Leandro Karnal*
Supor que algo esteja controlado por estar etiquetado é, no fundo, estupidez
Nosso
cérebro é uma complexa estrutura forjada por milhões de anos de
evolução. Por outro lado, é também primitivo e foi lapidado para seres
trogloditas que viveram há milhares de anos. É curioso pensar que o mais
refinado, erudito e urbano dos moradores deste planeta tenha o mesmo
hardware que um caçador coletor que passou a vida errando em uma pequena
área de algum lugar em busca de comer, aquecer-se e garantir a
reprodução.
Estou
sendo injusto em minha descrição. Nosso primitivo ancestral era capaz
de realizar pequenas cirurgias, tecer, fazer ferramentas de pedra. Tente
criar algo assim em casa e você verá que somos menos autônomos do que
um coletor do Paleolítico. Mas estou sendo preciso quando comparo nossos
cérebros.
Desenvolvida para uma chave amigo-inimigo,
nossa mente tende a rotular tudo o que vê, julgando a novidade de acordo
com seu conhecimento prévio. Isso garantiu nossa vida por muitas
gerações: se eu comer algo que me faz mal, toda vez que olhar para algo
semelhante, sentirei repulsa. Nosso cérebro rotula de acordo com a
percepção de nossos sentidos. Isso pode ser bom para evitar perigos,
porém cria problemas para nossa atualidade.
Se
eu tivesse que arriscar um esboço do que seria o pensamento médio das
pessoas, hoje em dia, ele seria similar ao da mente primitiva dos
antepassados paleolíticos. Formamos bandos com facilidade. Yuval Harari
chama a atenção para como a detração é uma poderosa cola social.
Fofocando, crio laços, forjo alianças, consigo favores, ganho poder.
Desde sempre, nossa espécie previamente classifica o que vê antes mesmo
de buscar compreender o que tem na sua frente. O pavor instintivo da
novidade me faz rejeitá-la. Repetir o que é conhecido foi estratégia
evolutiva para que o homem primitivo continuasse andando pelo planeta.
É
claro que nós também somos conhecidos por sermos uma espécie que foge
da natureza animal e que cria e modifica culturas. Portanto, há também
um instinto inquisitivo, que gosta de descobrir coisas novas,
explorá-las. No entanto, a sensação é que ele anda em baixa em nossos
tempos. Nosso software quer novos programas; o hardware se apega à
classificação empobrecedora de bom/ruim e desconhecido/conhecido.
Retorno
ao ponto central: o que faz alguém ler uma manchete, ouvir um trecho de
uma fala e, instantaneamente, apontar o dedo e dizer “Fulano é liberal,
esse é comunista”, etc.? No geral, quem afirma isso nem sequer tem
clareza do que é liberalismo ou comunismo, tampouco consegue passar da
superfície do que diz seu interlocutor, seja um texto, imagem, pessoa,
vídeo ou áudio. Classificar, para o cérebro primitivo que se contenta em
viver na caverna, é mais importante do que entender. Por quê?
Encerrar
em caixas herméticas dá segurança. Começamos com a minha tribo e a do
outro. Se é da minha, diminuem as chances de ataque. Classificar é a
primeira forma de dominar e de se defender. O vício entrou em nós. Da
tribo, passamos a gostos musicais e sexuais ou escolas artísticas. Será
que a peça é rococó ou maneirista? Art Déco ou Nouveau? Primeira ou
segunda fase do Romantismo? Naturalismo ou Realismo? Classificar não é
ruim ou errado. Supor que algo esteja controlado mentalmente por estar
etiquetado é, no fundo, estupidez.
Há pelo menos duas formas de
entender o fenômeno. E elas não são excludentes. Talvez até se
complementem. Vejamos. A primeira corrente vê na estupidez da rotulação
imediata um traço humano. Sempre fomos estúpidos, violentos. A sociedade
ficou mais complexa, criamos leis que dificultam ser assim, mas, em
nossas essências, somos os mesmos de sempre: estúpidos. Por outro lado,
há quem afirme que o tempo curto da internet, o imediatismo atual,
produz superficialidades, impede o raciocínio profundo, pois este requer
o questionamento de bolhas epistêmicas e, mercadoria cada vez mais rara
e cara, tempo de reflexão, ponderação. Há idiotas que encontram eco em
bandos de pessoas como eles e isso potencializa os danos. Não seria uma
essência, necessariamente, todavia um feitiço, uma tentação oferecida
por algoritmos do universo digital. O canto de sereia nos atrai para a
morte. Ambas as teorias podem se juntar numa poderosa, mas talvez
equivocada explicação: somos todos primitivos e temos tendência ao
preconceito; quando nutrimos o oposto, escapamos da caverna; mas, quando
sucumbimos ao tentador de grupos de redes sociais, o verniz vai embora e
o troglodita volta a comandar nosso cotidiano.
Trata-se de um
treinamento reverso. Tudo pede que você classifique continuamente.
Resistir à tentação é um desafio. Pensar em aprofundar, dar uma segunda
olhada, fugir do rótulo: parecem ser atitudes que exigem o desafio da
vontade férrea. Deixar que sentidos mais amplos invadam sua percepção
sem julgar e engavetar de imediato é um ato de resistência. Abrir espaço
para complexidades é boa meta. O resto? O rema-rema de frases
superficiais, senso comum e a celebração da boçalidade. Talvez, um dia,
descubram que se trata de uma bactéria específica transmitida pela
digitação. O remédio continua sendo ler com atenção, duvidar como
método, analisar possibilidades fora do que está posto e nunca ser o
representante da verdade na Terra. Ah, e ajuda abandonar redes sociais
por pelo menos uma hora por dia. É preciso ter esperança.
------------
*Historiador brasileiro, professor da Universidade Estadual de Campinas, especializado em história da América
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,rotulo-logo-existo,70003042544 09/10/2019
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário