnologias mudaram
completamente a cara do setor e o carro autônomo já é quase uma
realidade
E
m meio à maior transformação de sua história - que passa por reaprender
a fazer automóveis e a transformar seu produto de um bem de alto valor
que fica boa parte do tempo na garagem a um bem de prestação de serviços
compartilhados -, a indústria automobilística busca novas receitas para
manter-se no rol das mais poderosas do mundo.
Dar
o salto necessário para a passagem do carro atual, à combustão e
poluente, para modelos elétricos e futuramente autônomos é a missão que
está na mesa de todos os executivos do setor. O Brasil ainda pode estar
distante de projetos locais nessa área, mas as empresas não querem
perder o bonde, sob risco de ficarem defasadas.
No
escritório de Carlos Zarlenga, presidente da General Motors América do
Sul, a tarefa diária é tentar liderar o processo de metamorfose digital
que tornará o automóvel uma espécie de celular gigante que carrega
pessoas. Mas a mudança, afirma, não assusta. “Não temos medo do mundo
digital”.
Líder
em vendas de automóveis e comerciais leves no País desde 2016 e
fabricante do Onix, o carro mais comprado por brasileiros há 50 meses
seguidos, a GM se empenha em ser a primeira a introduzir novas
tecnologias em seus veículos e a oferecer “uma jornada digital” aos
consumidores na hora da compra.
A
nova geração do seu líder de vendas, lançada no mês passado, chega com
várias inovações tecnológicas, como sistema que estaciona sem ajuda do
motorista, e alto índice de digitalização, como Wi-Fi a bordo.
Para
as fabricantes de veículos, a revolução digital ocorre simultaneamente
no processo produtivo, no veículo, no sistema de vendas e na relação com
os consumidores. Na opinião do presidente da GM, “quem ainda não tem
uma estratégia bem clara nesse sentido não vai conseguir ter liderança
de mercado.”
A
indústria brasileira vendeu de janeiro a setembro 1,716 milhão de
automóveis e comerciais leves. Quase 18% deles têm o slogan da
gravatinha da GM à frente. A montadora passou por sérias dificuldades no
início do ano, quando chegou a ameaçar sair do Brasil se não voltasse à
lucratividade – resultado que não deve conseguir neste ano, em boa
parte por causa da derrocada das exportações para a Argentina.
Zarlenga
comandou uma série de negociações com sindicatos de trabalhadores,
governos estaduais e municipais, fornecedores e revendedores e conseguiu
construir um plano que acalmou a matriz americana, que exigia urgência
nos resultados positivos. Ao fim desse processo, o grupo anunciou
investimentos de R$ 10 bilhões entre 2020 e 2024 para desenvolver e
produzir uma linha de veículos que chegarão ao País ainda mais
tecnológicos e digitais.
Série
A série de entrevistas Choque Digital será publicada semanalmente pelo Estadão
e mostrará os esforços de empresas de diversos setores para buscar
respostas para os desafios impostos pelas transformações digitais
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Como o sr. vê a transformação digital do setor automotivo e como a GM se insere no processo?
Em
minha opinião, a GM está liderando essa transformação. No primeiro
semestre do ano tivemos R$ 2,5 bilhões de vendas geradas no espaço
digital. A jornada do consumidor até a compra nasceu no ambiente
digital, na interação com mídias sociais, com sites, na forma como ele
nos contatou. É um valor muito importante das nossas vendas no período.
Qual é a estratégia do grupo nesse cenário de transformação?
Temos
quatro pilares. O primeiro é a interação com o consumidor em todas as
frentes. O segundo é o nosso carro. Nossos produtos estão 100%
conectados, têm Wi-Fi e OnStar (sistema que dá acesso direto a uma
central de serviços). O terceiro ponto é nossa cadeia de suprimentos e
nossa manufatura digital. O processo de automação que temos nas fábricas
em geral, com nosso novo portfólio de produtos, tem evoluído de forma
significativa. O processo atual de manufatura não tem nada a ver com o
anterior. A quarta parte é o que chamamos de aquisição de talento, ou
como trazemos pessoas para trabalhar na GM, que também tem um foco
digital muito importante. Por exemplo, a primeira entrevista é 100%
digital. O candidato interage primeiro com a plataforma digital e só
depois nós fazemos a avaliação.
Atualmente, 70% das nossas interações com clientes são por canais digitais”
Como tem sido para o setor automotivo em geral essa passagem da produção convencional para a digital?
É
uma transformação total da operação da empresa. Mas o que eu acho
importante, pelo menos no caso da GM, é que não sentimos que há uma
transformação acontecendo e que temos de participar dela. Nossa
avaliação é que nós estamos promovendo essa transformação. Estamos nessa
jornada digital há pelo menos quatro anos. Quase 90% das nossas
concessionárias têm showrooms digitais. Estamos indo para a segunda
geração do ambiente digital das concessionárias, e muitas empresas ainda
estão tentando entrar nisso.
Como a GM promove essa transformação?
Para
nós, o digital não é um tabu, é uma filosofia. O digital tem de ser um
meio para nos ajudar a ter relevância onde o consumidor quer comprar. No
passado, sem as ferramentas que temos hoje, tínhamos uma jornada
predefinida de consumo e, de algum jeito, era preciso encaixar o
consumidor nela. A partir do momento em que se pode fazer quase que uma
customização no relacionamento com o consumidor, a jornada é definida
por ele. Se o consumidor quer receber uma oferta de imediato, vai
receber; se quer ter mais dados sobre o produto, vai ter; se quer tirar
uma dúvida, será atendido.
Quem é
Carlos Zarlenga, 45 anos, assumiu o cargo de presidente da General Motors do Brasil em 2016. Um ano depois, foi alçado ao cargo de presidente da empresa no Mercosul e, em abril deste ano, ao comando da GM América do Sul. Nascido na Argentina, é graduado em Economia pela Universidad de Belgrano, em Buenos Aires. Antes do Brasil, atuou como vice-presidente e diretor financeiro da GM Coreia. Por 15 anos ocupou diversos cargos na General Electric na Europa, Ásia e Estados Unidos.
Na prática, como isso se dá?
Significa
que damos ao consumidor a oportunidade de ir à loja física comprar um
carro ou começar o processo no ambiente digital. A magia disso é que
conseguimos ser muito mais assertivos no que ele quer e na oferta que
vamos fazer. Se ele estiver em uma cidade pequena e procurar o Onix no
ambiente digital, automaticamente chegará à concessionária local e vai
saber o inventário que tem lá: opções de cores, de configuração, preço e
condições de pagamento. Esse processo nos leva a ter um nível de
engajamento muito maior. O consumidor não tem de se encaixar em um ciclo
que eu predeterminei, pois eu não sei qual é o ciclo dele. Ele pode até
mesmo fechar a oferta online para o carro que quer comprar. Toda a
jornada do consumidor é online. E isso tem ajudado muito no nosso
resultado de vendas e nossa liderança no mercado tem muito a ver com
esse processo. Quem não tem uma estratégia bem clara nesse sentido não
vai conseguir ter liderança de mercado.
No caso da produção, como tem sido essa jornada?
O
processo de produção hoje e o nível de automação, de robotização e de
interação das pessoas não têm absolutamente nada a ver com o passado.
Cada fábrica que temos aqui está basicamente na fronteira da tecnologia
de hoje. Claro que vai evoluir ainda mais. Mas, usando o Onix como
exemplo, o processo atual não tem um único passo igual ao de produção do
anterior. Por um lado, essa mudança resulta em um produto de maior
qualidade, mais barato e mais eficiente, o que é melhor para o
consumidor. Por outro, traz às vezes crescimento de volume de produção
sem crescimento de ocupação, de mão de obra. Tem essa dicotomia, mas
esse caminho tem de evoluir, não tem como parar. Produtividade é chave.
A mobilidade autônoma vai mudar o mundo de um jeito nunca visto antes. Eu diria que é o grande desafio da nossa época”
E na rede de concessionários?
Hoje
em dia, 90% da decisão de compra de um carro ocorre no espaço virtual. O
número de concessionárias que o cliente visita antes de fazer a compra
tem caído violentamente. Há casos em que ele visita uma única
concessionária. Estudo da consultoria McKinsey revela que, em 2010, o
consumidor visitava até sete concessionárias, independente de marca,
antes de decidir a compra. Hoje esse número é de menos de duas. Vários
clientes vão à concessionária já com o veículo comprado na nossa jornada
virtual. Só vai lá para assinar papéis e pegar o carro, ou seja, para
consolidar a última parte da compra, pois toda a negociação foi feita
100% no meio virtual.
Nesse modelo, o papel do concessionário será apenas de entregar o carro e fazer manutenção?
Ao
contrário, é ele que vende. Nós não partimos para a digitalização e o
concessionário continuou nas trevas. Tomamos o cuidado para que ele seja
tão digitalizado quanto nós. Os showrooms digitais da nossa rede
utilizam infraestrutura e tecnologia nossa, ou seja, interagem com
nossas ferramentas. O concessionário não fez uma estratégia digital e a
gente integrou. Ela nasceu aqui e ele adotou.
Como o consumidor identifica o novo carro digital?
A
revolução que está por vir é a maior que a indústria já teve. Nosso
grande investimento global no momento está em carros autônomos e
elétricos. E o carro autônomo é quase uma realidade, está muito próximo.
Ele vai revolucionar a humanidade em relação aos grandes problemas do
nosso século como emissões, acidentes, congestionamentos, pois vai
resolver muito disso. Ele é a integração total da conectividade. Outra
coisa: dentro de um carro autônomo, o que a pessoa faz? Basicamente
consome conteúdo, interage digitalmente. O carro vai estar cheio de
telas, de interações. Desse ponto de vista, a indústria automobilística
está liderando a maior transformação já vista na história da humanidade.
A mobilidade autônoma vai mudar o mundo de um jeito nunca visto antes.
Eu diria que é o grande desafio da nossa época. Até que esse produto
chegue ao mercado em grande escala, há todo um processo que já está em
evolução.
Como se dá esse processo?
Por
exemplo, o Onix é um carro de entrada (o mais barato da marca), e já
tem nível 1 de autonomia. Ele estaciona sozinho, tem Wi-Fi e, se ocorrer
um acidente, o sistema identifica e liga para uma central. O atendente,
via sistema OnStar, liga para o motorista, pergunta se ele se machucou e
se precisa de um serviço de emergência. Se ele responder que está tudo
bem, perfeito. Se não responder o chamado, o atendente pede para enviar
ambulância, polícia, bombeiro. O Onix tem nível 4 de conectividade, o
mais avançado no setor. É a conectividade que viabiliza toda essa
transformação. Se o carro não for conectado, é uma barreira. Nossos
concorrentes hoje estão chegando em conectividade nível 2. A atualização
do software do nosso carro é feita da mesma forma que um celular: a
pessoa recebe uma mensagem e a atualização é feita online. Na
concorrência tem de agendar horário e ir à concessionária. Imagina ter
de ir à loja de celular para fazer o update.
Há custo extra por esses serviços?
O
custo é uma pequena fração do que se paga pelo 4G do telefone. Mas se
comparar o Wi-Fi do telefone, o do carro é melhor, porque a antena é
maior. As mensalidades são mais acessíveis do que o pacote de dados do
telefone. Partem de R$ 29,90 por mês por um pacote de 2 gigabits. E
temos pacotes de 2 a 10 gigas.
O que vem pela frente em inovação no processo produtivo?
Não posso revelar ainda.
Hoje em dia, 90% da decisão de compra de um carro ocorre no espaço virtual”
E nos automóveis?
No
produto haverá mais e mais evolução autônoma. Nos EUA está à venda o
Cadillac CT6 com sistema chamado Super Cruise, que é basicamente
autônomo em autopista, sem mãos no volante. O carro ainda precisa saber
que tem um motorista lá e, por meio de uma câmara, percebe, por exemplo,
se ele dormiu - e o acorda. É um sistema nível 3 de autonomia. O nível 5
será 100% autônomo, sem volante e sem pedais e seu lançamento ocorrerá
proximamente.
Isso ainda vai demorar muito no Brasil?
Carros
com o sistema Super Cruise são possíveis aqui, mas precisa de pintura
nas faixas, de alguma infraestrutura para interagir com as câmeras do
veículo. Mas os níveis 5 podem chegar mais rápido porque são tecnologias
mais simples, chamadas de machine learning (aprendizado automático),
que se adaptam rapidamente ao ambiente onde estão. A tecnologia é mais
avançada e aprende com o meio ambiente onde está. O carro passa uma vez
pelo lugar e o memoriza. Na segunda vez que passar, já sabe como é.
O processo de produção hoje e o nível de automação, de robotização e de interação das pessoas não têm absolutamente nada a ver com o passado”
Nessa estratégia de introduzir sistemas de autonomia aos poucos, o que virá nos próximos lançamentos?
Cada
vez mais evoluções de capacidade autônoma. Se já temos um carro de
entrada com estacionamento automático, significa que cada vez mais serão
introduzidas novas tecnologias. O Cruze já tem uma tecnologia que o
mantém dentro de faixa de rodagem na estrada e, se ele sair, o volante
corrige sozinho.
O sr. falou da evolução da GM. E o setor automotivo com um todo, avança no mesmo ritmo?
Cada
empresa tem caminhos distintos. O nosso foco está no consumo e na
jornada do consumidor. Sinto que várias empresas, no nosso setor e fora
dele, muitas vezes estão mais preocupadas com pirotecnias publicitárias.
Nós estamos mais preocupados em realmente oferecer um benefício para
nosso consumidor, em facilitar a vida dele.
Para nós, o digital não é um tabu, é uma filosofia”
O mundo digital tira seu sono?
Você
começou a conversa como se tivesse uma coisa física e tradicional
versus um mundo digital que está nos invadindo. Não vejo o mundo assim.
Para mim é a mesma coisa. A forma de fazer negócio é usar todas as
ferramentas disponíveis. Nós não temos uma “área de digital”; todas as
áreas da empresa trabalham nesse processo, pois não vemos o digital como
uma caixa separada, fechada. Por exemplo, quando pensamos no
desenvolvimento do novo Onix, ou do Cruze, toda a parte que chamamos de
digital e conectividade era tão normal estar no veículo quanto o motor, a
eficiência energética e a segurança. Não temos medo do mundo digital,
ao contrário, estamos quase nativos no digital. Pode ser que não
tenhamos todas as inovações, mas pensamos 100% integrados.
---------
Texto: Cleide Silva / Fotos: Werther Santana
Fonte: https://www.estadao.com.br/infograficos/economia,a-revolucao-que-esta-por-vir-e-a-maior-que-a-industria-de-automoveis-ja-teve,1042846 13/10/2019
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