Iran Gonçalves Jr.*
Pessoas ditas espiritualizadas lidam melhor com sua condição de saúde
Nos últimos 20 anos houve um grande aumento no
número de trabalhos científicos publicados sobre o fenômeno da espiritualidade
e sua relação com a saúde e a doença. Não há uma definição precisa do termo
“espiritualidade” e ele guarda relação pelo que se entende como
“religiosidade”.
A espiritualidade abrange uma sensação do ser
humano de estar em paz consigo mesmo e com os outros, de acreditar que sua vida
tem um propósito transcendente; essas crenças pessoais se manifestam na
preocupação com os outros, com a família, com a comunidade, com a natureza,
enfim, com causas maiores que apenas sua própria individualidade.
Se, à descrição acima, se acrescentam práticas
religiosas ou a noção de Deus ou deuses, tem-se a descrição do que é a
“religiosidade”. A dificuldade de separar estes conceitos faz com que muitos
autores não diferenciem os termos com rigor em suas pesquisas ou os utilizem
quase como sinônimos.
Independente das questões metodológicas, o
interesse em pesquisar esse fenômeno surgiu da constatação que as pessoas ditas
espiritualizadas lidam melhor com sua condição de saúde e, muitas vezes, vivem
mais.
Dada às diferentes práticas de espiritualidade
ou religiosidade nas diferentes culturas ou nos seus diferentes estratos
sociais, é difícil determinar quais as variáveis mais importantes que explicam
este efeito protetor.
Uma das variáveis mais estudadas é a capacidade
de enfrentamento ante situações de estresse. Estudos demonstram que indivíduos
com maior espiritualidade ou religiosidade lidam melhor com situações de
estresse, ficando menos expostos aos efeitos deletérios dos hormônios e demais
substâncias liberadas pelo organismo nestas situações.
Doenças crônicas ou que colocam a vida em
risco, como câncer, são situações de alto estresse orgânico e emocional, seja
pelo diagnóstico, seja pelo tratamento prolongado, agressivo, doloroso.
Conseguir lidar com esses desafios de um modo
mais tranquilo leva a uma maior e melhor capacidade de enfrentamento da doença,
auxilia na aderência ao tratamento e na tomada conjunta de decisões. Essa maior
paciência e paz interior torna a qualidade de vida melhor durante o tratamento.
Pacientes com maior espiritualidade ou religiosidade costumam necessitar menos
de medicamentos ansiolíticos e analgésicos, por exemplo.
Outra área de estudo relacionada diz respeito
aos hábitos de vida dessas pessoas, antes de ficarem doentes. Indivíduos com
que se declaram espiritualizados ou religiosos fazem menor uso de álcool e
drogas, são pessoas mais gregárias, menos propensos a se sentirem sozinhas ou
abandonadas, menos ansiosas ou deprimidas. Acredita-se que estas características
possam evitar ou retardar o aparecimento de algumas doenças como, por exemplo
as doenças cardiovasculares.
Compaixão e altruísmo com as outras pessoas
são características dos indivíduos com maior espiritualidade e religiosidade.
Essas características, quando estão presentes nos cuidadores dos indivíduos
doentes, auxiliam em muito o tratamento.
Paciência, compreensão, disponibilidade, amor,
parecem palavras pouco afeitas aos textos médicos científicos, mas fazem toda a
diferença no cuidar do paciente.
Geralmente os cuidadores são os familiares
mais próximos, que moram com o paciente e que vivem uma sob uma pressão
emocional igual ou maior que seu ente querido doente. Não há data ou hora para
o paciente complicar, piorar ou simplesmente se queixar amargamente de seus
problemas. Essa situação muitas vezes se estende por décadas, grande parte de uma
vida dedicada ao próximo. Familiares com alto grau de espiritualidade ou
religiosidade conseguem sublimar estas dificuldades, sentem-se agradecidos e
recompensados pela oportunidade de cuidar de seu ente querido.
Para os profissionais de saúde, maior
espiritualidade ou religiosidade leva a uma melhor capacidade lidar com as
difíceis situações do dia a dia. Profissionais que trabalham com pacientes com
doenças graves, com alta mortalidade, com frequência desenvolvem quadros de
depressão ou ansiedade. Maior espiritualidade ou religiosidade podem aumentar a
resiliência dos profissionais e diminuir o desgaste profissional.
Feliz do médico que já escutou a frase:
“Doutor, só de vê-lo já me sinto melhor...”.
Espiritualidade pode ser ensinada? Talvez
possamos dizer que pode ser resgatada, redescoberta. Na ocasião de um
diagnóstico grave, que prenuncia um tratamento doloroso e prolongado, cabe aos
familiares e cuidadores procurar se aproximar dessa dimensão do paciente e
auxiliá-lo na sua expressão. A decisão de expressar a espiritualidade ou
religiosidade cabe, porém, apenas ao paciente. Os hospitais devem ter programas
que deem suporte e espaço para essas manifestações.
Lidar com os desafios da espiritualidade e
religiosidade na doença não é tarefa fácil. Muitas vezes, nos momentos de maior
dificuldade, o paciente pode experimentar grande desconforto espiritual. Pode
mesmo colocar em dúvida o que pensava ser uma fortitude absoluta.
Por que eu? Por que com meu ente querido? Por
que isso acontece com pessoas boas? Como vou sobreviver após essa perda? Por
que Deus não me responde? Deus está se vingando... São questões que causam
grande sofrimento e que podem surgir nos momentos mais agudos e que demandam
experiência e capacitação dos envolvidos.
Quando as questões são expressas em termos
religiosos, acesso a ministros religiosos da fé do paciente devem ser
permitidos e estimulados.
Leitor amigo, este foi um texto difícil de
escrever. As informações ainda são precárias, os estudos ainda são iniciais.
Não há padronização de condutas ou procedimentos testados pelo tempo. Porém, a
espiritualidade e a religiosidade são dimensões insofismáveis do humano. Quanto
mais ameaçada a existência, mais estas dimensões se fazem sentir.
Apesar dos estudos ainda serem quase sondagens
do papel da espiritualidade e religiosidade na saúde e na doença, sem a
robustez estatística a que estamos acostumados quando lemos matérias médicas,
não consigo deixar de pensar que já há algumas conclusões nestas pesquisas.
Nenhum dos estudos realizados demonstrou que
para nossa melhor saúde física, mental e emocional é melhor sermos egoístas ao
invés de altruístas, indiferentes ao invés de solidários, pessimistas ao invés
de otimistas, inclementes ao invés de piedosos, vivermos solitários e
rancorosos ao invés de procurar conviver em harmonia com os outros. Essas conclusões
já estão dadas. Cabe a nós incorporá-las em nossa vida.
-----------------
*Iran Gonçalves Jr, médico, escreve neste
espaço mensalmente
Nenhum comentário:
Postar um comentário