José de Souza Martins*
A sociedade brasileira carece de uma atenção
crítica quanto às mudanças no conhecimento de senso comum que mediatiza
condutas e deforma a compreensão social da realidade. O senso comum é a
necessária, ainda que precária, certeza numa sociedade de incertezas cada vez
maiores. Sua compreensão científica esclarece a função que tem na contínua
regenera dos mecanismos de reprodução das relações sociais contra a
possibilidade de transformações e inovações.
Há um empobrecimento cultural mais intenso em
países subdesenvolvidos, como o Brasil, do que nos países de tradicional
valorização do conhecimento na formação das pessoas desde a infância, o que se
reflete no senso comum. Com os recursos modernos de difusão da cultura, como o
celular e a internet, entre os desprovidos do discernimento apropriado, o senso
comum já é outro. Mais informadas estão as pessoas e menos conhecedoras são da
diversidade cultural que é própria da sociedade atual.
O fenômeno sugere aos especialistas a inovação
de uma sociologia do desconhecimento, um campo aberto à indagação científica.
Tanto no que é o conhecimento insuficiente, quanto em suas variantes, como a
mentira e a mistificação nos modos sociais de conhecer, desconhecendo, a
realidade profunda. O desconhecimento como meio de preservação popular da
ordem. Como o é o conhecimento distorcido do mundo por um modo de vida aquém do
que é direito e necessário.
Estamos em face de uma crise do senso comum,
que expressa mudanças profundas na organização da sociedade. No caso
brasileiro, representadas por perdas próprias de um subcapitalismo que tolhe
nosso desenvolvimento econômico e social.
Há fatores históricos por trás dessas
anomalias do saber. O trabalho fragmentado da produção moderna sonega cada vez
mais a íntegra do conhecimento técnico à maior parte dos trabalhadores. O saber
está hoje sob o domínio impessoal dos meios institucionais de acumulação do
conhecimento, que separaram quem trabalha de quem sabe como e por que o trabalhadores.
. O saber está hoje sob o domínio impessoal dos meios institucionais de
acumulação do conhecimento, que separaram quem trabalha de quem sabe como e por
que o trabalho é daquele jeito.
Essas alterações no âmbito da produção
disseminaram uma concepção hierárquica do conhecimento com base no
privilegiamento da utilidade e da lucratividade. Minimizaram a relevância
social e histórica do saber pelo saber, fundamento do conhecimento erudito,
como a ciência e a arte. Na contrapartida geraram as condições culturais e
sociais de um novo senso comum, abundante e pobre, que bloqueia o interesse
pelos desafios da erudição.
No contrafluxo desses dilemas, e já fora do
âmbito da produção industrial e agrícola, o conhecimento pulverizado e as
tecnologias de acesso superficial e fácil, colocaram ao alcance do homem
simples conhecimentos enciclopédicos. Reduzidos, porém, ao banal. Hoje, qualquer
pessoa, mesmo a de insuficiente escolaridade, pode ter acesso à vulgarização do
saber para conhecer o supérfluo e desconhecer o essencial.
Quanto à consciência social, de que todos
carecemos para viver em sociedade, a informação superficial torna a nossa vaga
e imprecisa. Tateamos no que não sabemos, mas julgamos saber sobre nós mesmos. Há
um século tínhamos aqui mais clareza quanto ao que éramos. Podíamos, por isso,
fazer demandas sociais e políticas mais consequentes, tínhamos consciência de
quais eram as privações que nos faziam pobres, não só do essencial à vida. Mas
também do conhecimento intuitivo e cotidiano dos nossos enganos. Nosso senso
comum era o fundamento de nossa conformismo.
Se hoje nosso senso comum e nossa consciência
social tivessem a mesma qualidade de 1917, não estaríamos sujeitos à cultura de
manipulação que nos subjuga e engana, nem teríamos aceito com tanta facilidade
a pilhagem de nossos direitos sociais em questões como o emprego e a
previdência social. Não teríamos aceito a tese de que os idosos que trabalharam
a vida inteira por menos do que valia seu trabalho são os causadores dos
prejuízos da Previdência. Estaríamos perguntando quem foi que ganhou com esse
prejuízo.
Com os recursos modernos, a grande massa
marginalizada pela desinformação e pela subinformação reelabora, nesse novo
senso comum, sua alienação social. Estamos em face de uma nova ignorância, a
ignorância, a ignorância moderna, insuficiente, a do saber fundamentalista
sobre todos os assuntos. Religiões têm sido inventadas em cima dessa
precariedade. Crendices anticientíficas competem com a ciência. Política
antipolítica ergue e renova o Estado populista e antissocial.
Em outros tempos, o saber dos simples era um
indício de consciência social verdadeira, das contradições e suas injustiças.
Hoje, a nova ignorância é a grande expressão de uma consciência social falsa e
cúmplice.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros,
autor de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto).
Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-estamos-em-face-da-ignorancia-moderna.ghtml 11/10/2019
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