Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu, em sua residência paroquial em Altamira (PA)
-
Bispo emérito do Xingu, dom Erwin diz que atuação de Bolsonaro diante dos povos indígenas é inconstitucional e que ele desconhece geografia
Um dos principais assessores do papa Francisco no Sínodo para a Amazônia,
que acontece desde domingo (6) em Roma, o bispo emérito do Xingu, dom
Erwin Kräutler, 80, afirma que as decisões tomadas durante evento terão
repercussão em toda a Igreja Católica.
Nesta entrevista, dom Erwin defendeu maior participação das mulheres na igreja, afirma que as propostas do governo Jair Bolsonaro (PSL) com relação aos indígenas são inconstitucionais e que a internacionalização da Amazônia não passa de um fantasma.
Ele também criticou a atuação de igrejas pentecostais por impor sua religião aos índios. Dom Erwin falou à Folha em seu escritório em Altamira, onde vive desde 1965, depois de imigrar da Áustria.
Representantes das comunidades indígenas da Amazônia participaram da missa de abertura do Sínodo.
Como surgiu do Sínodo para a Amazônia? O amigo dele, o cardeal dom Claudio Hummes, está muito ligado ao papa. Foi ele quem soprou no ouvido dele, depois da eleição [do papa],
que o papa não se esquecesse dos pobres. E dom Claudio se tornou
presidente da Comissão Episcopal para Amazônia, da qual sou secretário
até hoje.
Ninguém sonhava ou pensava em sínodo em 2014, mas dom Claudio me
disse: “Você já está há séculos aqui na Amazônia, você tem de falar com o
papa”. Em 4 de abril de 2014, o papa me recebeu em audiência
particular. Ele não é homem que olha no relógio. Senta lá, é uma
conversa que flui. Antigamente, olhavam no relógio, depois abriam a
porta, o que quer dizer: “Cai fora peão”. Esse, não.
Aí eu falei de três pontos: a questão indígena na Amazônia
brasileira, a falta de eucaristia nas comunidades e ecologia. E o papa
me disse: “Estou preparando uma encíclica sobre a ecologia”. E
acrescentou: “Trata-se de uma ecologia humana”.
E aí disse a ele que não podia faltar, em absoluto, a questão da Amazônia e a questão indígena.
Depois disso, em 2016, em Belém, no segundo encontro da Igreja
Católica na Amazônia Legal do Brasil, tratamos desses assuntos
costumeiros, falta de padres, o problema da terra, o problema dos
indígenas. Aí surgiu uma ideia: será que seria interessante o papa
convocar um sínodo? Os 53 bispos presentes votaram em unanimidade que se
fizesse uma carta ao papa para ele convocar o sínodo.
A carta foi elaborada em fevereiro de 2017. Para nossa grata
surpresa, em 15 de outubro de 2017, o papa se dirigiu aos fiéis e
peregrinos reunidos na praça e disse o seguinte: "Atendendo o desejo de
algumas conferências episcopais da América Latina, assim como ouvindo a
voz de pastores e fieis de várias partes do mundo, decidi convocar uma
assembleia do sínodo dos bispos para a região Pan-amazônica. O sínodo
será em Roma, em outubro de 2019".
Milhares de pessoas foram consultadas, tanto indígenas quanto
ribeirinhos, quilombolas, povo do campo e da cidade. E essas respostas
foram sintetizadas por regionais, depois várias regionais juntas, a
síntese da síntese. Após, isso, tudo foi enviado a Roma.
Em que momento o governo brasileiro começou a se incomodar com o sínodo? Depois da síntese ter sido enviada a Roma, isso caiu nos ouvidos do governo, com o general Augusto Heleno
[ministro de Bolsonaro] dizendo que o sínodo era para questionar a
soberania nacional sobre a Amazônia. É um total absurdo. Não pensamos
nisso nem durante pesadelo à noite. Não nos veio na telha em nenhum
momento.
Temos mais experiência em Amazônia do que todos aqueles que estão lá
no governo. Eles conhecem a Amazônia do ouvir dizer. Ou talvez
sobrevoaram uma área. Ou foram a uma recepção em Manaus ou Porto Velho
ou Belém. Mas, fora disso, eles não conhecem a Amazônia. Aliás, dos
últimos governos, não tinha um que conhecia a Amazônia.
Sobre Belo Monte
[governo Dilma Rousseff], nós nunca fomos consultados. Fizeram uma
auditoria em Belém sobre o Xingu e perguntavam onde que estava o Xingu.
Quem participa do sínodo? Todos os bispos titulares e
auxiliares das dioceses que estão na Amazônia. Eu sou emérito, a rigor
não poderia ir, mas o papa me convidou. Caí lá dentro porque o papa me
nomeou.
Um dos pontos mais importantes do sínodo é em torno do celibato. Em que estágio está esse debate? O
debate tem duas vertentes. Uma é a eucaristia. Todos os documentos dos
papas falam da eucaristia, o centro de nossa fé. Não existe comunidade
católica sem ter a eucaristia no centro. O que acontece? Temos, no
Xingu, 800 comunidades. Há 30 padres com idade avançada, acima de 65
anos.
Então,
800 comunidades se reúnem todos os domingos, mas não têm o que
caracteriza a fé católica, a eucaristia. Então fazer o quê? Será que não
temos de discutir o acesso ao sacramento da ordem? Não pode ser que
grande porção do povo católico esteja desprovido da eucaristia porque só
um homem celibatário, ordenado, pode presidir.
Então se pergunta por que não tem a possibilidade de casais, homem ou
mulher —diga-se de passagem, dois terços das comunidades aqui são
dirigidas por mulheres— receberem nomeação e a ordem para presidir a
eucaristia na sua comunidade?
Não estamos a favor do celibato ou contra ele. É uma decisão que cada
mulher, cada homem pode tomar, de não querer se casar e querer viver a
vida em favor da causa do reino de Deus. Nós, que viemos de outros
cantos, se eu tivesse mulher e filhos, aquilo que eu passei, eu teria de
ter vazado há muito tempo por causa da família [dom Erwin vive há 13
anos sob proteção policial].
Mas a razão principal não é do celibato opcional, mas de como podemos
prover as comunidades com a celebração dominical da eucaristia. Aí,
logicamente, uns dizem que a mulher nunca pode.
Pessoalmente, defendo que pode porque os argumentos contrários não me
convencem. Especialmente com a experiência que temos aqui, com as
mulheres dirigindo tantas comunidades. Eu conheço comunidades dirigidas
por mulheres que são uma joia. Agora você tem de caçar um homem
celibatário para colocar a mulher de escanteio? É o nonsense.
Outra coisa: mulher na igreja. As mulheres na Amazônia assumem
compromissos e responsabilidades admiráveis a respeito de sua
comunidade. Qual é, porém, a valorização da mulher dentro da igreja? Aí
que some pelo menos com o diaconato. O papa pediu um estudo sobre o
diaconato feminino na Antiguidade, no início da igreja.
Agora, não dá para dizer que o Sínodo para a Amazônia é para decidir sobre o celibato, sim ou não.
Não faltam críticas sobre a atuação da Igreja Católica na Amazônia, como interrupção do modo de vida dos povos indígenas. Haverá uma reflexão sobre esse passado? Antigamente,
se pensava que os índios não tinham cultura nem religião que mereçam o
nome. Mas, quando se vê mais perto, se descobre que eles têm a sua
religião. O encontro nosso com as propostas do Evangelho não pode ser um
encontro que acaba com a cultura e as tradições religiosas do povo.
Pelo contrário, a nossa presença tem de partir, com muito carinho,
muito amor, da experiência que os indígenas tiveram até hoje. Toda
religião tem de estar sempre aberta a novos impulsos.
Os pentecostalistas querem implementar a religião deles. Isso estraga
a cultura indígena. Nesse ponto, temos uma sensibilidade muito
acentuada de não quebrar nada, de ouvir primeiro e propor. Você é livre.
Eu posso dizer 'a minha fé é essa', e você pode dizer não. Paciência.
Mas eu não posso dizer: 'Se você não aceitar a minha fé, você vai pro
inferno'.
A igreja tem alguma estratégia diante dessa nova onda de evangelização, agora feita pelos pentecostais? A
nossa problemática é que nós estamos visitando, mas não somos presença.
O padre, hoje, vai às comunidades duas ou três vezes ao ano. Nas
comunidades indígenas, fazemos incursões. A gente vai lá, fica dois,
três dias e depois vai embora. Por isso, se fala que os povos indígenas
têm de ser agentes pastorais autóctones, indígenas que assumem.
Aí vem toda uma questão. Por exemplo, o celibato, de modo geral, não
funciona para os povos indígenas. A gente não pode exigir. Eles aceitam
porque você não é do povo. Há padres indígenas, mas eles estão fora do
seu povo.
No Brasil, o atual governo defende a redução das terras indígenas, favorecimento do agronegócio. Bolsonaro já disse frases consideradas racistas contra os indígenas - O
presidente, digo logo, no tratamento dos povos indígenas, é
inconstitucional. Tenho a impressão de que ele não leu toda a
Constituição.
As primeiras Constituições não falaram nada. Os índios não existiam.
Depois, no Getúlio Vargas e na ditadura, se falava da incorporação dos
silvícolas na sociedade nacional. Em primeiro lugar: a sociedade
nacional, naquela época, era constituída pelos brancos. Eles que
incorporam. Ou seja, o índio, para se tornar brasileiro legítimo, tinha
de perder a sua identidade. Ele não podia dizer que é membro de um povo.
Nas disposições transitórias da Constituição, há um prazo de cinco
anos [contado a partir de 1988] para concluir a demarcação e homologação
de todas as terras indígenas do Brasil. Não chegamos nem à metade e
estamos em 2019.
Essa é a nossa luta, e o governo está contra. O Bolsonaro já falou,
antes de ser eleito, que não vai demarcar nada para os povos indígenas. É
inconstitucional. Abrir as áreas indígenas para a mineração e outras
atividades é contra a Constituição, e o presidente não está acima da
Constituição.
Isso, logicamente, cria uma mentalidade anti-indígena. Logo depois
que ele virou presidente, já invadiram os araras aqui no Xingu. O STF
deveria reagir quando o presidente se posiciona contra a própria
Constituição.
O que a Igreja Católica pode fazer diante dessa ofensiva? A
gente pode exigir em nome da própria Constituição brasileira. Eu exijo
do Executivo, do Judiciário e do Legislativo que respeitem a
Constituição brasileira. Aparentemente, é o óbvio, mas tem de exigir.
Qual é a resposta da igreja às declarações de Bolsonaro de que a Amazônia é um tema dos brasileiros? Eu
digo a ele para estudar geografia, porque já vai descobrir que é um
tema de nove países. Se ele diz que é um tema dos brasileiros… santa
paciência.
Em segundo lugar, a Amazônia tem hoje uma função reguladora do clima
mundial, segundo os cientistas. A Amazônia é nossa? A empresa Belo Sun,
aqui no Xingu, é canadense. Querem retirar 60 toneladas de ouro em 12
anos. Vai levar pra onde? Não vai distribuir entre os brasileiros, não.
Vão levar tudo e deixar aqui os rios poluídos e uma área impraticável
para agricultura.
Ninguém discute que a soberania é brasileira. É a metade do Brasil em
superfície. Ninguém nega isso. Internacionalizar a Amazônia é um
fantasma que está dentro de alguns cérebros. A igreja nunca vai defender
um negócio desses.
----------
Reportagem Por Fabiano Maisonnava Altamira (PA) Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/excluir-mulheres-da-igreja-e-nonsense-diz-assessor-do-papa-para-a-amazonia.shtml
Nenhum comentário:
Postar um comentário