"A Igreja Católica nos Estados Unidos está à venda". A constatação é do editorial de National Catholic Reporter.
Segundo o editorial, "a Conferência Episcopal perdeu sua voz e o seu
lugar como ator na sociedade em geral. Quem entrou nessa brecha como os
principais transmissores dessa versão norte-americana do catolicismo?
Principalmente homens poderosos, indubitavelmente bem-intencionados no
seu amor pela Igreja e em sua visão particular de como ela deve parecer e
funcionar. O acesso à riqueza é o vínculo comum".
Timothy Busch, fundador da Busch Firm,
especializado em planejamento imobiliário de alto patrimônio líquido,
direito tributário e litígios corporativos, de longe, o mais ambicioso e
loquaz dos evangelistas do catolicismo orientado pelo mercado, declara:
"A evangelização do nosso país está sendo feita por fundações privadas,
ONGs católicas, como o Instituto Napa e a Legatus”.
Essas organizações sem fins lucrativos, argumentou, são “aquilo que
está fazendo a diferença na Igreja norte-americana e a razão pela qual
somos tão vibrantes e o resto do mundo não é vibrante (...) Eles têm
acesso a um capital que a Igreja não tem”.
Eis o editorial.
A Igreja Católica nos Estados Unidos está à venda.
Em silenciosos investimentos ao longo de um período de décadas,
empresários ricos e abastadas organizações sem fins lucrativos
substituíram elementos da vida eclesial que antes eram a província das
organizações oficiais da Igreja.
As lideranças da Igreja têm assistido como indivíduos e grupos com
recursos substanciais se tornaram a voz da Igreja na praça pública,
moldando uma narrativa católica para a cultura mais ampla.
Coletivamente, os esforços dos novos empreendedores eclesiais
resultaram em estruturas, muitas delas à direita da extrema direita do
espectro, que desafiam a autoridade e a voz dos bispos dos EUA. Em alguns exemplos recentes, indivíduos e grupos influentes também abraçaram e amplificaram os críticos mais duros do Papa Francisco.
A maior parte desses desdobramentos ocorreu através do setor sem fins
lucrativos, um fenômeno peculiarmente norte-americano que explodiu
durante o último meio século em termos do número de organizações, da
quantia de dinheiro que eles são capazes de atrair e da influência
política que eles exercem agora tanto dentro quanto fora da Igreja.
Seguindo o dinheiro
A nossa cobertura sobre isso começou há cinco anos, com reportagens sobre um congresso do Instituto Napa. Mais recentemente, o NCR
acompanhou o crescimento do dinheiro e a sua influência na vida
católica, começando por uma análise abrangente das consideráveis
quantias que os Cavaleiros de Colombo doaram para think tanks
e organizações de notícias e das generosas doações que eles fizeram a
lideranças da Igreja e projetos eclesiais que se conformam a uma
ideologia política conservadora.
Através de uma investigação e análise detalhadas de documentos fiscais públicos e relatórios de eventos, o NCR
demonstrou que esses gastos fornecem a indivíduos e outras organizações
um acesso aos níveis mais altos da liderança da Igreja e proporcionam a
outras pessoas uma voz excessivamente forte sobre os assuntos
eclesiais.
Meios de comunicação como a EWTN, o Ethics and Public Policy Center, a First Things, a direitista Federalist Society (uma espécie de observatório para juristas conservadores), o Becket Fund for Religious Freedom e o libertário Instituto Acton foram beneficiados pelo financiamento dos Cavaleiros de Colombo e de outros católicos ricos que construíram com sucesso uma história católica para consumo público.
A história é simples e direta, sectária, definida pelas escolhas
binárias das guerras culturais em curso e por uma versão santificada da
economia libertária que vem travestida com paramentos católicos
espalhafatosos.
É uma mistura puramente estadunidense. O traje é uma imitação pomposa
da coisa real. A narrativa é uma vergonha quando vista contra os nossos
textos sagrados e a riqueza da tradição católica de justiça social.
O que estamos testemunhando não é o resultado de um programa, pelo
menos de nenhum programa abertamente declarado ou descrito. É, antes, o
resultado de uma oportunidade inteligente e criativamente explorada. E
os próprios bispos, especialmente aqueles que violaram a confiança da
comunidade nos últimos 30-40 anos, são os principais culpados por
oferecer essa oportunidade.
Dizemos de antemão que o que está sendo feito não é ilegal nem
imoral. Não há nada inerentemente errado no fato de alguém apoiar fortes
convicções com dinheiro. Pessoas com recursos significativos costumam
ser os meios de sobrevivência para aqueles, como nós, que vivem no mundo
sem fins lucrativos com isenção de impostos. Afinal, o Vaticano II pediu que os leigos levassem a Igreja ao mundo.
Vácuo de liderança
Mas as nossas reportagens detalham algo bastante extraordinário que
vem se desenvolvendo há décadas, possibilitado pelo mecanismo sem fins
lucrativos nos EUA e pelo vácuo de liderança que existe agora no episcopado norte-americano.
Várias forças criaram esse vácuo. A primeira foi um documento emitido pessoalmente pelo Papa João Paulo II em 1998. Intitulado Apostolos suos, visava a restringir severamente a autoridade e o papel magisterial das Conferências Episcopais.
Outra é o escândalo em curso dos abusos sexuais clericais. Ele se
tornou um escândalo global em que os bispos de todo o mundo se engajaram
em um acobertamento sistemático de horrendos abusos de crianças e
jovens. À medida que antigos padrões de abuso e de encobrimento
continuam sendo revelados, isso tem esvaziado a credibilidade dos bispos
como grupo.
Uma falta de liderança também era inerente ao caráter dos bispos nomeados durante os 35 anos dos papados de João Paulo II e Bento XVI. Ficou claro logo após a eleição de João Paulo II em 1978 – enquanto a Congregação para a Doutrina da Fé
sob sua direção arrastava uma série de ilustres teólogos para o
disciplinamento e o silenciamento – que seus candidatos preferidos ao
episcopado seriam submissos, sem levantar perguntas nem o mínimo desafio
à autoridade. Décadas de nomeações de homens que geralmente se
conformavam com essas preferências e resistiam a qualquer coisa que
pudesse ser interpretada como dissidência resultaram em uma Conferência
Episcopal aquiescente com todos os desejos de Roma.
Com o Vaticano exercendo um controle sem precedentes
sobre os bispos estadunidenses, a Conferência Episcopal se voltou para
dentro, suas reuniões foram dominadas por longas discussões sobre a
liturgia, a linguagem das orações e a promulgação de juramentos de
lealdade para agentes de pastoral e teólogos. A Conferência Episcopal
perdeu sua voz e o seu lugar como ator na sociedade em geral.
Quem é quem
Quem entrou nessa brecha como os principais transmissores dessa versão norte-americana do catolicismo?
Principalmente homens poderosos, indubitavelmente bem-intencionados
no seu amor pela Igreja e em sua visão particular de como ela deve
parecer e funcionar. O acesso à riqueza é o vínculo comum. Uma amostra
dos mais reconhecíveis:
- o Cavaleiro Supremo Carl Anderson, agente político que já trabalhou para o senador Jesse Helms e o presidente Ronald Reagan, chefia agora uma organização cujos membros fornecem recursos extraordinários e tempo pessoal para causas de caridade nos EUA e em todo o mundo. Milhões de dólares arrecadados por Cavaleiros de Colombo comuns nas paróquias e através das agências de seguros do grupo vão para esses esforços. Mas Anderson
também tem o poder de designar os destinatários da generosidade dos
Cavaleiros, permitindo que ele doe milhões para dioceses seletas e gaste
milhões em projetos vaticanos, em meios de comunicação, em think tanks e até em organizações sem fins lucrativos não religiosas que promovem ideologias políticas e eclesiais conservadoras.
- Timothy Busch, fundador da Busch Firm,
especializado em planejamento imobiliário de alto patrimônio líquido,
direito tributário e litígios corporativos. Ele também possui extensas
participações empresariais e imobiliárias, incluindo hotéis e resorts, e
é o principal doador da Escola de Negócios Busch da Universidade Católica dos EUA. Ele é cofundador do Instituto Napa. A atração principal do congresso mais recente do instituto foi o cardeal Raymond Burke, entre os líderes da oposição a Francisco. A senadora Lindsey Graham (republicana da Carolina do Sul) também foi convidada e liderou um incontestável almoço-comício republicano.
- Frank Hanna III, outro advogado, banqueiro
mercantil e filantropo, que defende “o rejuvenescimento do pensamento
correto sobre as virtudes do capitalismo”. Seu livro de 2008 intitula-se
“What Your Money Means (and How to Use It Well)” [O que o seu dinheiro significa (e como usá-lo bem)]. Ele é membro ativo do Regnum Christi, o braço leigo dos Legionários de Cristo, fundado pelo desonrado Marcial Maciel Degollado. Hanna faz doações ao Instituto Acton,
que valoriza muito, e acredita que a prosperidade espiritual, e não
material, é o maior desafio do mundo. Entre as afiliações listadas em
seu site, estão a EWTN, o Ethics and Public Policy Center, o American Enterprise Institute e o Instituto Napa.
- Sean Fieler foi descrito como um “financiador ideologicamente motivado” em um perfil de 2015 publicado pela Inside Philanthropy. A manchete o descreveu como “O investidor que promove valores conservadores”. Ele dirige a Fundação Chiaroscuro, da qual é o principal doador. A lista de beneficiários das doações do fundo contém alguns nomes conhecidos: o Becket Fund for Religious Liberty, uma organização jurídica que apresentou objeções contra o mandato de contracepção do Affordable Care Act, apesar de importantes instituições católicas, incluindo a Catholic Health Association, terem aprovado as exceções fornecidas para organizações religiosas; a Escola de Negócios Busch da Universidade Católica dos EUA; o Ethics and Public Policy Center; e a First Things, uma publicação que publicou fortes críticas a Francisco.
- Thomas Monaghan, fundador da Domino's Pizza e ex-proprietário do Detroit Tigers, também é fundador da Legatus,
uma organização para líderes empresariais católicos, com requisitos de
associação que garantem que apenas aqueles que possuem bens
significativos possam se candidatar. Ele também é o fundador da Universidade Ave Maria e de uma comunidade construída para esse fim, a cidade Ave Maria, perto de Naples, na Flórida. Busch citou Monaghan e Legatus entre os principais evangelizadores católicos do país.
As nossas reportagens, por mais extensas que sejam, só começam a
mapear as profundas fontes de financiamento que se infiltram no tecido
da vida paroquial, que influenciam programas como o FOCO (Fellowship of Catholic University Students [Associação de Estudantes da Universidade Católica]), nos campi universitários.
O dinheiro alimenta os meios de comunicação e a produção de materiais
catequéticos, e compra a presença de bispos e cardeais para legitimar
os eventos da direita católica. Os membros da hierarquia estão
abundantemente presentes em todos os coquetéis e jantares, e nas
negociações políticas nem tão sutis.
O registro é extenso e crescente. E continuaremos relatando o
fenômeno. A comunidade católica merece saber o que está motivando e
moldando grande parte das mensagens sobre a Igreja nos EUA.
“Primeiro a Igreja”
Busch é, de longe, o mais ambicioso e loquaz dos
evangelistas do catolicismo orientado pelo mercado. Em um momento não
programado de um de seus eventos, ele declarou: “A evangelização do
nosso país está sendo feita por fundações privadas, ONGs católicas, como
o Instituto Napa e a Legatus”. Essas
organizações sem fins lucrativos, argumentou ele, são “aquilo que está
fazendo a diferença na Igreja norte-americana e a razão pela qual somos
tão vibrantes e o resto do mundo não é vibrante (...) Eles têm acesso a
um capital que a Igreja não tem”.
Sobre a Escola de Negócios da Universidade Católica dos EUA,
ele disse que foi um presente de quase 50 milhões de dólares – 15
milhões dele mesmo – que havia “reenergizado” a universidade e “tornado
ela grande de novo” [“made it great again”, expressão que lembra o slogan de campanha de Trump, “Make America Great Again”].
Além disso, ele se orgulhou do fato de que a universidade seria o
“púlpito de ensino” não apenas dos bispos católicos, mas também do Vaticano, “especialmente sobre a questão e os assuntos dos negócios”.
No mesmo encontro, um cardeal ligado historicamente ao ensino da justiça social da Igreja foi descrito por Busch como um representante de uma visão a ser levada em consideração.
Alguém que liga os pontos e percebe o que está acontecendo na Igreja
postula a sugestão compreensível de que o necessário é uma infusão de
dinheiro a partir da esquerda. Mas isso criaria apenas uma espécie de
jogo sangrento para os mais ricos.
Nova visão da Igreja
O corretivo essencial está em algo muito mais profundo do que uma competição – trata-se de uma nova visão da Igreja, que Francisco
viveu em sua terra natal e pela qual agora pleiteia contra uma grande
resistência. A questão central é: como é que nós, católicos comuns,
avançamos para nos tornar uma Igreja dos e para os pobres?
Nós sugerimos que o primeiro passo seja entender o que está
acontecendo, entender que a própria ideia de cultura católica está sendo
espremida em um marco estreito, no qual Deus se conforma às normas e
ambições estadunidenses.
Embora possa não haver nada inerentemente ilegal ou imoral em relação a esse desdobramento na Igreja Católica dos EUA,
isso não é desprovido de consequências. Levando à sua conclusão lógica,
torna-se um esforço no qual figuras poderosas com acesso à riqueza usam
todos os meios para racionalizar uma Igreja envolta na bandeira
estadunidense e na qual o touro de Wall Street reside confortavelmente em meio às demais estátuas.
A conclusão é um ressurgimento do clericalismo dos leigos. Não será
uma Igreja dos pobres, mas sim uma Igreja dos autossuficientes.
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A tradução é de Moisés Sbardelotto. 25/10/2019
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/593823-eua-e-o-dinheiro-quem-molda-a-narrativa-catolica
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